Dietas radicais que impõem uma série de restrições e demonizam alimentos não ajudam a saúde e podem levar ao risco de desenvolver transtornos alimentares. É o que defende a nutricionista Sophie Deram, para quem o "terrorismo nutricional", amplificado por sites e blogs, tem provocado uma relação cada vez mais estressante com o ato de comer.
"A maioria das pessoas lida bem com a comida, se permite comer um pouquinho a mais mesmo escutando que glúten é perigoso etc. Mas tem uma grande parte da população que pode se assustar demais com esse tipo de informação e coloca alimentos como potenciais perigos", diz a francesa, naturalizada brasileira, que estuda a genética de pacientes com transtorno alimentar no laboratório de neurociência do Instituo de Psiquiatria da USP.
Autora de "O peso das dietas – Emagreça de forma sustentável dizendo não às dietas" (Editora Sensus), a doutora em endocrinologia costuma ir na contramão de muitos colegas ao condenar dietas muito restritivas e defender a volta do prazer de comer. Ela se baseia em estudos que, afirma, mostram que 95% das pessoas que se submetem a esse tipo de regime volta ao peso inicial e muitos "até engordam mais do que antes".
Esbelta aos 50 anos, 15 deles no Brasil, Sophie jura que nunca fez dieta e diz que está faltando "respeito pelo corpo". "É muito importante confiar no corpo e lembrar que quando uma mulher tem filho é normal ganhar gordura e que ele precisa de tempo para voltar a um peso mais saudável." A seguir, leia mais trechos da entrevista à Marie Claire.
Marie Claire - Por que a senhora diz que vivemos uma época de terrorismo nutricional?
Sophie Deram - Trabalho com pacientes que têm transtorno alimentar. São pessoas muito assustadas frente ao alimento. Ou têm medo ou comem demais, numa relação muito alterada com o ato de comer. Trabalhando com essas pessoas, vejo como são assustadas com tudo que se fala sobre nutrição. Elas têm crenças muito distorcidas. A maioria começou esses transtornos fazendo dieta. Aí vem essa noção de terrorismo alimentar: em vez de ajudar as pessoas a comer melhor, ficarem mais tranquilas, se cria uma série de regras tão difíceis, rigorosas, que acabam sendo mais um estresse do que um alivio. A maioria das pessoas lida bem com a comida, se permite comer um pouquinho a mais mesmo escutando que glúten é perigoso etc. Mas tem uma grande parte da população que pode se assustar demais com esse tipo de informação e coloca alimentos como potenciais perigos.
MC - Isso leva a que tipo de transtorno?
SD - Isso é muito variável. Não é todo mundo que faz dieta que vai ter um transtorno alimentar. A gente diferencia também entre transtorno alimentar, que tem um diagnóstico, ao que chamamos de comer transtornado. A pessoa que come transtornado não está com uma doença, mas não come de maneira tranquila. É aquela pessoa que não aceita um convite porque ela não sabe que tipo de alimento vai ser servido no lugar. Tem pessoas ainda que não tem uma restrição alimentar, mas medo de certos alimentos. Por exemplo, quem tem fobia a açúcar porque escuta hoje que é um veneno. Só de comer açúcar se sente mal. Isso está acontecendo atualmente com glúten e com a lactose.
MC - A senhora defende que dietas muito restritivas podem provocar obesidade. Como?
SD - Não é exatamente isso. A obesidade pode ter muitos fatores. É muito difícil saber o que começa a provocar. O que eu digo é que fazer dietas muito restritivas coloca você em risco de ganhar mais peso ainda. Tem estudos que mostram que fazer dieta não funciona, que 95% das pessoas voltam a engordar e outros que mostram que muitos engordam ainda mais do que antes. Primeiro, temos que se perguntar: por que ainda estamos fazendo tanta dieta restritiva? A obesidade não é somente a consequência de alguém que come demais e não faz exercício físico. Infelizmente, isso foi muito simplificado estigmatizando o obeso, como se fosse alguém sem força de vontade. Não tem pessoa mais preocupada com o peso do que o obeso. Ele está o tempo todo frente ao problema que vive. Hoje não existe um tratamento 100% certo, sem efeito secundário, contra a obesidade. Mesmo a dieta tem efeitos secundários, que são aumentar o apetite, diminuir o metabolismo, colocar a pessoa em risco de um transtorno alimentar, de ficar mais obcecado com alimento. Mas não digo que fazer dieta provoca obesidade, isso é simplificar demais.
