
De primeira-dama traída pelo marido a secretária de Estado mais popular dos Estados Unidos, Hillary Clinton briga, agora, para se tornar a primeira mulher a ocupar o cargo mais poderoso do mundo.
A candidata tem cinco guardiões que defendem seus segredos com a vida. Após uma derrota humilhante no congresso, ela aprendeu a engolir sapos. “Direitos da mulher são direitos humanos e direitos humanos são direitos das mulheres. É uma violação dos direitos humanos negar alimentos a bebês, afogá-los, sufocá-los, quebrar suas espinhas simplesmente porque nasceram meninas”, disse Hillary Clinton a uma plateia chinesa, em um centro de convenções em Pequim, durante o Quarto Congresso de Mulheres das Nações Unidas. O ano era 1995 e os discursos feministas não andavam em voga como nos dias de hoje. As palavras dela eram uma alusão direta à política do filho único, imposta pelo governo chinês, que forçava a sociedade a rejeitar bebês do sexo feminino. No discurso histórico, prosseguiu condenando estupros, torturas, degradações, mutilações e privações econômicas e políticas a que eram (e ainda são) submetidas mundialmente as mulheres. Hillary só não saiu de lá carregada nos ombros da plateia porque os guarda-costas do Serviço Secreto americano não permitiram tamanha extravagância de entusiasmo.
Mais de 20 anos separam o discurso da então primeira-dama, casada com o ex‑presidente Bill Clinton, da potencial candidata do Partido Democrata ao posto máximo da Casa Branca. Posto esse que parece estar mais próximo dela do que nunca. Há dois meses, durante as disputadas primárias eleitorais, Hillary lavou a alma. Aos 68 anos, a agora candidata venceu a disputa com boa margem e estabeleceu uma supremacia quase impossível de ser derrubada. Ela vinha de derrotas consecutivas para o rival Bernie Sanders para a nomeação ao cargo de seu partido. Hoje, a coalizão em volta da candidatura de Hillary – com o apoio de negros, latinos, mulheres acima de 30 anos e liberais – mostra que ela é mesmo a cara da miscigenação norte-americana. É exatamente com essa mistura de eleitores que pretende chegar novamente à Casa Branca. E uma vitória dela, sobre o candidato republicano ultraconservador Donald Trump, é também uma vitória das mulheres – e não apenas as americanas.

Hillary é uma das principais líderes feministas dessa geração. Papel que, justiça seja feita, já lhe era de direito pelas dezenas de trabalhos que desenvolve desde a adolescência. Aos 11 anos de idade, escreveu à Nasa perguntando o que deveria estudar para ser astronauta. Sonhava montar num foguete e ir ao espaço – algo, na época, que só meninos podiam fazer. Consagrou-se a mais influente feminista do mundo em 1997, quando criou a Vital Voices Global Partnership, uma ONG que promove avanços na vida de mulheres do mundo todo em parceria com o corpo diplomático dos Estados Unidos. Anos depois, quando já havia assumido o cargo de secretária de Estado do governo Barack Obama, criou o posto de Embaixadora Externa para Mulheres, abominado pelos republicanos (representados pelos ultraconservadores Donald Trump e Ted Cruz) e que certamente acabará, caso os democratas saiam da Casa Branca. Ela já avisou que, sendo eleita, fará exatamente o contrário: ampliará os poderes desse setor.
Com a Vital Voices, combateu o tráfico de pessoas e o comércio sexual. Quando era secretária de Obama, comandou a implementação de visto especial para as vítimas, acolhendo-as sob o status dedicado aos exilados políticos. Uma das primeiras medidas da ONG foi o apoio à linha de microcréditos financeiros para mulheres de comunidades pobres na Nigéria. O sistema funciona com empréstimos feitos a donas de casa – e só para elas – que utilizam os recursos em negócios familiares, sem palpites de homens. “São as mães de família que têm melhores condições de administrar os recursos do lar”, explicou. Como primeira-dama, depois no setor privado, no Senado e no comando do Departamento de Estado americano, multiplicou em mais de cem vezes as doações e a distribuição geográfica desses recursos.
As brasileiras também se beneficiaram das atividades de Hillary. Foi como secretária de Estado que assinou acordo com o governo do Brasil para promover o programa Ciência sem Fronteiras, com financiamento de 75 mil bolsistas para estudarem fora do país, sendo o principal destino os Estados Unidos. Nessa parcela, existe uma cota de, pelo menos, metade de bolsas para mulheres, como a paulistana Bel Pesce, que mais tarde ganhou o prêmio Cartier de empreendedorismo. “Foi uma manobra da Hillary para incentivar mulheres cientistas brasileiras”, diz Allan Jennings, ex-funcionário do Departamento de Estado. “Seguiu a mesma receita em vários outros países, emergentes ou desenvolvidos. A esperança é que isso também traga frutos na área da tecnologia, com as mulheres quebrando as barreiras de gêneros também nesse setor”, diz.

