A jornalista Rose Leonel, 41 anos, tomava café da manhã em um resort em Foz do Iguaçu quando o celular tocou. Era janeiro e ela estava pronta para curtir o terceiro dia de férias na piscina do hotel. “Rose, o que está acontecendo?”, disse um amigo do outro lado da linha. A pergunta era um alerta e, ao mesmo tempo, uma cobrança. Naquela manhã, dezenas de pessoas em Maringá, no Paraná, onde ela morava e trabalhava, receberam um e-mail com fotos da jornalista nua.
O rosto dela era familiar a todos. Rose comandava um programa de televisão e uma coluna social em um jornal da cidade. Mas o resto do corpo era uma novidade apresentada pelo ex-namorado, o empresário Eduardo Gonçalves da Silva, com quem ela rompera dois meses antes. Rose aparecia sem roupas em fotos compiladas com capricho em uma apresentação de slides anexada na mensagem. Os destinatários eram colegas de trabalho e amigos do casal. O título do e-mail, uma brincadeira sórdida: “Apresentando a colunista social Rose Leonel — Capítulo 1”.
Ela levantou da mesa e começou a andar pelos corredores do hotel enquanto o amigo descrevia os detalhes da mensagem: closes dela seminua, os seios à mostra. As legendas das fotos davam a entender que aquilo era o “portfólio” de uma garota de programa. O e-mail virou assunto em todas as rodas de conversa da cidade. Rose diz ter perdido o chão. Explicou ao amigo que semanas antes, descobriu nos e-mails do ex-namorado um plano para desmoralizá-la (ela tinha a senha dele). Logo após o término da relação, ele contratou um técnico para manipular fotos dela nua, criar uma apresentação de slides e mandá-la de um e-mail com remetente anônimo. “Como registrei uma queixa, não imaginava que essas fotos fossem vazar. Só pensava em me isolar”, diz Rose. Assim que desligou o telefone, ela foi para o quarto. Trancou a porta, ajoelhou no chão e chorou. “Eu me perguntei por que aquilo estava acontecendo. Me sentia fraca, ingênua e impotente. Comecei a pensar no tamanho do estrago que aquela mensagem faria na minha vida, na minha família, nas minhas amizades, no meu emprego.” O telefone celular tocava insistentemente. As amigas se solidarizavam com ela. Com o passar das horas, no entanto, homens desconhecidos começaram a ligar. Faziam gracejos, diziam vulgaridades e queriam saber, entre outros detalhes, quanto Rose cobrava por um programa. Quando ela criou coragem para acessar seus e-mails, encontrou um recado do chefe: “Não importa o que você faça entre quatro paredes, não traga isso para o trabalho”.
Eduardo e Rose namoraram por quatro anos até ela decidir deixá-lo, em outubro de 2005, após ele a ter pedido em casamento. “Ele começou a maltratar meus filhos nas minhas costas: gritava, humilhava. Desconfiei do caráter e do suposto autocontrole emocional dele. Não podia casar com uma pessoa assim.” Rejeitado e inconformado, Eduardo partiu para o ataque virtual contra a ex-namorada, que durou três anos e meio.
Disparava e-mails com fotos dela nua em sequência, nomeando os arquivos como “Capítulos 2, 3, 4...”. Além das fotos íntimas, colocava montagens feitas com imagens pornográficas, em que apenas o rosto era o de Rose. Para completar o assédio, fornecia os telefones dela: pessoal, do trabalho e dos dois filhos da jornalista, na época, pré-adolescentes. Depois de um primeiro processo que ela moveu contra ele na Justiça, Eduardo pagou uma multa de R$ 3 mil para ela e foi liberado. Saiu do litígio revigorado e retomou os ataques com mais força, chegando a segui-la pela cidade de carro.
Ao todo, ela moveu quatro processos na Justiça contra ele. Em junho de 2010, Eduardo foi condenado a cumprir pena de um ano, 11 meses e 20 dias de detenção e, durante esse tempo, teria de entregar R$ 1,2 mil mensais à ex-namorada. Ele recorreu da sentença e perdeu. Está proibido de ficar a menos de 500 metros de Rose e dos filhos dela. Em outro processo que ela ganhou, teve de entregar os computadores para as investigações. A última ação movida por Rose ainda corre na Justiça. O valor das indenizações conseguidas por ela pode parecer baixo perante a devastação que Eduardo causou. Mas a vitória da jornalista é simbólica em um país onde os autores desse tipo de ataque ficavam impunes. Rose é uma das primeiras brasileiras a ganhar na Justiça processos contra um ex-amante que a humilhou na internet.
No Brasil, ainda não existem números oficiais da quantidade de casos desse tipo. Um único advogado mineiro, especializado em Direito virtual, diz que já trabalhou em cerca de 20 ações. “Os processos são novos e aumentaram com o crescimento das redes sociais”, diz Alexandre Atheniense. “Há uma falsa impressão de impunidade e anonimato no meio virtual que motiva esses homens a partir para ação.” Histórias como a de Rose se repetiram tantas vezes na última década no mundo todo que os casos ganharam um nome específico: revenge porn. O termo, de origem popular, quer dizer: “pornografia de vingança”, em inglês. Foi registrado pela primeira vez em 2007, no Urbandictionary.com; um dicionário colaborativo.
