“A data 11 de setembro de 2001 é um marco da minha história. No dia em que as torres gêmeas caíram, eu tive a pior crise de dor de cabeça da minha vida. Tinha 18 anos, trabalhava em dois empregos durante o dia e fazia faculdade de jornalismo à noite. Não suspeitava que fosse algo grave e não fui ao médico. Mas a dor continuou e chegou a um ponto em que eu tive de colocar a cabeça embaixo d’água gelada para tentar aliviá-la.
Quase um mês se passou e a angústia persistiu. No dia 3 de outubro, as crises chegaram a um ponto que tive convulsões. Minha mãe, assustada, me levou para o hospital. Chegando lá, os médicos me liberaram dizendo que tudo não passava de consequências de má alimentação, imaginavam que eu estava fazendo dieta para emagrecer. Horas depois, voltei para o pronto-socorro com dores ainda mais fortes. Um médico conhecido da família me viu e se apavorou.
Depois de um exame, diagnosticou uma meningite. Fui direto para a UTI. Havia muitos pacientes em situação grave e eu ouvia gemidos o tempo todo. Fiquei tocada pela situação dos outros, mas estava confiante de que melhoraria logo. Mas, depois de quatro semanas ali, a doença não regrediu. Em busca de um atendimento mais especializado, fui transferida para Porto Alegre (morava no interior de Santa Catarina). Mesmo assim, não estava assustada. Ao contrário. Tinha certeza de que aquela saga finalmente terminaria.
Não foi, entretanto, o que aconteceu. Lá, tive hidrocefalia – o líquido que protege o cérebro se acumulou na minha cabeça. Foi quando precisei passar pela primeira cirurgia, para retirar a água. Não tinha ideia do que viria pela frente. Na época, eu tinha o cabelo loiro supercomprido, angelical, e rasparam a minha cabeça sem dó. Foi brutal. Lembro do choro da minha mãe ao ver a cena. Mas precisava passar por aquilo para aliviar as dores, meu maior tormento.
A operação durou 18 horas, mas não adiantou nada. O líquido começou a acumular de novo e logo precisei fazer outra operação. Desta vez, colocaria também uma válvula que faz o líquor circular entre o cérebro e a medula, processo que havia perdido com a doença e que me levaria à morte rapidamente, caso o problema não se resolvesse.
Essa válvula seria conectada a um ‘caninho’ de silicone, ligado diretamente à bexiga. Por conta disso, para piorar, o médico me disse que eu nunca poderia ser mãe. Se eu precisasse de uma cesariana, teria de cortar o local por onde passa o caninho que me mantém viva. Na época, eu tinha um namorado mas éramos jovens, não pensávamos em engravidar. ‘Eu adoto’, pensei, resignada.
Só que, de novo, a cirurgia foi malsucedida. Meu corpo rejeitou a válvula. Fui obrigada a operar mais uma vez. Dessa vez, devido à gravidade da doença e da minha fragilidade depois de tanto tempo no hospital, soube que tinha poucas chances de sobreviver. E, se saísse viva, teria sequelas graves. Meu maior medo era perder a fala e falei para o médico que a única coisa que não poderia acontecer era isso. Meu projeto de vida envolvia a minha voz.
Eu tinha 18 anos e queria ser jornalista. Momentos antes da operação, para minha surpresa, um padre veio até o meu leito para me dar a extrema-unção. Parou do meu lado e começou a rezar. Era um procedimento padrão do hospital para os casos de risco de morte. Eu estava acordada e, por incrível que pareça, aquilo me deu ainda mais força. Acreditei que sairia viva – e bem. E foi justamente o que aconteceu. A válvula finalmente funcionou.
Só que, mesmo depois dessas três cirurgias, a meningite ainda não tinha cedido. Continuei a me tratar com penicilina e antibióticos fortíssimos. Fiz outras três cirurgias para ajudar a válvula a drenar mais líquido e diminuir a inflamação cerebral. Depois de seis meses no hospital, finalmente descobriram a raiz do problema: eu tinha neurocisticercose,uma doença que, geralmente, vem da carne de porco contaminada, de alimentos mal lavados ou água não tratada.
