Uma busca rápida no Google e ela logo aparece. Anunciada por Chacrinha ou Silvio Santos, entra em cena com seus indefectíveis óculos escuros, cara fechada, calças compridas e andar “capenga”, como ela própria definiu. Não raro sob vaias, fuzilava calouros que a temiam com impropérios como “debilóide” e grunhia seu bordão: “Vou dar dez mangos e estamos conversados”.
Espécie de anti-Claudia Leitte impossível de se imaginar nos dias de hoje, Aracy de Almeida (1914-1988) foi muito mais do que a imagem da jurada carrasca que ajudou a construir nas últimas décadas de vida. Nascida no subúrbio do Rio, estreou no rádio na década de 30 pelas mãos de Noel Rosa, de quem se tornou uma espécie de intérprete oficial. Frequentou a malandragem e a high society carioca.
“Não existem mais mulheres como Aracy. Ela foi criada numa roda de malandragem, cresceu nela. Isso definiu o estilo dela, o seu refinamento. Ela não queria copiar a Princesa de Mônaco, queria copiar a malandragem, que também é um tipo de refinamento”, descreve o jornalista Eduardo Logullo, que lança nesta terça (16) “Aracy de Almeida – não tem tradução” (Ed. Veneta).
Fiel ao estilo anárquico da cantora, cujo centenário foi celebrado em agosto, Logullo - que também autor de “Meu Mundo Caiu – A Bossa e a Fossa de Maysa” (Novo Século, 2007), entre outros títulos- optou por um retrato não biográfico ou histórico de Aracy. Em vez disso, buscou resgatar a verborragia da cantora, frasista como poucos, com um repertório que incluía citações bíblicas, filósofos alemães, poetas simbolistas, palavrões e expressões tão próprias que compunham quase um dialeto próprio –daí o tal “não tem tradução” do título (algumas das pérolas estão reproduzidas ao longo deste texto).
Completam a edição, depoimentos históricos e atuais de personalidades que cruzaram a trajetória da artista, como Caetano Veloso, Jorge Mautner, Elza Soares, Marília Gabriela, Fafá de Belém, Ary Barroso, Carmen Miranda, Mario de Andrade. Nas 340 canções que deixou antes de parar e virar jurada nos anos 70, há registros definitivos de Ary Barroso, Wilson Batista, Ismael Silva, Antônio Maria e, claro Noel Rosa. Para Logullo, que também é colecionador de vinis, mesmo as novas gerações que têm contato com a obra da cantora conseguem perceber sua “modernidade”.
“Quando Aracy nasceu, havia apenas 26 anos da abolição dos escravos. Ela pegou a primeira geração de negros que tentavam se expressar socialmente. Foram eles que viraram os malandros. É quase hoje o que é o funk ostentação. Eles queriam andar nas ruas com estilo, com roupas bonitas, e a Aracy embarcou nessa. Eram os modernos da época”, compara, referindo-se aos primeiros anos da cantora, que chegou a ser vestida pelo estilista Dener.
Modernidade que não se restringia à música. Questionada em entrevista ao amigo e biógrafo Hermínio Bello de Carvalho sobre a fama de ser “machona”, preferiu mais confundir do que explicar com mais uma de suas frases de efeito: “Amo qualquer um, homem, mulher, bicho, coisa. Dura um dia, um mês. Dura o quanto durar.”
Em outra entrevista ao programa “Vox Populi”, da TV Cultura, em 1979, ao ser questionada sobre seus hábitos “um pouco masculinos”, foi mais enfática: “Como sou uma artista muito popular, que todo mundo me manja na rua, então a turma resolve dizer isso, dizer aquilo. Eu sei muito bem o que que ela ‘tá’ se referindo. Mas, miha filha, não é nada disso não.” “E por que você nunca se casou, Aracy?” “Por que o homem dos meus sonhos nasceu morto, minha filha.”
Aracy de Almeida - Não tem tradução
Autor: Eduardo Logullo
Editora: Veneta (216 páginas, R$ 34,90)