A americana Deborah Rodriguez era uma jovem mãe recém-separada meses após os ataques de 11 de Setembro de 2001 quando decidiu se inscrever num grupo de ajuda voluntária que iria para o Afeganistão pós-queda do Talibã. Chegou ao país em maio de 2002, como a única cabeleireira numa equipe de médicos, enfermeiros e psicólogos.
Inicialmente, sentiu-se um pouco desnecessária até começar a ser procurada por ocidentais e afegãs em busca de um corte de cabelo e alguns minutos de conversa. Usando a experiência aprendida com a mãe, também cabeleireira, ajudou a fundar a Escola de Beleza de Cabul, com o objetivo de ensinar às afegãs um novo ofício em meio ao país devastado por anos de conflito.
A experiência, contada por meio de relatos de algumas dessas mulheres, deu origem a “O Salão de Beleza de Cabul: O Mundo Secreto das Mulheres Afegãs”, best-seller que ocupou por semanas a lista de mais vendidos do New York Times.
A repercussão do livro, nunca publicado no país, fez a americana virar alvo de ameaças, além de acusações de ter exposto a risco as mulheres retratadas na história –o que ela nega. Em 2007, dois anos depois de fundar uma ONG para ensinar pessoas em regiões de desastre pós-conflito técnicas de maquiagem e corte, ela deixou o Afeganistão.
Após a fuga do país, se fixou com os dois filhos e parte da família na costa do México, onde deu continuidade ao trabalho da ONG e escreveu outros dois volumes. Este mês, ela lança no Brasil seu segundo livro “Uma Pequena Casa de Chá em Cabul” (Ed. Leya), que também reúne relatos de cinco amigas que dividem suas histórias e angústias em encontros na capital afegã.
À Marie Claire, Deborah relata sua trajetória, da menina que queria resgatar animais em Holland, no estado do Michigan, à escritora de sucesso e palestrante motivacional.
“Me sinto muito sortuda de ter tido uma infância fantástica. Mas ser filha única pode ser bem solitário. O lado bom é que eu sempre tive muita imaginação e meus pais nutriam minha criatividade. Como quase sempre só tinha minhas bonecas e bichos de pelúcia para brincar, eu colocava todos ao meu redor e contava histórias que nunca acabavam.
Quando estava no primário, lembro de ter ficado horrorizada antes de um lindo carvalho ser derrubado para uma obra de alargamento de uma estrada. Eu resolvi tentar impedir ficando na frente das escavadeiras. Consegui atrasar a morte da minha árvore preferida por um dia, mas não venci a batalha.
Depois disso, passei das árvores aos animais. Perdi as contas de quantas vezes minha mãe levou um susto ao se deparar com um pato nadando na banheira ou pequenas cabras dormindo na sala. Depois que as cabras resolveram comer o sofá, meus pais fizeram um esforço concentrado para mover minha compaixão para pessoas.
No segundo grau, eu achava que minha vocação era a música. Fiz aulas de piano, órgão, violão e trompete. Também gostava de cantar, mas percebi logo cedo, durante uma apresentação no John Brown College, no Arkansas, que não fui feita para isso. Eu desenvolvi nódulos em minhas cordas vocais.
Então, voltei para o Michigan e comecei a trabalhar no salão da minha mãe. Me casei muito jovem e tive dois lindos filhos, Noah e Zachary. Meu marido também era muito jovem e estúpido como eu e logo nos cansamos e ficamos entediados um com o outro. Me lembro de, aos 26 anos, chorar com a minha mãe pensando o que havia de errado comigo.
Comecei a trabalhar num presídio logo depois que me separei do pai dos meus filhos, quando entrei em pânico de como faria para sustentá-los. Ser cabelereira e mãe solteira não incluíam os “luxos” de ter plano de saúde e salário fixo. Quando ouvi no salão que casas de detenção ofereciam um bom dinheiro, além de todos os benefícios, pensei que essa mudança de emprego seria um mal necessário para tomar conta da minha família.
Nove meses após treinar na academia da polícia eu finalmente conquistei meu emprego dos sonhos com benefícios. Um ano depois, descobri que não fazia parte daquele mundo. Tinha que seguir muitas regras e, além disso, eu ficava péssima naquele uniforme de guarda! Meus pais sempre me apoiaram em todas minhas ideias. Eles são um pouco mais loucos que os outros.
Entrei para uma organização que oferecia treinamento em socorro a vítimas de desastres em agosto de 2001. Assim que terminei meu curso, me perguntaram se poderia me mudar para Nova York para trabalhar junto aos bombeiros com as vítimas do World Trade Center, o que aceitei. Foi depois de voltar para casa que senti que devia ir para o Afeganistão trabalhar com as mulheres.
