“Eu tinha 18 anos quando minha mãe morreu. Ela se foi em decorrência de um câncer com muitas idas e vindas: começou como um tumor na veia aorta, mas foi curado; apareceu um ano mais tarde na perna e também foi tratado. Em 2000, veio o diagnóstico de linfoma não-hodgkin, um tipo de câncer nos gânglios. Depois de duas quimoterapias pesadas, a esperança estava num transplante de medula, a que ela se submeteu em março de 2001. As novas células, porém, a deixaram muito fraca e abriram caminho para uma infecção grave. Depois de uma semana na UTI, minha mãe não resistiu.
A morte dela deixou um buraco enorme em mim. Minha mãe era muito alegre e estava sempre de bem com a vida. Tínhamos um jardim grande na casa onde morávamos em Sorriso, uma cidadezinha no interior de Mato Grosso, com meu pai e meus irmãos, Ana Paula, a mais velha, e Thiago, o caçula. Mamãe cuidava das flores com carinho, e esse era um hobby que compartilhávamos. Éramos muito parecidas e conectadas, e eu, àquela altura, não estava nem um pouco pronta para perdê-la.
Três anos depois, ainda sentia o impacto desse trauma quando meu pai sofreu um acidente de carro e morreu de repente. Meu irmão, então com 19 anos, estava no mesmo veículo, mas sobreviveu. O choque foi forte demais. Ficamos os três sem chão, órfãos de uma hora para a outra e tendo que cuidar da fazenda da família. Minha irmã morava em São Paulo com seu primeiro marido e tinha um bebê. Perdida, decidi mudar com meu irmão para Cuiabá e entrar na faculdade. Ele cursava administração e eu, arquitetura. Sentia que não tinha superado nenhuma das duas mortes mas, ao mesmo tempo, não sabia o que fazer. Tentava ir adiante com minha rotina do jeito que podia.
Em 2007, comecei a ter algumas crises nervosas. Chorava sem motivo – claro que sabia o motivo, mas acontecia repentinamente, mesmo que não estivesse pensando nos meus pais. Estava sempre muito agitada e me descontrolava com facilidade. Quando isso acontecia, não conseguia me acalmar por nada. Hoje olho para trás e vejo que estava profundamente deprimida. Na época, não conseguia perceber.
Nesse mesmo ano, às vésperas do meu aniversário de 25 anos, tomei mais uma rasteira da vida. Acordei num dia que parecia igual aos outros, tomei banho e, quando fui me pentear, veio o susto: havia uma falha, bem redondinha, de mais ou menos três dedos, no lado direito da minha cabeça, bem acima da orelha. Era uma área pequena mas lisinha, sem nenhum cabelo. Me desesperei. Nunca tinha visto nada parecido e liguei para uma amiga, que me indicou um clínico geral. Fui ao consultório naquele dia mesmo, em pânico, mas fui tranquilizada pelo doutor. ‘Não é nada sério’, ele disse, e me receitou algumas vitaminas.
Tomei os suplementos indicados, o cabelo logo voltou a crescer e cobriu a falha. Eu usava cabelo longo e sempre fazia luzes para abrir um pouco o tom, um louro escuro que adorava. Era muito liso e fino, nunca precisava ser escovado para ficar lindo. Eu de fato amava meu cabelo.
Um ano depois, a falha voltou. Fiquei calma ao ver aquele pedaço de pele, afinal, eu sabia a solução: vitaminas. Mas poucos dias depois descobri outra e, depois, outra. Elas não paravam de aparecer. Comecei a esconder com lenços e faixas, até que as falhas foram ficando tão grandes que já não cabiam sob os panos. Passei, então, a usar chapéus. Em menos de dois meses, não conseguia sair de casa sem cobrir a maior parte da cabeça. Foi tudo muito rápido. Chorava muito – não entendia o que estava acontecendo. Encontrava um jeito de usar o lenço e, na semana seguinte, aquilo já não era suficiente. Consultei outro médico e fiz alguns exames, mas não recebi um diagnóstico. Depois do terceiro mês, tinha muitas dúvidas e uns poucos fios de cabelo apenas.
Um amigo que acompanhou esses meses de angústia me indicou uma dermatologista conceituada em São Paulo. Chegando lá, ela viu meus exames, me examinou e concluiu que eu tinha alopecia androgenética, uma doença autoimune e rara, que afeta homens e mulheres. Mas, antes de falar em tratamento, olhou fixamente nos meus olhos e disse com uma franqueza que me tirou da base: ‘Raspe esses últimos fios’. Ela garantiu que eu me sentiria melhor. Fazia tempo que eu não via alguém seguro assim. Não sei explicar o motivo, mas concordei no ato.
Saí do consultório e encontrei meus amigos Victor, que me hospedava na cidade, e Michelly. Foi ela que assumiu a tarefa de acabar com os últimos chumaços compridos que eu insistia em manter. No banheiro, ela ligou a máquina e perguntou: ‘Está pronta, posso começar?’, e eu disse que sim. O aparelho foi avançando com a altura ‘zero’, aquela que dá um corte estilo militar. Me lembrei da cena da personagem da Carolina Dieckmann raspando a cabeça por causa da leucemia na novela Laços de Família. Vivi aquilo, porém sem música nem iluminação poética.
