“REGRA 1: Quem não casou oficialmente ainda não pode entrar no programa (sou gerente à moda antiga). Regra 2: Quem já tem um filho vai para o final da fila (sou gerente exigente, não aceito furar fila).” “Seguir fielmente o que está na planilha.” As frases acima são do “programa de gestação” de Janete Velten, uma administradora hoje aposentada que, durante anos, chefiou uma equipe de treinamento da BrasilCenter, uma empresa da Embratel, em Juiz de Fora, Minas Gerais.
Em 2006, quando o e-mail chegou à caixa de entrada de 11 funcionárias lideradas por Janete, houve um silêncio. O assunto indicava seriedade: “Programa de gestação”. Numa planilha de Excel, os nomes das mulheres da equipe estavam listados e marcados em cores. Em verde, quem poderia engravidar nos meses seguintes. Em rosa, as autorizadas a fazê-lo mais adiante. Em vermelho, as proibidas.
Janete, então com seis anos de casa e mãe de dois filhos, explicou seu plano de controle biológico e esclareceu tira-teimas: se duas colegas preenchessem os critérios ao mesmo tempo, o desempate se daria pelo tempo de carteira assinada.
Se a escolhida não usasse sua chance de engravidar, perdia a vez e voltava para o fim da fila. O planejamento se estendeu por quatro anos. Gestações indesejadas (isto é, pela gerência) eram punidas com trocas abruptas de horário e ameaças veladas de demissão tão logo a estabilidade garantida por lei terminasse.
Depois de desligadas da BrasilCenter, algumas funcionárias processaram a empresa pelo constrangimento. O caso chegou ao Tribunal Superior do Trabalho, que decidiu punir a empresa, estipulando em setembro uma indenização de R$ 50 mil a ser paga a uma das mulheres, a gerente de recursos humanos Carla Borelli, 37 anos (antes dela, outras funcionárias haviam feito o mesmo. Todas venceram ou fizeram acordos).
Segundo o ministro Claudio Brandão, que participou da decisão, o caso é exemplar. “O empregador nunca pode interferir na vida privada do funcionário. No entanto, vemos acontecer todos os dias. A maneira como foi feito no caso de Juiz de Fora é inédita, mas esse tipo de assédio ocorre todos os dias no país”, diz o ministro. “A gente espera que isso não aconteça mais.”
O INÍCIO DO PLANO
Ao lembrar do período de trabalho na BrasilCenter, as ex-empregadas frisam o descaso da gerente com as grávida. “Ela era hostil. Tive sangramentos e passei mal algumas vezes durante a gestação. Quando acontecia, ela me olhava como se eu estivesse fazendo de propósito”, afirma a administradora Roberta Haddad, 37 anos, a primeira da equipe a engravidar sob esse comando, em 2005, depois de quase cinco anos de casa.
Ela acredita ter inspirado o infeliz controle de natalidade. “Engravidei numa troca de pílula, sem planejar, e descobri quando tinha acabado de ser promovida.” Ela já esperava o filho (sem saber) quando foi entrevistada pela futura chefe e prometeu a ela disponibilidade total. “Disse que podia até virar a madrugada para cumprir prazos. Mas isso mudou quando me vi grávida. Acho que ela se sentiu enganada”, conta.
Foram meses difíceis até Gabriel, hoje com 9 anos, nascer. Roberta dava treinamentos em pé o dia todo e sofria com inchaços nas pernas. No sexto mês, teve uma cólica fora do comum. No meio de uma das aulas que ministrava, a dor se tornou insuportável e ela precisou sentar. Foi até sua mesa, colada na da chefe, e se encolheu. “Eu tremia de dor e estava me contorcendo ao lado dela. Ela viu e não fez nada. Apenas me olhou com desdém. Outra gerente, que estava do outro lado do andar, viu a cena e veio ajudar. Foi essa colega quem me levou ao hospital naquele dia.”
Ao sair de licença-maternidade, Roberta se despediu dos colegas como se não fosse voltar. Tinha certeza de que seria demitida no retorno, já que o tempo todo recebia indiretas da chefe. Na volta, no entanto, um cliente exigiu sua presença num projeto e o cargo foi poupado. Mas a relação não. Ela sonhava com a chefe com frequência. “Não eram sonhos, mas pesadelos”, lembra. Com o passar do tempo, foi perdendo a motivação no trabalho. Depois, sentiu vontade de largar tudo, até que entrou em depressão. “Cheguei a usar antidepressivos na época.” O estresse contaminou seu humor e detonou discussões frequentes com o então marido.
