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Leandra Leal: "Adotar não é político. Ser mãe não é um gesto político"

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Quando Julia, a filha de Leandra Leal, vê uma pintura das mulheres retratadas pela artista paulistana Rita Wainer em algum mural na rua, reconhece e diz “olha o desenho da tia Rita!”. É que Rita – amiga da família – já pintou o rosto da garota em suas telas. Leandra lembra que Julia, 4 anos, só gosta de se ver retratada sorrindo. Do contrário, reclama: “Essa não está boa, não, porque não estou rindo”. A menina tem como referência a postura da mãe, que não tira o sorriso do rosto desde que a filha chegou em sua vida. “A maternidade é um amor incondicional, também me sinto adotada pela Julia. Escolhi ela e ela me escolheu”, diz a atriz à Marie Claire em um dia chuvoso no ateliê de Rita, uma casa no bairro da Gávea, no Rio de Janeiro.

Leandra Leal (Foto: Elisa Mendes)

 

Aos 36 anos, Leandra divide seu tempo entre a vida de mãe e os muitos projetos com os quais está envolvida. Dona de um discurso crítico e consciente sobre o mundo, muitas vezes seus trabalhos acabam trazendo algum tipo de causa. “Minha consciência política é fruto da minha família. Fui criada num ambiente artístico, libertário, politizado. A política não foi algo que me foi apresentado mais velha, era conversado naturalmente na minha casa. Era inerente, estava no meu dia a dia”, diz. A carioca é filha da também atriz Ângela Leal, que hoje toma conta do Teatro Rival, na Cinelândia. O espaço foi inaugurado pelo avô de Leandra há 85 anos e é cenário de seu filme de estreia como diretora, Divinas Divas (2016), que conta a história da primeira geração de artistas travestis do Brasil. Seu pai, o advogado Julio Braz, faleceu quando ela tinha 12 anos.

Leandra está em turnê nacional com PI Panorâmica Insana, peça dirigida por Bia Lessa que questiona valores da sociedade atual. Em 2019, participa pelo quinto ano como mobilizadora do Criança Esperança, na TV Globo. “A grande coisa da campanha é você empoderar, responsabilizar quem está assistindo, falar ‘cara, você pode sim fazer algo’”, diz. Ela ainda dirige a série A Vida Pela Frente, com estreia marcada para 2020, que se passa durante sua adolescência carioca com as amigas de infância e atuais sócias na produtora, Carol Benjamin e Rita Toledo.

Ano passado, Leandra passou 45 dias na Amazônia gravando Aruanas, série já disponível no Globoplay em que interpreta uma ativista ambiental que defende a Amazônia. A atriz levou Julia para conhecer a região, que visitou pela primeira vez como adulta há dois anos. “Achei uma falha de caráter minha não ter conhecido aquele lugar antes. Na época fique assim: ‘Como eu, uma pessoa tão apaixonada e que luta tanto pelo seu país, não conhece a Amazônia?’”. Em entrevista à Marie Claire, ela, que já fez pelo menos 28 novelas, 11 peças de teatro, 28 filmes e ficou famosa em 1995 com a cigana Yanka, da novela Explode Coração, reflete sobre maternidade, lembra da morte precoce do pai e fala da importância do movimento de mulheres que vivemos agora.

Marie Claire Você interpreta uma militante ambiental em Aruanas, profissão arriscada no Brasil, uma vez que o país lidera o ranking mundial de assassinato de ativistas. Qual a importância de uma série como essa hoje?
Leandra Leal Além de ser o país que mais mata ativistas, somos o que mais desmata. Aruanas foi um sonho porque realmente une duas paixões: a arte e o ativismo. Foi um casamento muito satisfatório. A primeira vez que fui para a Amazônia há dois anos, com o Criança Esperança, foi para visitar a Associação Vagalume, que monta bibliotecas na região. No ano seguinte, fiz Aruanas. As pessoas precisam se sentir responsáveis e entender a conexão que o desmatamento tem com o seu dia a dia na cidade

“Minha consciência política é fruto da minha família. Fui criada num
ambiente artístico, libertário, politizado”

MC Como esse processo aconteceu com você?
LL A pauta ambiental chegou faz pouco tempo na minha vida. Acho que o grande gol da série é apresentar os dramas das pessoas que trabalham nessas organizações. Isso faz com que você se envolva emocionalmente, torça por elas. São heróis e heróinas, pessoas comuns que sacrificam suas vidas pessoais para lutar por um bem maior. Elas transformam consciência em ação, isso faz o ativismo. Você ser só consciente não adianta, tem que ter ação. Vê-las me reconectou com a ideia de que cada um tem a possibilidade de fazer muita coisa. A minha trincheira é por meio do meu trabalho e isso me deixa em paz.