Minha cena pode não ter tido o glamour de uma trama do Manoel Carlos, mas teve delicadeza. Michelly não quis raspar os poucos fios que pareciam estar firmes e decidiu cortá-los com uma tesoura. Foi um momento muito difícil, eu e ela chorávamos bastante, em silêncio. Era um choro contido, como se estivéssemos entendendo o que acontecia. Tudo demorou cerca de 15 minutos, mas parecia não acabar nunca. Quando ela terminou, levantei e me vi no espelho – não estava olhando até então. Não me reconheci, aquela não era eu! Mal conseguia manter o olhar na minha própria imagem, de tão pertubada que estava. Michelly me acalmou e, ainda chorando, entrei num banho demorado, pensando em tudo que estava acontecendo. Me perguntava: ‘Por que comigo?’. Tudo o que tinha passado com a morte dos meus pais não era tristeza suficiente?
Logo depois de raspar a cabeça, decidi ir a uma festa e tentar me divertir. Foi minha primeira saída em público totalmente careca, sem lenços nem acessórios. Estava tranquila, gostando do ambiente, quando um desconhecido se aproximou e perguntou se eu tinha câncer. Respondi que não. Ele insistiu, disse que eu podia me abrir com ele e que não precisava esconder. Para terminar, disse que entendia o que eu estava passando pois ele mesmo era um ex-paciente de câncer. Fui embora na hora, chorando.
Essa foi a primeira de muitas abordagens abruptas sobre a minha aparência. As pessoas perguntavam mesmo. Se não falavam em câncer logo de cara, questionavam por que eu havia raspado a cabeça. Alguns não diziam nada, mas me olhavam com cara de susto, apontavam e cochichavam entre si. Algumas crianças gritavam: “Mãe, olha a mulher careca!”. Isso me incomodava muito. Na época, o fato de estar namorando um cara legal amenizou bastante esse sofrimento. Ficamos mais dois anos juntos (cinco, no total), até que terminamos. Foi porque a relação se desgastou, não acho que tenha sido por causa da doença.
O motivo da minha alopecia, disse a médica, era uma combinação de estresse e depressão. Logo depois do diagnóstico, passei a viajar a São Paulo duas vezes por mês para o tratamento. Ele incluía corticoides, que me fizeram engordar quase 10 quilos, mas com a promessa de ter meu cabelo de volta. Também iniciei uma terapia com uma psicóloga ótima e, depois de um ano, passei a usar antidepressivos. O cabelo voltou a crescer irregular, mas logo voltou a cair. Isso me fez desanimar das viagens, que estavam parando minha rotina de estudos e trabalho e me deixando quase sem dinheiro.
Tentei muitos outros tratamentos ao longo dos anos, tantos que perdi a conta. Todos eram à base de corticoides, o que fazia os primeiros resultados virem sempre acompanhados de grandes alterações de peso. O cabelo só crescia enquanto eu estava sob medicação. Mas, justamente por serem pesadas, essas drogas não podiam ser usadas para sempre. Fui até Miami consultar um médico americano, mas os remédios eram os mesmos e os resultados, idem.
Continuei com a psicoterapia e vi grandes avanços na área emocional. As sessões me ajudaram a aceitar viver minhas dores. Em 2013, depois de outro namoro longo, me separei e senti necessidade de mudar de ares. Fui ao Rio de Janeiro fazer um curso rápido de nutrição funcional e não voltei mais. Me apaixonei pela cidade e iniciei uma faculdade de gastronomia, que curso ainda hoje.
Nessa época, decidi parar com os corticoides e comecei a levar uma vida mais saudável. Cortei todos os produtos industrializados da dieta, diminuí a carne vermelha e aumentei a ingestão de frutas e legumes. Com o tempo, comecei a me colocar no lugar das pessoas que me olhavam assustadas – homens, inclusive – e percebi que, de fato, uma mulher careca não é algo comum de ver. E que isso pode ser bom. Fiz várias tatuagens novas (já tinha duas grandes, lindas) e passei a usá-las para reforçar meu estilo. Tenho flores de lótus, que representam o ressurgimento, desenhadas nas costas, e símbolos para as palavras ‘pai’ e ‘mãe’ no pulso, além de uma cinta-liga na perna. Preferi ser vista como radical a ser associada ao câncer, doença que já tinha me machucado ao fazer minha mãe perder os cabelos e, depois, a vida.
Passei também a usar mais maquiagem, a conhecer melhor meu corpo e a comprar roupas ‘certeiras’. Tentei usar perucas, mas desisti. Provei uma moderna, com base de silicone que permitia até banhos de mar, mas não gostei. Decidi ficar careca e fui, lentamente, voltando a gostar de mim.
Hoje faz oito anos que não tenho cabelo e posso dizer que me acho mais bonita do que antes. Vivi um processo lento e dolorido de reinvenção que deu certo. Me sinto mais mulher agora. Não é que tenha me adaptado a um limite: melhorei mesmo. Perdi o costume de passar despercebida e vou ser bem sincera: se entro num recinto e ninguém olha, sinto falta. Meu estilo chama atenção e recentemente me rendeu um elogio inesperado. Eu estava em uma festa elegante no Copacabana Palace quando fui apresentada à estilista Lenny Niemeyer. A papisa da moda praia brasileira pediu para me conhecer pois meu visual havia chamado sua atenção.
Meu cabelo ter caído não veio para o mal. Aprendi, na marra, a ver o lado bom das coisas e focar nele. Estou solteira há dois anos, mas raramente sozinha. Sempre tenho um paquera e sou bem assediada. Alguns homens falam que nunca mais deveria ter cabelo, que preciso continuar careca e linda! Com a ajuda da terapia, aceito melhor o ponto de vista dos outros, mesmo que ele me machuque, como quando me sinto julgada por ser diferente. Claro que às vezes ainda me sinto triste, como qualquer pessoa normal, mas aí peso a mão no make e bola pra frente! Sou uma pessoa muito feliz, aprendi a me amar do jeito que sou. Tenho tudo, só não tenho cabelo.”