“Eu morava em Paris havia cinco anos, onde fiz mestrado e doutorado em administração de empresas, quando fui visitar meu irmão em Londres. Foi naquela viagem que conheci o homem que mudaria a minha vida. De origem grego-italiana, Stravos Panadopoulos tinha 50 anos, era casado e trabalhava para uma empresa petrolífera da Nigéria, com escritório em Londres.
Ele sentou ao meu lado no trem e ajudou a colocar minha mala no bagageiro. Notei que falava em italiano e, para ser simpática, agradeci na mesma língua: ‘Grazie mille, molto gentile’ (‘Muito obrigada, gentil da sua parte’). Começamos a bater papo. No fimda viagem, perguntou se eu teria interesse em trabalhar em Londres e pediu para ficar com uma cópia do meu CV.
Entreguei, sem muita esperança. Só que, após cinco meses, ele ligou me chamando para uma entrevista no escritório da empresa em que trabalhava. Um mês depois fui contratada como consultora na multinacional e me mudei de vez para a Inglaterra. Tinha 32 anos. Era outubro de 2003.
Stravos e eu nos demos bem de início. Como ficava muito tempo viajando, ele demandava minha atenção constante quando estava em Londres. Após o expediente, costumava me chamar para jantar e resolver assuntos do trabalho. Vez ou outra, alguém do escritório também ia, mas, como tempo, percebi que nem sempre esses jantares pareciam amenizar a solidão dele, que não tinha amigos na Inglaterra.
E assim foi até dezembro daquele ano, quando, do nada, Stravos me mandou um e-mail com desenhos do Papai Noel abraçado a mulheres nuas. Desconfiei que tivesse sido engano e não respondi. No dia seguinte, outra mensagem, como título ‘dólar x euro’. Abri e deparei com um desenho do cifrão do euro segurando um do dólar por trás, como se estivessem transando.
Na sequência chegou outro, em que uma mulher seminua dançava caracterizada de Mamãe Noel. Constrangida, respondi dizendo que ele tinha cometido um engano. Ele ignorou e escreveu apenas: ‘Prefere ser o dólar ou o euro?’. Foi o início do pesadelo.
Sentindo-me menos à vontade na presença de Stravos depois das mensagens, que acabaram ficando sem explicação, tentei me afastar dele na visita seguinte a Londres. Ele abandonou, então, a forma respeitosa com que me tratava. Começou a gritar quando se dirigia a mim e me acusava de insubordinação.
Até que um dia me pediu para trabalhar num sábado. Quando cheguei, ele estava sozinho na sala de reunião. Como fazia calor, fui trabalhar de sandálias. Assim que me viu, disse: ‘Você veio assim de propósito! Sabe como fico excitado com pés à mostra’. Fiquei tão chocada e constrangida que não respondi e fui para o meu computador.
Pouco tempo depois, ele pediu para levar um documento até sua mesa.Um pouco receosa, parei diante dele, do lado oposto de onde estava sentado. Ele disse que daquele jeito não dava para lermos juntos o papel e me mandou ficar ao seu lado. Fiquei insegura, mas fui. Assim que me aproximei, ele levantou, colocou uma das mãos atrás do meu pescoço, grudando meu corpo no dele, e a outra mão enfiou entre as minhas pernas.
Em segundos me prensou contra a parede, começou a beijar meu pescoço, apalpando meus seios enquanto se esfregava contra minha vagina. Gritei e, depois de me debater, consegui empurrá-lo. Mesmo com ele afastado, continuei a dar socos e pontapés no ar. Minha reação de nojo foi um insulto para ele, que gritou: ‘Que exagero! Não vou te levar para a cama! Agora saia e me deixe trabalhar!’.
Deixei a sala em choque e fui para a cozinha do escritório. Sentei no chão e comecei a chorar. Acendia vários cigarros para me acalmar. Ainda sentia sua saliva úmida em meu pescoço. Estava com nojo e muita, muita raiva. Fiquei um tempão sentada até que ouvi meu telefone tocar. Era Stravos, perguntando algo profissional num tom frio e distante, como se nada houvesse acontecido.
Quando voltei à sala em que ele estava para levar os documentos que havia pedido, parei novamente do outro lado da mesa. Contudo, outra vez me mandou sentar ao seu lado. Recusei, mas Stravos disse: ‘Deixe de ser criança, não vou fazer nada!’. Tremendo, obedeci. Ele pegou o papel e começou a gritar que me mandaria embora por insubordinação. Começou a me chacoalhar, estava tão perto que cuspia no meu rosto enquanto gritava. Não reagi. Até que me largou, sentou e voltou a trabalhar. Saí de lá tonta. Desliguei meu computador e fui embora, me sentindo derrotada.
Achei que nunca mais voltaria para o escritório, mas no dia seguinte ele foi embora de Londres e isso me fez ganhar tempo para pensar no que fazer. Continuei trabalhando lá e aguentando as humilhações e agressões físicas, como os apertos no meu braço e os chacoalhões, enquanto procurava outro emprego. É claro que ele só agia assim quando estávamos sozinhos. Eu, insegura, não conseguia revidar.