MC Você é uma pessoa que se mostra muito consciente politicamente. A escolha de adotar uma criança é, de algum modo, um ato político?
LL Não, adotar não é político. Ser mãe não é um gesto político. É uma forma de maternidade. Ninguém engravida ou adota por uma coisa política. Um gesto ideológico não sustenta uma maternidade, que é muito maior do que isso, é um compromisso diário. É também uma vontade de transcender o amor, não passa por uma questão política. Se fosse por ideologia não daria certo. E para quem adota falando assim “quero ajudar crianças”, respondo: “Amor, então não adota. Faz um trabalho social, porque maternidade é muito maior do que isso”. Adotei porque esse era o meu sonho desde criança. Sempre soube que seria mãe dessa forma. Acho que é uma coisa de destino mesmo, acredito nisso. Entrei na fila, fiz todo o processo e acreditava que era destino, que minha filha estava numa fila e eu estava numa fila. Era isso. Era match.

MC Pensa em ter filhos biológicos também?
LL A adoção foi a forma como eu queria ser mãe. Penso em ser mãe biológica, também quero isso porque deve ser uma experiência muito maneira engravidar. Mas se não for mãe dessa forma não vai ser um problema. Sou filha única, então quero ter mais filhos.

MC E como esse processo mexeu com você?
LL A maternidade é um processo muito punk. Muito maior do que eu imaginava. É a melhor coisa que pode acontecer na sua vida, mas é difícil. E, se você se propõe mesmo, com dedicação de tempo e de tudo que tem que fazer para a formação desse ser humano, mexe em muitas coisas dentro de você. É um processo de transformação e autoconhecimento muito grande, mas também acho que isso pode ser vivido de outra forma. Ninguém é menos mulher porque não tem filho. Cada um tem seu caminho, sua escolha. A gente tem que se livrar desses padrões. 

Leandra Leal (Foto: Elisa Mendes)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 MC Falando de feminismo, como você vê essa nova primavera pela qual o movimento passa?
LL Estamos em um belo momento para ser mulher. Acho que a grande conquista do feminismo atual é a sororidade. Todas as outras pautas já estavam de alguma forma sendo debatidas. É muito importante a união que a gente tem agora, o reconhecimento, essa coisa de você empoderar outra mulher, acho isso lindo. Ao mesmo tempo, temos um longo caminho a correr. A questão salarial é uma coisa. Li uma pesquisa: vai demorar mais de 200 anos para as mulheres ganharem o mesmo que os homens. Vale lembrar que não existe uma pauta feminista, porque cada grupo tem demandas específicas. A minha demanda como uma mulher branca de classe alta é uma. A de uma mulher branca de classe baixa é outra. Uma mulher negra de classe alta é uma. Uma mulher negra de classe baixa é outra. Então existem diversos feminismos e temos pontos de intersecção.

MC Acredita que os homens podem ser feministas?
LL Tenho amigos homens que são aliados, acho isso muito importante. Se você é a favor de uma sociedade mais justa, e se é um privilegiado, a luta pela correção dessa desigualdade é sua também. Troco muito com as mulheres sobre a luta feminista e isso é uma coisa muito legal, porque, até pouco tempo atrás, a palavra feminista era demonizada. O feminismo é a grande revolução atual. É uma causa horizontal, apartidária e do mundo inteiro.

MC Você é a favor da legalização do aborto?
LL Ninguém é a favor do aborto, uma violência para a própria mulher que está abortando. Agora, é muito mais violento uma mulher ser presa por fazer isso e a questão não ser tratada como um problema de saúde pública. O aborto tem que ser legal, porque o Estado precisa garantir uma rede de apoio, atendimento psicológico, alguém para a mulher conversar sobre isso. É sabido que, nos países em que a prática é legalizada, o número de abortos cai. A mulher tem que ter liberdade para decidir o que faz com o corpo. Acho um crime homens, por meio de suas ideologias religiosas, pautarem esse assunto. O que acontece no Brasil é que o aborto existe e só quem morre e sofre as consequências dele ser proibido são as mulheres pobres.