Casos de revenge porn costumam ter uma origem comum. Homens se dizem encantados com a beleza das parceiras e pedem para realizar fantasias com elas. Encaram as fotos ou filmes como celebração. Criam cumplicidade, propõem um segredo para ficar só entre os dois.
A fantasia parece um desejo inofensivo. Quando são rejeitados ou traídos, a adoração vira ódio e, num ataque de ciúme ou raiva, colocam as imagens na rede. Repetem as agressões como forma de se manterem ligados à ex, já que têm dificuldade em seguir em frente sem ela.
Segundo o psicólogo americano John Grohol, especialista em comportamento online e fundador do site PsychCentral.com, homens que fazem revenge porn não sabem como abrir mão do relacionamento e, por isso, partem para a vingança. “Essas pessoas têm propensão à mentira, dificuldade em lidar com a raiva, falta de remorso, impulsividade e instabilidade emocional, com episódios de ansiedade e até de pensamentos paranoicos”, afirma o psicólogo. Quando Rose conheceu Eduardo, ele parecia um cavalheiro. “Abria portas, puxava a cadeira para eu sentar.” Além de educado, parecia equilibrado. O perfil combinava com o seu sucesso nos negócios: Eduardo era dono de uma loja e presidente de um shopping center de Maringá.
Durante os quatro anos de relação, não perdeu o controle nenhuma vez. Isso só aconteceu após o término do namoro, quando ordenou, entre xingamentos e ameaças, que ela voltasse para ele. Foi esse homem atencioso, portanto, que pediu para fotografar a namorada em uma noite de paixão, quando o casal já levava dois anos juntos. A ideia soou estranha aos ouvidos de Rose, ela nunca tinha ouvido falar desse tipo de fantasia. Ele insistiu. Para tranquilizá-la, Eduardo prometeu guardar o cartão de memória da câmera no cofre do escritório. “Topei porque aquilo parecia importante para ele”, diz. “Eduardo era o homem da minha vida.” O pedido ficou frequente e a prática virou rotina.
Em outro quarto fechado, longe de Maringá, uma história parecida marcou a vida da pedagoga Bruna*, 31 anos, de Belo Horizonte. Ela tinha 22 anos, se preparava para terminar o mestrado em Educação e namorava o técnico em informática Rodrigo* havia um ano, quando ele pediu para bater fotografias dela na cama. Bruna não aceitou de primeira. Mas ele insistiu e ela cedeu. Fizeram as primeiras imagens enquanto transavam e deixavam-nas na câmera. Depois, sob o pretexto de visualizar melhor as imagens, Rodrigo pediu permissão para passá-las para o computador. Fingia apagá-las assim que terminavam de vê-las.
Em agosto de 2003, Bruna terminou o namoro, depois de ele também a ter pedido em casamento. “Não tinha mais certeza se ele era o homem certo.” O ex esperou o dia do aniversário de namoro para começar os ataques virtuais. Invadiu a conta de e-mail de Bruna e enviou fotos íntimas dela para toda a sua lista de contatos — sempre fingindo ser ela. Em um dos golpes que mais a feriu, ele enviou fotos para o júri do mestrado um dia antes de ela defender sua dissertação. Em fevereiro deste ano, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais ordenou que ele pagasse a ela R$ 50 mil como indenização pelos danos causados. O advogado dele agora tenta provar que Rodrigo não tem dinheiro para arcar com a quantia estipulada. Quanto à sentença, ele não tem mais espaço para recorrer.
Tanto Rose quanto Bruna dizem que os dias que se seguiram ao ataque dos ex-namorados foram desesperadores. Fontes de Rose ligavam para pedir a demissão dela no jornal. “Virei a Geni da cidade. As pessoas não percebiam que eu era a vítima ali”, diz. Em Maringá, uma cidade com cerca de 350 mil habitantes no interior do Paraná, a história criada por Eduardo colou. Em dois meses, Rose estava desempregada. Para Bruna, na época do escândalo com 23 anos, a traição criou um fantasma na vida profissional. “Todas as vezes em que entregava meu currículo, temia que me questionassem sobre as fotos.” Ela se sentia culpada por ter posado e achava que não seria capaz de argumentar que era uma vítima e não o algoz da situação. Entrou em depressão. Em quatro meses, perdeu dez quilos. Os e-mails chegavam a colegas, secretárias e professores da faculdade em que ela estudava. Os mais próximos ofereceram apoio, mas quem tinha pouca intimidade se afastou de vez. “As pessoas ficaram constrangidas por mim.” Bruna não quis falar sobre o assunto nem com as amigas mais chegadas. Comentava o caso apenas em casa, onde todos sofriam.