Comecei a ter feridas pelo corpo, uma urticária nervosa, crises de falta de ar, dores no peito e sensação de dormência no corpo. Nessa época, a TV inglesa estava divulgando uma campanha antibullying. Na primeira vez em que vi a propaganda, chorei com a consciência de que estava vivendo aquilo. Resolvi desabafar comum amigo advogado, Emmanuel. Os amigos com quem ele dividia o apartamento me diziam para tomar uma providência.
Um deles, advogado criminal, me ajudaria a fazer uma denúncia por agressão física e sexual na delegacia, mas disse que seria complicado entrar com uma ação criminal contra a empresa. Então me apresentou a outro amigo, advogado trabalhista. Contei a história e mostrei alguns dos e-mails do meu chefe.
Ele recomendou que fizesse uma denúncia formal ao RH da firma. Disse que, se fosse mandada embora antes de documentar o que havia sofrido, perderia o direito de reclamar qualquer coisa judicialmente. Também me orientou a guardar tudo o que pudesse servir como prova. Imprimi e-mails do Stravos, já que recebia uma cópia de tudo o que ele enviava e recebia.
Durante essa busca, encontrei uma mensagem em que ele dizia para o RH que eu era ‘encrenqueira e que a empresa deveria tomar uma atitude antes que criasse confusão’. Ele planejava me demitir. Mandei, então, uma carta para o RH relatando os abusos. Logo me convocaram para uma reunião.
Fiquei oito horas coma uma gerente do setor num hotel. Três dias depois, recebi o parecer da empresa: disseram que não passava de um mal-entendido, que aquele era o jeito do Stravos, que, sendo de uma cultura mediterrânea, tinha sangue quente e lisonjeava as mulheres. ‘Você não precisava ter levado tão a sério’, afirmaram. Foi muito frustrante.
Foram cinco meses nesse vaivém. De um lado, lutava para que a empresa reconhecesse o abuso. De outro, eles diminuíam o acontecido. Fiquei afastada durante esse período por licença médica, até que fui demitida por e-mail. A alegação era uma reestruturação. Chorava dia e noite. Tinha 34 anos, estava sozinha, sem dinheiro, sem emprego num país estranho.
Afundei na autopiedade até perceber que, apesar de me achar uma mulher de atitude porque viajava o mundo, na verdade dependia da aprovação dos outros para reconhecer meus méritos. Consegui um emprego como crupiê numa casa de pôquer que frequentava e comecei a recuperar minha autoestima e a conta bancária.
Três meses depois, o advogado que havia consultado ligou dizendo que o prazo para dar entrada ao processo no tribunal estava esgotando. Explicou ainda que não poderia pegar meu caso, que eu não tinha o perfil dos clientes de seu escritório, mas que, na Inglaterra, eu poderia me defender sozinha no tribunal. Não precisava de um advogado, que, além de tudo, custaria muito caro. Uma oportunidade tão estranha como essa deve ser levada em conta, pensei, e decidi seguir adiante, mesmo receosa.
O advogado ajudou a preencher formulários, mas dali em diante estaria sozinha. A empresa foi ré no processo, já que Stravos nem estava mais na Inglaterra – havia sido demitido na mesma época que eu – e ela tinha sido conivente com as atitudes dele. A primeira audiência foi marcada para dali a dois dias. Nela, teria de apresentar argumentos ao juiz e convencê-lo de que havia um processo a ser julgado. Cheguei ao tribunal sozinha, nervosa e com uma pasta com mais de 400 páginas com provas. Formulei as acusações de assédio sexual contra Stravos e a empresa.
Parecia cena de filme, eu sozinha de um lado da corte e uma equipe de seis pessoas do outro.O advogado que representava a empresa usava um inglês rebuscado para me intimidar. Com dificuldade para entender o que ele dizia, eu interrompia o discurso e pedia explicação. Ele usou isso contra mim dizendo ao juiz que eu não era capaz de levar o processo adiante. Em vão. No fim do dia, o juiz aceitou minhas acusações e marcou as audiências para dali a cinco meses. Nem conseguia acreditar que o governo britânico decidira investir tempo e dinheiro para ouvir os fatos.
Procurei associações de advogados, que me desaconselharam a seguir sozinha. Desanimada, procrastinei o assunto até bem próximo da data da audiência. Só duas semanas antes comecei a estudar profundamente meu processo. Stravos não apareceu no julgamento e os advogados pareciam não ter se preparado com afinco. Todos os argumentos que apresentaram eram menos embasados que os meus. Em nenhum momento, consideraram que eu pudesse ter uma chance.
O julgamento durou quatro dias. Eles tinham testemunhas, eu não. Eles sabiam das manobras das leis, eu não. No fim, o juiz anunciou que, em até 90 dias, ambas as partes receberiam o parecer. Um mês depois, a correspondência oficial chegou à minha casa. Estava tão nervosa que quase não conseguia ler. Eu vencera! O próximo passo seria o juiz definir o valor: 20 mil libras esterlinas de indenização.
Mas, àquela altura, o dinheiro não me importava mais. Meses depois, decidi voltar para minha casa no Brasil e comecei uma vida nova. Entrei em um relacionamento sério, que no fim não deu certo, e passei a trabalhar aqui. Agora, decidi contar minha história. O livro "De Alma Lavada – Uma Brasileira no Tribunal em Londres" (Ed. Ibrasa, versão digital: Kindle) acabou de ser será lançado.”