“Feminismo é a grande revolução atual. é uma causa horizontal, apartidária e do mundo inteiro”

MC Você se informou mais em relação ao ativismo negro com a chegada da sua filha? 
LL Sim. Isso sempre foi uma pauta minha, mas depois da chegada dela me deparei com um racismo e um preconceito como não tinha vivenciado. Hoje, por exemplo, era dia da fantasia na escola, e Julia estava saindo de Bela, como queria. Mas de repente falou “Não mãe, vou de Tiana” [primeira princesa negra da Disney]. Já estávamos atrasadas e eu “mas por que, Julia?”, ela respondeu “porque a Bela não é negra. Posso ir de uma personagem que não é negra?”. Eu disse “cara, você pode se fantasiar do que você quiser”. No fim ela foi de Bela, mas a representatividade é algo muito importante, e aí vem toda essa polêmica da Pequena Sereia [A Disney irá rodar um live action com uma atriz negra, o que causou discussões na internet]. Para minha filha, a Pequena Sereia negra vai ser revolucionário. A primeira vez que a Julia viu a Mulher Maravilha foi marcante. Ela queria assistir ao filme e passei o comecinho, que é a fase dela criança, para ela ver. Surgiu a menininha e falei “olha Julia, a Mulher Maravilha”. E ela “onde? Cadê?”. Eu fui na televisão, apontei, e ela “não, mamãe, a Mulher Maravilha é negra”, aí eu entendi. Ela nunca tinha visto a personagem, só ouvia falar que era uma heroína e achava que era igual a ela, óbvio. Amo meu país, mas hoje em dia, por causa da Julia, penso em ter uma experiência fora, onde a gente possa experimentar outra organização social e uma sociedade em que a questão racial não seja tão punk quanto é no Brasil. Eu gostaria de experimentar isso com ela.

MC O seu pai faleceu quando você tinha apenas 12 anos. Como foi lidar com essa perda ainda tão jovem?
LL A perda do meu pai é um evento que me fez ser quem sou, então isso não é só negativo. Tem um lado positivo ser apresentada à morte muito cedo. Transformei em uma vantagem. Precisei de muita terapia para isso. Sou privilegiada porque tive muitos recursos para transformar essa visão e essa experiência. Acho que a vivência da morte é algo que te provoca crescimento se você tem compromisso com a pulsão de vida, como eu tenho.

MC Você ainda transformou essa experiência em trabalho.
LL Sim, a primeira peça que escrevi, Impressões do Meu Quarto (2005), falava sobre isso. Hoje vejo amigos que estão vivendo pela primeira vez a experiência da morte e falo “é, acaba, só que tem uma coisa que é eterna, o amor”. E isso é muito lindo de se perceber jovem, entender que a pessoa morre, mas o que se viveu com ela não morre. Existe a possibilidade de você viver honrando, agradecendo e dando um passo além. Acho isso muito libertário. Óbvio, amaria se meu pai estivesse vivo, mas essa não é uma realidade questionável, então o que vou fazer? Lutar contra? Não, vou viver isso da melhor forma possível. Acho que a morte é a maior prova da vida e faz valorizar muito o presente, as relações, faz você querer lutar por um mundo melhor. A noção da morte, da finitude, é muito importante.

“A perda do meu pai é um evento que me fez ser quem sou, então isso não é só negativo. A vivência da morte é algo que provoca crescimento”

MC O que você especialmente lembra do seu pai?
LL Da risada. Fui com a minha filha nas férias para o Piauí, onde ele nasceu, apresentar a família dele para ela. Ela chama Julia por causa dele. Meu pai era uma pessoa incrível, que sabia viver. Ele, que era advogado, tinha uma relação com o trabalho diferente da minha. Só sou o que sou porque trabalho, preciso trabalhar para ser feliz. Já ele tinha uma ideia de que o trabalho era uma ferramenta para viver outras coisas. Tenho muita sorte, tive um pai e uma mãe muito maneiros, fui amada. Sou muito a favor daquela frase “it takes a village to raise a child” [é preciso uma vila para criar uma criança], mas acho que a família é muito importante.

MC Sua família e suas origens estão no Rio de Janeiro. Como está sendo morar na cidade agora?
LL O Rio de Janeiro está num momento muito difícil, muito duro, qualquer pessoa sensível está abalada. Tem gente morrendo o tempo inteiro nesta cidade. A forma como o Estado trata a segurança pública, como a polícia entra no Vidigal, na Rocinha, na Favela da Maré é um crime e isso me toca profundamente. Aqui a gente tem o Witzel [Wilson Witzel, governador], que é um cara que quer atirar de fuzil nas pessoas. Tem famílias, crianças que estão crescendo nas comunidades com traumas de guerra. Que geração é essa? O que você quer para essa cidade daqui a 15, 20 anos? Como essas crianças vão sair desses lugares? Que ferramentas elas vão ter? É desesperador, um massacre com o povo negro periférico. Você fica postando e achando que está denunciando, ao mesmo tempo é pouco, me sinto muito impotente.

Beleza: Rafael Senna com produtos kérastase / Produção-Executiva: Vandeca Zimmermann


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