MC - Mas as pessoas que chegam para tratar de transtornos alimentares, pela sua experiência, começam com obsessão por dieta?
SD - Tem dados que mostram que mais de 90% dos pacientes com transtorno alimentar começaram fazendo uma dieta muito restritiva. Há estudos ainda que apontam que fazer uma dieta restritiva aumenta o risco de desenvolver transtorno alimentar em até 18 vezes. É um precipitante, vamos dizer assim. Mas, provavelmente, tem uma pré-disposição. Isso que estou estudando como coordenadora de genética do transtorno alimentar [no Hospital das Clínicas]. Não é todo mundo que faz uma dieta restritiva que vai ter transtorno alimentar. Mas quase todos começam fazendo uma dieta.
MC - Por que classificamos tanto alimentos entre vilões e saudáveis?
SD - É impressionante isso [de vilanizar alimentos]. Há 30 anos atrás era a gordura em geral, depois foi o carboidrato e agora cada vez mais com nutrientes mais específicos. Vai explicar pra um leigo o que é glúten. É muito complicado! É um certo tipo de proteína do trigo. Então é uma coisa muito assustadora para quem não tem informação e a pessoa vai se assustar e tirar tudo que contêm glúten sem necessariamente entender. Vilões são uma coisa nova. Mas sempre houve a busca de alimentos milagrosos, aquele que vai ser o elixir da juventude. Faz parte de nosso espírito acreditar em alguns alimentos que vão nos salvar de repente de uma doença. Tem um grande negócio ao redor dessas modas, no mundo inteiro. Na China, há muitos alimentos que prometem poder afrodisíaco. Temos que ter bom senso. O pão está na nossa alimentação há milhares de anos por que de repente vai virar um veneno?
MC - Quanto às crianças, elas precisam ser protegidas da exposição aos fast-foods? Como seria uma educação alimentar sem exageros?
SD - Essa é uma questão muito importante, mas eu não acho que tenho a solução, infelizmente. É importante não expor demais as crianças. Claramente se você dá uma escolha, ela vai escolher o alimento mais gorduroso e doce. Nosso cérebro tem muita recompensa por esse tipo de alimento. Mas não devemos demonizar esses alimentos. Se você faz isso, tem estudos que mostram que, quando a criança vai comer, come mais. É interessante educar com uma relação tranquila com alimentos, num meio ambiente de qualidade. Colocar doces, frituras e alimentos mais energéticos como ocasionais. Não facilitar a oferta, mas também não demonizar. Quando eu trabalho com um adolescente obeso, sempre deixo claro que ele pode sair às vezes com amigos para ir a um fast food. Você não pode impedir um adolescente de ficar com a turma porque está gordo. É algo extremamente frustrante, ele vai se sentir excluído por ser gordo, pode até piorar a situação. É importante lembrar que o homem se nutre de alimentos e sentimentos. A parte emocional é muito importante. Se você tirar isso, obrigando a comer só brócolis, a pessoa vai primeiro odiar brócolis e depois ficar muito triste por perder uma parte importante do bem estar que é o prazer de comer.
MC - Muitos colegas seus estão receitando dietas com alimentos considerados funcionais, como a proteína de trigo, batata doce e carnes brancas, para o ganho de massa muscular. Precisamos desse tipo de dieta?
SD - Nem todo suplemento é ruim, nem todo alimento funcional. A nutridinâmica é a ciência que estuda como os alimentos conversam com os seus genes. Ela mostra que os alimentos têm um poder extraordinário no metabolismo. Alimentos funcionais são fantásticos. Quanto mais você comer com qualidade, mais vai ajudar sua saúde. O problema é o uso dessa palavra funcional como um terrorismo, obrigar a comer certos alimentos e proibir outros, colocar uma dicomotomia separando alimentos entre ruins e bons. Isso não é verdade. Excesso de alimentos, claro, pode alterar sua saúde. Mas não tem alimentos que você prove uma vez e já engorde.