Oito anos depois, Bruna não precisa de esforço para lembrar o dia em que tudo desabou. “Cheguei em casa à noite e, por volta das 23h, tentei verificar meus e-mails. A senha estava bloqueada. Abri minha segunda conta e encontrei o recado de um colega me perguntando por que eu estava enviando aquelas fotos. ‘Que fotos?’, perguntei, e ele me encaminhou a mensagem. Gelei. Naquele momento, todas as pessoas da minha agenda tinham aquelas imagens em seus computadores. Chorei muito. Chamei meus pais e choramos juntos.” Ela nunca tentou falar com o ex para pedir explicações. “Depois do que ele fez, vi que não havia mais humanidade nele.
”A família procurou o advogado mineiro Atheniense para tentar impedir Rodrigo de continuar a mandar os e-mails e tocar um processo. Ele logo os alertou do maior entrave jurídico nesse tipo de caso. “É muito difícil comprovar a autoria do ataque”, disse Atheniense. Como os e-mails partiam da caixa particular de Bruna, ficava ainda mais difícil provar que não foi ela quem enviou as mensagens. A defesa de Rodrigo falhou quando ficou provado que os ataques partiam do local de trabalho dele. O dado que o incriminou foi o IP de sua máquina, uma espécie de carteira de identidade dos computadores. Ele é essencial para derrubar o anonimato de criminosos como Eduardo e Rodrigo. O que o IP não faz, no entanto, é apagar as fotos que já circulam na rede. Essas se espalham com uma velocidade vertiginosa e obrigam as mulheres vítimas de revenge porn a travarem uma segunda batalha: a de tentar limpar sites e bloquear mecanismos de busca. “Não é uma tarefa fácil”, afirma Emerson Wendt, diretor do Gabinete de Inteligência da PCRS, uma das poucas dedicadas ao tema no país. “Quanto mais se espera para tomar uma atitude, mais difícil é retirar o material da rede”, diz. “Mesmo que fique indisponível por um determinado período, sempre tem alguém que copia e replica as imagens.” Por isso, o delegado aconselha as vítimas a reagirem em duas frentes, denunciando o ataque às autoridades e pedindo aos sites para que tirem o conteúdo do ar.
Abalada pela exposição, Bruna fez terapia e tenta até hoje se livrar de um pensamento que a persegue. “Parece que eu fiz algo errado”, diz. Depois de Rodrigo, conseguiu namorar novamente e chegou a se casar. Pouco antes da cerimônia, sentiu que precisava dividir a história com o futuro marido. “Ele não lidou bem. Me cobrava por eu ter topado as fotos e ficava inquieto com a lentidão da Justiça, sobre a qual eu não tinha nenhum controle”, afirma. Foi o começo de uma mágoa que marcou o relacionamento. Menos de um ano depois, estavam separados. “Não foi só culpa dele. Eu também tinha questões que me travavam, ainda não sabia confiar”, diz. Ela diz ainda ter dúvidas sobre o melhor momento para dividir o passado com o atual namorado.
“Eu me pergunto inclusive se vou contar.” As sentenças judiciais, muito mais que o dinheiro, ajudam a cicatrizar feridas como a de Bruna. Quando conversou com Marie Claire pela primeira vez, ela descreveu sua rotina — uma vida praticamente analógica. Os e-mails eram reduzidos ao trabalho. A internet, um território temido que ela preferia evitar. Contou não usar MSN e redes sociais. Na segunda conversa, no entanto, descreveu uma vitória. “Consegui fazer um perfil de Facebook”, disse, entusiasmada com a conquista. “O fato de a Justiça tê-lo condenado me fez sentir mais leve, mais livre.” No mínimo uma vez por mês, ela rastreia a internet à procura do seu nome, com medo do que o Google possa mostrar na tela do computador.
Essa é uma realidade que Rose, a jornalista de Maringá, tem o desprazer de ver toda vez que digita o seu nome no site de buscas. As fotos ainda estão na rede e custam muito dinheiro e tempo para desaparecer. De tudo o que passou, o que mais a marcou foi o sofrimento dos filhos, que trocaram de escola e até de país. A filha, hoje com 14 anos, chorava escondida no banheiro enquanto o irmão, três anos mais velho, comprava brigas com os colegas de classe, revoltado com a perseguição. Pedia que Rose o deixasse a um quarteirão da escola nova, para adiar o momento em que descobririam o nome de sua mãe. A pressão foi tanta que o garoto foi viver com o pai na Europa, há três anos. Rose o viu apenas uma vez, no ano passado. Quanto ao ex, ela perdeu o contato. Marie Claire o procurou para ouvir sua versão da história, mas seu advogado disse que ele não dá entrevistas sobre esse assunto. Rose está aliviada. “Tive minha imagem destruída e sinto como se a condenação tivesse limpado meu nome”, afirma. Enquanto se recupera, ela faz planos de criar uma entidade que ajude brasileiras que sofrem na mão de ex-namorados ou ex-maridos vingativos. Quer dar a elas o apoio que não teve.
*Os nomes foram trocados a pedido da entrevistada