A mineira ficou mais três anos na equipe, ao longo dos quais o cronograma de gestação seguiu em vigor, além dos episódios constantes de assédio moral. Como no Dia das Mães em que a gerente resolveu não dar o brinde da empresa, um porta-retrato, a uma subordinada grávida.
Segundo Roberta, a chefe deu a seguinte explicação: “Você não é mãe, é um receptáculo. Vai ser mãe só no dia em que nascer. Se nascer”. Indignada, ela deu o próprio porta-retrato à colega. “Não conseguia acreditar no que ouvi.” Roberta não se queixou a superiores sobre Janete por medo de represálias. “A gestão dela era baseada em autoritarismo. Se reclamasse e nada fosse feito, tinha medo do que ela pudesse fazer contra mim.”
EM NOME DA META
Em 2006, quando o abuso começou, as operadoras de celular viviam um momento competitivo por causa do debate sobre a portabilidade numérica, que seria aprovada em 2007 – com ela, os usuários podem hoje trocar de prestadora sem perder o próprio número. Na briga pela preferência, as “teles” investiam em campanhas de telemarketing e disputavam cliente a cliente.
As ações eram – e são até hoje – feitas por empresas como a BrasilCenter, onde as mulheres ouvidas nesta reportagem trabalhavam. Carla Borelli conhecia o ambiente desde 1999, quando foi contratada como operadora de telemarketing. O dia era corrido e os intervalos, pequenos. Ela teve o primeiro filho, Breno, ainda nesse cargo. Não podia imaginar que, depois de crescer na carreira, teria condições de trabalho muito piores para ter o segundo filho.
Breno tinha 7 anos quando a mãe foi promovida e passou a integrar a equipe de Janete. Virou analista de treinamento, um cargo sênior na hierarquia do call center. “Ela foi logo perguntando qual era a minha ‘situação’. Assim que soube que eu tinha um filho, falou: ‘Então não tem pressa. Vou te colocar no final da fila’.” Carla adiou, então, os planos de aumentar a família. “Já tinha parado de tomar pílula para engravidar, mas acabei usando outros métodos contraceptivos”, afirma.
Tinha medo de retaliações. Não queria que a gerente fizesse com ela o que fizera com suas colegas. “Uma delas era casada, não tinha filhos e estava no ‘verde’ da planilha, ou seja, ‘tinha direito’. Mesmo assim, ficou com medo de dar a notícia da gravidez.” O temor era justificado: ao longo da gestação, um problema de varizes piorou e os longos treinamentos que elas davam de pé, de seis horas, se transformaram num suplício.
“Eu olhava para as pernas dela e parecia que iam estourar. E não tinha nenhuma alternativa, ela tinha de trabalhar daquele jeito. Era desumano”, lembra Carla, que só parou a contracepção três anos depois, e sob outra chefia. Foi quando engravidou de Thiago Miguel, hoje com 4 anos. “A planilha me desestabilizou. Já não sabia mais o que era prioridade para mim. Comecei a pensar que, se eu engravidasse, correria o risco de ser mandada embora e aí como ficaria, com dois filhos e desempregada? Adiei e me sentia frustrada.”
Apesar de fazer consultas regulares ao ginecologista e não encontrar problemas nos oito anos entre a primeira e a segunda gestação, Carla temia o passar do tempo. “Eu ficava com medo por causa da idade. E também de não ter pique para começar tudo de novo. Mas, para a minha gerente, era impossível conciliar trabalho e gravidez.”
Janete, hoje aposentada, disse à Marie Claire que jamais destratou suas funcionárias. “Por mim elas podiam ter quantos filhos quisessem”, garante. Ela se diz magoadíssima pelo processo que a empresa sofreu. O programa de gestação, na visão dela, não passou de uma piada. “Foi uma brincadeira! Algo pontual, nunca mais falamos no assunto. E, na hora, ninguém pareceu ofendido.”
Roberta, sua ex-funcionária, contesta: “Eu disse que não tinha gostado daquilo. Sofri muito na gravidez e me senti pessoalmente ofendida com o plano.” Irônica, Janete respondeu, segundo Roberta: “É uma brincadeira, mas é bom vocês saberem como as coisas funcionam aqui. Toda brincadeira tem um fundo de verdade.”
DANOS MORAIS
Vinte dias depois de deixar a empresa, em 2009, Roberta entrou com um processo por danos morais. Foi a primeira das funcionárias a fazê-lo e também a primeira a fechar acordo. Como indenização, recebeu R$ 50 mil.
