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Guerra da Síria: um retrato da vida de quem foge do conflito

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Mulher síria em um campo de refugiados improvisado em Barelias, cidade no leste do Líbano, onde vivem cerca de 40 famílias (Foto: Dubes Sônego e Yan Boechat)

Um garoto de cerca de 10 anos escreve lentamente os números de uma equação matemática simples no quadro-negro. Sob orientação do professor, desenha primeiro um 6 e um 4. Depois, o sinal de soma, 2 e 5. Os números vão saindo em traços irregulares e inseguros, enquanto outros colegas observam atentos. “Ele, como a maioria aqui, já sabe somar, subtrair, multiplicar e dividir”, diz a brasileira Yasmin Dalle, diretora da ONG Lebanese Active Youth (LAY), que se dedica à formação de crianças sírias na cidade libanesa de Barelias, fronteira com a Síria. “A dificuldade é com os caracteres ocidentais. Ele está aprendendo para poder estudar nas escolas locais daqui, que não utilizam a numeração usada por boa parte dos países árabes.” (A língua oficial da Síria e do Líbano é o árabe, mas no segundo usa-se o sistema numérico ocidental. Quanto à religião, 60% da população é árabe e 35% é cristã.)

Yasmin é uma paulistana de olhos grandes e atentos e de sorrisos econômicos. Chegou ao Líbano há dez anos, assim que terminou o ensino fundamental, para morar com a mãe e a irmã.O pai ficou em São Paulo, cuidando do principal negócio da família,uma loja de autopeças. Yasmin decidiu terminar a faculdade de gestão financeira no Líbano. Pouco mais de dois anos atrás, montou a LAY, com alguns colegas. A ideia inicial era ajudar na formação de jovens libaneses em idade de entrar no mercado de trabalho.Mas a guerra civil do outro lado da fronteira, que aos poucos foi ganhando contornos de barbárie, provocou mudanças drásticas nos planos de Yasmin. Quando os sírios começaram a cruzar a fronteira ao ritmo de 5 mil por dia, há mais ou menos um ano, Yasmin e seus colegas passaram a se dedicar a crianças refugiadas sírias. Só na região do Vale do Bekaa, onde está Barelias, mulheres e crianças são 75% dos mais de 122 mil refugiados do país vizinho, registrados pela ONU apenas nessa região. Em todo o Líbano, o número se aproxima dos 400 mil.

À esquerda: a brasileira Yasmin Dalle, que montou uma ONG para ajudar refugiados sírios. Ao lado: homem sírio no campo de Barelias (Foto: Dubes Sônego e Yan Boechat)

Hoje, coordenar o ensino de um novo sistema numérico para cerca de 500 meninos e meninas sírios que só conhecem o idioma e a escrita árabes é uma das tarefas mais simples de sua rotina. A mais difícil, conta, é lidar como que está dentro da cabeça e fora das salas de aula, escondido sob a aparência de normalidade. “Estão todos vivendo de forma improvisada, em 30, 35 pessoas na mesma casa, apartamentos ou barracas. Nessas condições, os próprios pais sentem muito estresse e há muitos casos de violência familiar”, diz Yasmin, parando às vezes para buscar na memória palavras já esquecidas do português. Muitos trazem vivos também traumas de guerra. “As crianças que estão aqui externam medo em desenhos de bombas explodindo, tanques atirando e pessoas sangrando. Assustam-se com qualquer barulho. Temos um menino que ficou meses sem falar. Arrancaram os olhos, cortaram as mãos e mataram o pai na frente dele”, diz Yasmin. “Às vezes é difícil pegar no sono à noite.”

A GUERRA DO VIZINHO
A julgar pelas feições que vem tomando a guerra na Síria, é provável que parte das crianças que estão na LAY demore a voltar a frequentar uma escola em sua terra natal. Detonada pela reação do governo aos protestos que marcaram a Primavera Árabe, o conflito no país já matou mais de 80 mil pessoas e espalhou 1,5 milhão de sírios pelo Líbano, Turquia, Jordânia e Iraque – o Brasil já recebeu mais de uma centena deles. É um dos maiores contingentes de habitantes de um único país vagando por terras que não são suas.

Expostas à violência em casa e à exploração no exterior, mulheres e crianças são as maiores vítimas desse momento em que o provisório se torna permanente e a decadência material se reflete física e moralmente. Quase todos cruzam a fronteira na esperança de encontrar segurança suficiente para voltar a tocar a vida da melhor maneira possível. Mas é frequente se depararem com uma rotina que, no limite, se tornou uma batalha sem armas pela sobrevivência, quase tão dura quanto a que deixaram para trás.