Acho que muita gente não acreditava que eu fosse de fato para o Afeganistão, mas mesmo assim eles ficaram orgulhosos quando eu realmente fui. O país estava devastado por anos de guerra. Não havia infraestrutura, bancos, pouca ou nenhuma rede de telefonia e internet.
A primeira vez que fui para lá estava com um grupo de médicos voluntários, então não foi muito difícil porque trabalhamos em equipe. Quando voltei a Cabul para trabalhar na Escola da Beleza, tudo foi muito mais difícil. Era um desafio diário ter eletricidade e água, sem contar o fato que eu estava sempre doente por causa da comida.
Mas a alegria de estar cercada por pessoas daquele país fez tudo valer a pena... Gosto de sentir que fiz a diferença na vida das pessoas. Sentia que eu podia ser mais útil em um dia no Afeganistão do que minha vida inteira nos Estados Unidos.
A história do meu primeiro livro começa com minhas primeira viagens entre Michigan e o Afeganistão, para ajudar a estabelecer a escola de beleza. Eu continuava trabalhando no salão da minha mãe em Holland, já que tinha casa e contas para pagar. Quando estava fora, escrevia longos e-mails para meus clientes contando sobre a vida no Afeganistão, as histórias que ouvia.
Eu esperava que, fazendo isso, eles esperassem até meu próximo retorno de Cabul para fazer o cabelo. E foi exatamente o que fizeram. Nunca me ocorreu de salvar esses e-mails. Mas um dia uma de minhas amigas chegou com um pacote de folhas e disse: “Aqui está o seu livro”. Eu abri e estavam todas as mensagens, fotos, arrumados como se fosse um livro. Decidi a começar a escrever todos os dias.
Estava em Cabul quando a [editora] Random House disse que queria publicar meu livro. Quase desmaiei! Reuni as meninas da escola para decidir sobre o que o livro deveria ser. Àquela altura, mais de 200 estudantes tinham passado pelas aulas, cada uma com uma história que valia a pena contar.
Olhando para trás, lembro das garotas da escola tão entusiasmadas em poder contar suas histórias e chamar a atenção para a situação da mulher afegã. Eu nunca soube de fato se as ameaças que elas sofriam eram reais ou uma estratégia para nos assustar. Mas o que eu sei é que nenhuma das mulheres da Escola de Beleza de Cabul sofreu nenhum dano ligado à publicação do livro.
Muitas delas abriram seus próprios salões e estão trabalhando como cabeleireiras profissionais. Algumas poucas deixaram o país e estão trabalhando em outros lugares pelo mundo usando o treinamento que receberam na escola. Uma delas foi eleita para o Parlamento. A vida segue e as mulheres da Escola da Beleza de Cabul estão usando o que aprenderam para progredir e viver suas próprias vidas num país ainda muito complicado.
Devo ter me arriscado mais do que imaginava enquanto vivi no país. Atravessei a Khyber Pass [passagem entre o país e o vizinho Paquistão] muitas vezes de ônibus e até uma vez de carro com meu filho. A estrada é considerada uma das mais perigosas do mundo. Não faria isso hoje.
Eu tentava viver uma vida normal em Cabul, o que não era fácil. Acho que bloqueei o medo. Eu podia ouvir ataques de morteiros ou passar por locais com carros explodidos e ataques suicidas e não sentia mais medo.
Tempos depois, meu filho mais velho, Noah, recebeu ameaças de sequestro. Foi só então, com a vida do meu filho em risco, que questionei tudo que estava fazendo. Quando voltamos para os Estados Unidos minha vida parecia estar desabando.
Sair do Afeganistão foi a coisa mais difícil que já fiz na vida. Tive apenas 10 minutos para decidir deixar o país com a ajuda de um agente de segurança. Em 10 minutos, tudo que eu tinha construído com tanto dificuldade ficou para trás. Levou quase um ano para eu discernir os fatos e ficções dos eventos que cercaram minha fuga.
Há muitos momentos no México que me lembram o Afeganistão. Às vezes o país consegue ter o mesmo clima à margem da lei, tenso e extremamente amigável ao mesmo tempo. Gosto do povo mexicano, sua culinária e cultura e também de viver numa comunidade ao lado de outros expatriados de novo. Sempre foi muito natural para mim me mudar para aqui. Mas foi quando abri meu salão e spa que me senti de fato em casa.
O Projeto Mariposa tem um ano e meio e há 18 estudantes envolvidos. Este mês estamos formando outras quatro, que vão começar a ensinar novas estudantes. Tenho três lindos netos que são mexicano-americanos, além da minha mãe, que vivem perto de mim aqui também.
Acho que minha base vai ser sempre aqui, mas também viajando e explorando outros lugares, aprendendo, experimentando e escrevendo sobre diferentes culturas. Estou tralhando numa sequência de “Uma Pequena Casa de Chá em Cabul” e pesquisando sobre meu quinto livro, que será ambientado em Omã. Vejo muitas viagens do meu futuro.”