UMA VIDA DE LUTA
Hillary Diane Rodham nasceu no dia 26 de outubro de 1947 em Chicago, numa família de conservadores do Meio-Oeste. Foi para a faculdade Wellesley, na área de humanas, em Massachusetts. Chegou e se filiou ao clube dos jovens republicanos. A tendência era de esquerda e Hillary se juntou ao grupo após ir a um comício de Martin Luther King Jr., o pastor líder do movimento pelos direitos civis no país. “Mudou minha vida”, diz.
Em 1969, foi estudar direito na prestigiosa Universidade de Yale. Isso no auge da chamada revolução sexual, época mais do que propícia para conhecer um colega de curso com charme, superinteligência e carisma, chamado William (Bill) Jefferson Clinton. Os dois se casaram em 1975. Clinton foi eleito governador do estado do Arkansas em 1980, ano em que nasceu Chelsea, a filha do casal. Depois, elegeu-se presidente em 1993 e sua primeira-dama não havia parado de militar pelos menos favorecidos. Com o marido no comando, Hillary mergulhou numa tentativa de programa de saúde pública gratuita e universal. Sofreu uma derrota humilhante no Congresso, mas aprendeu que na política em nível nacional é preciso costurar alianças e engolir sapos avantajados.
No final dos anos 1990, escândalos sexuais abalaram o legado de Bill. Para desespero de seus auxiliares e de sua esposa, o presidente não conseguia conter o assanhamento nos confins das próprias calças. Acusações de casos extraconjugais morderam seus calcanhares desde a campanha, em 1992, até o final do mandato, com a explosão das revelações sobre o affair com a estagiária Monica Lewinsky. A Câmara dos Deputados votou pelo impeachment, mas o Senado o salvou. Sobrou para Hillary, que ficou, aos olhos do mundo, como mulher traída e conformada.
Poderia ser o final de sua jornada política, embora continuasse a trabalhar pelas causas de direitos humanos, igualdade entre gêneros. “Eu iria seguir neste caminho da vida privada, mas um encontro com uma jovem democrata me fez mudar de ideia. Ela me disse que eu deveria arriscar e continuar lutando. Naquele momento, decidi concorrer ao Senado”, conta Hillary. Foi eleita em 2000, com larga margem, no Estado de Nova York – onde não tinha tradição política – e reeleita em 2006. Restava tentar a Presidência. No entanto, ela não contava com o fenômeno Barack Obama. Só um poderia concorrer pelo Partido Democrata, e ele levou a melhor. O homem que a derrotou a convidou para o cargo de secretária de Estado e, agora, a apoia em sua pré-candidatura.

Para concorrer ao posto, Hillary conta com o suporte de cinco “guardiões”: a consultora e amiga Maggie Williams, a advogada Cheryl Mills, a consultora de comunicação Mandy Grunwald, John Podesta (o chefe de campanha) e, principalmente, Huma Abedin, a segunda na hierarquia da chapa. São como uma família: aqueles com quem toma algumas garrafas de merlot e com os quais não pensa duas vezes para soltar sua famosa e estrondosa gargalhada. Todas trabalharam no governo Bill Clinton ou no Departamento de Estado: gente que defende com a própria vida os segredos e a integridade da chefe. Huma Abedin tem um lugar especial: é considerada uma filha: trabalha com Hillary desde 1996, quando era estagiária da primeira-dama na Casa Branca. Só perde em apreço para a filha, Chelsea.
“Minhas amigas ligam perguntando o que vou vestir e dão palpites. Chelsea liga para saber o que vou falar. E dá palpite. Muito do que tenho dito foi passado por ela, que está grávida pela segunda vez. Tem minha neta Charlotte (de 1 ano e 9 meses), o marido, a casa, a carreira, e arruma tempo para fazer campanha. É minha melhor amiga”, afirma. E baba mais ao mencionar a neta. “Quando fui muito bem no debate de New Hampshire (em fevereiro, contra Bernie Sanders), me perguntaram de onde vinha tanta alegria. Estava extasiada por causa do vídeo que vi antes de entrar no palco. Meu genro, Marc, filmou Charlotte dizendo: ‘Vai, vovó!’”, diz Hillary.
Não tocar tanto as trombetas do feminismo talvez tenha sido um erro na campanha de Hillary em 2008, mas foi corrigido desta vez. Ao lançar-se pré-candidata em 2015, assumiu a condição de feminista e não parou de martelar a convicção de que será um grande passo a eleição de uma mulher para a Presidência do país mais poderoso do mundo. À Marie Claire Brasil, Hillary afirmou durante a campanha em Nova York: “Não existe feminismo de um item só. Assim como não existe feminismo estilhaçado em milhares de aspectos. Sempre digo que, se os direitos da mulher são direitos humanos e vice-versa, a luta é uma só. Ou não faz sentido”.