As tendas improvisadas onde vivem os refugiados.  (Foto: Dubes Sônego e Yan Boechat)

Aos 52 anos, Turkia Al Abudde esforça-se para manter um mínimo de salubridade na barraca construída com lona plástica e restos de sacas de café brasileiro, onde vive com o marido e cinco filhos em um campo de refugiados improvisado em Barelias. Durante o dia, ela levanta a lona de uma das paredes para que o ar circule e leve embora a umidade, que dificulta a recuperação do marido. Mihsin AlOmari, 60, pegou “uma gripe forte” e dorme estendido no chão de concreto fino e poroso, coberto por um edredom desgastado. O pequeno aquecedor a óleo, no centro da tenda, não dá conta do trabalho de manter o ambiente seco. E o dinheiro não é suficiente para o tratamento médico. “Recebemos de voluntários ajuda com o diesel e alguma comida, que nunca é muita. Fomos a vários hospitais, mas não podemos pagar por um médico que o atenda”, diz Turkia. Próximo da entrada da barraca, os filhos de Turkia e crianças de outras 40 famílias brincam em meio à lama. Em valas rasas, o esgoto sai dos pequenos banheiros improvisados com lona e madeira e corre ao ar livre. Nos dias de chuva, tudo se mistura e se torna uma massa uniforme e malcheirosa. A alternativa dos refugiados para se proteger de seus próprios dejetos são pequenas barreiras de tijolos construídas ao redor das tendas.

Crianças brincam em meio à lama que se mistura ao esgoto (Foto: Dubes Sônego e Yan Boechat)

CATATÔNICO
Uma das poucas pessoas que têm uma cama no acampamento é Mizwid Nassif, 17. O único motivo de ter direito a ela é o fato de que parou de andar há mais de um ano. Sua paralisia, como a que acomete tantos sírios nesses dias de ataques indiscriminados, não foi causada por nenhum ferimento físico. Ele entrou em choque ao ver colegas serem espancados por militares em frente à escola que frequentava, em um subúrbio de Homs, cidade que é um dos focos mais intensos do conflito. Metido em um agasalho cinza puído, ele assiste à TV na tenda que divide com a mãe, o pai e 15 irmãos no mesmo campo de refugiados em que vive Turkia. Sem dinheiro para pagar um tratamento psicológico, o pai se resigna a deixá-lo ali. “Mal temos dinheiro para nos bancar. Imagine para o tratamento”, diz Khaled Nassif, um homem de 42 anos que até o início da guerra vivia em uma casa de seis quartos e sustentava duas famílias, que hoje mantém no mesmo campo de refugiados, importando e exportando produtos agrícolas com um caminhão. “Quando eu voltar para a Síria, vou me casar com a terceira”, diz.

O menino Mizwid Nassif, que deixou de andar há mais de um ano.  (Foto: Dubes Sônego e Yan Boechat)

MULHERES VENDIDAS
A poligamia e a submissão feminina, tão comuns em países árabes, causam outros problemas nos campos de refugiados. Sozinhas e sem dinheiro para sustentar os filhos, mulheres e meninas têm sido vendidas por familiares para homens de todo o
Oriente Médio à procura de “noivas” jovens. Algumas têm menos de 12 anos. Em campos de refugiados sírios, seja no Líbano ou em países como a Turquia e a Jordânia, sabe-se que mulheres chegam a se prostituir por US$ 7 – a situação delas é tão vulnerável que a ONU mantém centros de apoio psicológico para mulheres. São problemas que só quem tem mais dinheiro ou parentes em países distantes pode contornar.

Yasmin, ela própria uma filha da guerra civil libanesa, nunca teve de passar por situação semelhante. O pai conheceu a mãe em uma visita que fez a parentes no Líbano. Casaram-se e se mudaram para o Brasil, onde Yasmin nasceu, no fim da década de 1980. Sobre o futuro, assim como muitos dos refugiados e dos próprios libaneses, Yasmin tem poucas certezas. O que gostaria mesmo de fazer, conta ela, que já começa a traçar planos com a ONG, é voltar a misturar jovens de diferentes religiões nas aulas do programa de formação de lideranças que mantinha originalmente com a LAY. “Esperamos fazer isso assim que possível”, diz. Um sopro de bom senso pacificador, talvez herança de uma origem multicultural bem brasileira.

Antes da guerra, Mizwid vivia com o pai, Khaled, numa casa de seis quartos (Foto: Dubes Sônego e Yan Boechat)

PRINCIPAL ROTA DE FUGA
O Líbano ainda lida com o fluxo de refugiados palestinos que foram para lá após a criação do Estado de Israel, em 1948. Para ter ideia da dificuldade do país em absorver essa nova população, até hoje, mais de 60 anos depois, várias atividades profissionais ainda não podem ser exercidas por eles – existe até uma lista com mais de 70 profissões que só podem ser executadas por palestinos dentro dos limites dos campos da ONU. A eles é permitido frequentar o sistema de ensino local, mas não oferecer seus serviços a qualquer cidadão. O Líbano sabe que aceitá-los plenamente pode abalar o frágil equilíbrio de forças entre cristãos e muçulmanos xiitas e sunitas, que vivem em paz no país desde os anos 90.

As guerras civis, que duraram de 1975 a 1990, enfraqueceram tanto a situação política libanesa que se abriu espaço para Síria e Israel ocuparem o país. Foi quando surgiram grupos paramilitares de resistência à ocupação, como o Hezbollah, que agora apoia as forças do ditador sírio Bashar Al Assad. Com uma parcela significativa dos refugiados favoráveis ao Exército Livre da Síria (ELS), que se opõe ao Hezbollah, muitos libaneses temem a possibilidade de serem dragados para um novo conflito.

A síria Turkia Al Abudde vive com o marido e cinco filhos em uma barraca construída com lona plástica (Foto: Dubes Sônego e Yan Boechat)

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