A BrasilCenter, que tem 70% do seu quadro composto de mulheres, a maioria jovens entre 18 e 24 anos, considera o caso um erro de gestão. “Foi uma atitude indevida por parte de um líder de equipe, uma ação isolada que aconteceu há oito anos”, afirmou a empresa em resposta oficial à Marie Claire (nenhum porta-voz se dispôs a falar com a revista). Hoje, a companhia diz ser flexível com o horário de pausa das gestantes, oferecer auxílio-creche e estender o plano de saúde da mãe ao bebê. A atitude de Janete, reiteram, “não condiz com as diretrizes da empresa”.
O método de gestão de Janete incluía reuniões marcadas de última hora em horários fora do expediente, segundo as ex-subordinadas. “Eu entrava à tarde, mas nunca podia faltar às reuniões que aconteciam de manhã”, lembra Roberta. Quando Gabriel fez 4 anos, ela decidiu que já tinha perdido tempo suficiente longe do filho e tirou dois anos sabáticos. “Descobri o que era ser mãe.”
Já Carla saiu da empresa e teve o terceiro bebê, Felipe. Hoje, ela se dedica integralmente às crianças e só quer voltar ao mercado de trabalho no ano que vem. As duas lembram de Janete com tristeza. “Gerar um filho é tão bonito, mas lá ficou como algo ruim, malvisto”, diz Carla. Para Roberta, o assédio foi a experiência mais pesada. “Não pedi as horas extras a que tinha direito. Sabia onde havia trabalhado. Mas o assédio moral me incomodou muito.”“
Não dá mais para aceitar esse tipo de interferência”, diz a coordenadora do Coordigualdade, o programa de equidade de gênero do Ministério Público do Trabalho, Lisyane Chaves Motta. Ela afirma que o assédio sobre a maternidade é o mais comum no Brasil. E não importa a área ou o nível de instrução.
“As trabalhadoras continuam sendo preteridas para promoções e viagens pelo fato de terem filhos, como se os homens não tivessem família. A legislação é muito recente [a licença-maternidade é de 1998] e, até pouco tempo, exigia-se atestado de esterilidade antes de contratar”, diz ela, que estuda a discriminação nas corporações. “Levantando estatísticas, vemos que em alguns casos todas as mulheres promovidas num setor não têm filhos. Por quê?”
Parte da mudança necessária, diz Lisyane, é cultural, a começar por incluir os homens na equação. Só assim coisas simples como levar o filho ao pediatra deixarão de ser um calvário corporativo. “Quase nunca se vê um pai apresentando um atestado porque precisou levar o filho doente ao médico. Isso tem que mudar.”
Em 17 de novembro, o vereador de São Paulo Nabil Bonduki apresentou projeto de lei que amplia de seis para 30 dias a licença-paternidade dos funcionários públicos municipais. Se aprovada, a lei pode ser o começo da mudança.
ÓVULOS EM ESPERA
Empresas do Vale do Silício, como Apple e Facebook, agora pagam pelo congelamento de óvulos. Auxílio legítimo ou pressão para adiar a gravidez?
Em janeiro de 2015, a Apple começará a oferecer às funcionárias dos Estados Unidos um benefício inédito: arcar com os custos do congelamento de óvulos. A empresa segue os passos de outro gigante do setor, o Facebook, que oferece o processo há um ano. Caso as mulheres queiram passar pelo procedimento, a empresa desembolsará US$ 20 mil, em média, por cada adesão.
“O Facebook apoia funcionários em diferentes fases da vida”, afirma o comunicado oficial enviado à Marie Claire sobre os motivos que levaram a empresa a adotar o benefício. O da Apple é igual. Mas há quem duvide, como a pesquisadora de direito trabalhista Lea Elisa Silingowschy Calil. “Está claro que a intenção da empresa é que a funcionária adie a maternidade”, diz.
Ela acredita que detalhes das negociações serão mantidos em segredo. “Os Estados Unidos são a terra do contrato individual e sigiloso. Combinados entre contratadas e seus chefes sobre quando a gravidez ocorrerá devem estar sendo feitos neste momento a portas fechadas.” Autora do livro Direito do Trabalho da Mulher, ela opina que creches e participação maior do homem na criação dos filhos dariam mais resultado.
E se as empresas brasileiras decidissem pelo mesmo? Segundo a ministra do Tribunal Superior do Trabalho, Maria Cristina Peduzzi, não há impedimento na lei. “Desde que a iniciativa para o congelamento de óvulos decorra da mulher.” O que não pode ocorrer, garante a magistrada, são acertos ou sugestões sobre quando usar os óvulos.