MC - Mas há riscos de uma suplementação excessiva?
SD - O whey protein, por exemplo, me preocupa muito porque um pouquinho não faz uma alteração no metabolismo, mas o excesso sim. Tem estudos mostrando que o exagero pode provocar risco de resistência a insulina. É como tudo, tem que ter bom senso. Pessoalmente, dou muito mais valor ao alimento mesmo que ao suplemento. O alimento vem com os nutrientes funcionais e mais milhares de compostos bioativos que ainda nem descobrimos, ainda não sabemos tudo. Então é muito mais interessante comer uma cenoura, que vem com fibras, betacaroteno e milhares de compostos, do que um comprimido de betacaroteno. O que vem no comprimido vai ser totalmente isolado, não vai conversar com seu gene do mesmo jeito que uma cenoura, que tem milhares de compostos.
MC - Dietas que ficam conhecidas ao serem adotados por personalidades, como a Ravenna popularizada pela presidenta Dilma e alguns ministros, traz riscos à população?
SD - Acho que sim. Qualquer dieta muito restritiva tem que ser feita com muita cautela. Uma dieta muito restritiva, como falamos, coloca a pessoa em risco de transtorno alimentar, de desenvolver compulsão. Os casos mais graves de compulsão que vi na minha carreira foram de pacientes ex-Ravenna. Não estou dizendo que todos têm, mas infelizmente vi casos incríveis. Não sei bem como a dieta funciona, mas sei que é extremamente efetiva, a pessoa perde muito peso -por isso o sucesso-, mas merece cuidado, especialmente quando o paciente volta a comer. Aí pode desenvolver perda de controle, ganho de peso muito rápido e ficar muito assustado.
MC - Há uma corrente de nutricionistas que defende também um retorno da comida "de verdade", em oposição aos alimentos industrializados. É possível de adotar no dia a dia?
SD - O novo Guia Alimentar Brasileiro do Ministério da Saúde, lançado em novembro, foi pioneiro nesse sentido e muito celebrado no mundo inteiro. Esse guia fala mesmo em comer mais alimentos verdadeiros e menos ultraprocessados. Isso não quer dizer excluir alimentos da indústria, porque precisamos deles, 80% da população vive nas cidades. Mas é interessante não depender só de alimentos processados. Muita gente acha que vale a mesma coisa comer tudo pronto e, quando se trablaha com nutridinâmica, se vê que o alimento verdadeiro vai ter uma conversa muito mais rica com sua saúde do que o ultraprocessado. Hoje, claro, não podemos plantar nossos legumes, ter uma vaca no quintal. Mas quanto mais aumentamos a troca pelo alimento verdadeiro, melhor.
MC - A senhora já fez alguma dieta? Como mantém o peso? Se permite comer num fast-food?
SD - Eu nunca fiz dieta, mas não porque tenha uma genética boa, mas porque pra mim é muito difícil, gosto muito de comer. Não tive uma história simples com peso porque tive filhos e na gravidez o corpo muda. Não gostei de ter ganhado peso, mas sempre confiei no meu corpo cuidando bem da qualidade da minha alimentação. Sempre me recuperei bem. É muito importante confiar no corpo e lembrar que quando uma mulher tem filho é normal ganhar gordura e que o corpo precisa de tempo para voltar a um peso mais saudável. O que infelizmente está faltando hoje é um respeito pelo corpo.
MC - Mas se permite ir a um fast food?
SD - Sinceramente, fast food eu não gosto, não acho gostoso. Só quando meu filho era adolescente, eu ia por um momento de cumplicidade. Claro que em algum tipo de situação, eu como, mas não é meu predileto, prefiro um restaurante italiano com um taça de vinho do que um sanduíche e Coca-cola. Mas não acho um veneno. Se for numa situação gostosa com meu filho porque estamos numa estrada e só tem isso, vou e até que acho gostoso, se estiver com fome [risos].