Eu tinha o mal desde criança, mas não sabia. Por causa dele, desenvolvi um cisto que se comportava como um tumor no cérebro. Ele cresceu tanto que estourou. E, quando isso aconteceu, inflamou as meninges. Comecei a tomar remédios para calcificar o cisto e, com o tratamento correto, finalmente poderia ter alta. Neste momento, senti uma urgência de viver. Não queria mais perder tempo na vida. Fiz um acordo comigo mesma: se conseguisse cumprir os planos de terminar a faculdade, faria um mestrado antes dos 30 anos.
Um pouco antes de ser liberada, fiz um check-up completo, que é praxe em casos graves como o meu. E o resultado do exame mostrou que eu tinha... leucemia. Não conseguia acreditar! Foi um choque. Pensei: ‘Pronto, agora vou ficar mais um ano aqui. Isso se eu sobreviver!’. O abandono da faculdade me desesperava. Esse momento, certamente, foi o pior da minha vida.
Depois de tudo que havia passado, ainda tinha mais essa. Fiquei sem forças. Eu me perguntava por que aquilo estava acontecendo comigo. Foi quando uma professora de reiki me disse algo que nunca esqueci: ‘É preciso agradecer e aceitar’. Sem outra alternativa, incorporei essa ideia que me ajudava a lidar com um problema de cada vez. Cada punção, cada exame, cada cirurgia. Olhando para trás, me pergunto como é que consegui.
Como a leucemia foi diagnosticada no início, a quimioterapia foi leve e pude voltar logo para casa, em Santa Catarina. Cheguei careca e com a sensação de que tinha de correr para alcançar meus sonhos. Fiquei muito tempo sem cabelo. Primeiro por causa das cirurgias e, depois, pela quimioterapia. As pessoas me olhavam com pena, não sabiam como lidar. Mas a careca era uma força, o meu jeito de mostrar que não era preciso ter pena. Um orgulho e um símbolo da minha superação.
Segui controlando a doença. Voltei para a faculdade e arrumei dois empregos. Dois anos depois, reencontrei um amigo de infância, o Vilmar, na festa de formatura de um primo. Quando eu tinha 6 anos e ele 14, me salvou de um afogamento em uma lagoa. Foi a primeira vez que quase morri. Nessa festa, nos olhamos de um jeito diferente. Ele sabia de tudo o que havia acontecido comigo e conversamos a noite toda. Eu sentia como se todas as luzes do mundo estivessem brilhando sobre a gente. Não ficamos, nem nos beijamos, mas eu sabia que aquele não era o fim. O curioso é que eu estava, naquela semana, enfrentando mais uma provação.
Ao chegar ao estágio, dias antes, senti dificuldade ao estacionar o carro e pensei: ‘Poxa, não estou legal’. Não enxergava bem, mas não quis contar nada para ninguém pois tinha de defender o trabalho de conclusão de curso da faculdade. Fiz isso e no dia seguinte fui ao médico. Minha pupila estava muito dilatada, um sinal de hidrocefalia. Voltei a Porto Alegre para outra cirurgia. Era a sétima vez que abriam meu cérebro.
O médico descobriu outro tumor, que quase me deixou cega. A operação deu certo e voltei a enxergar normalmente. Depois dessa, ainda precisei de mais uma, a oitava, para ajudar na drenagem. Tive alta a tempo de participar da minha formatura. E, com muito orgulho, fui a oradora da turma. Vilmar e eu continuamos nos falando e logo nos apaixonamos. Seis meses depois do nosso reencontro, ficamos noivos. Um ano depois, casamos. A cerimônia foi muito emocionante.
Quando o padre disse ‘na saúde e na doença’, nossos olhos transbordaram. Para nós, aquelas não eram palavras da boca para fora. Feliz na vida pessoal e livre de todas as doenças, continuei aperfeiçoando a profissional, como havia prometido para mim mesma no hospital. Fiz uma especialização e depois mestrado. Comecei a trabalhar na área acadêmica. Fui para o doutorado e terminei a pesquisa na metade do prazo normal. Virei doutora em comunicação aos 28 anos.
No ano passado, aos 30, tinha passado a régua nas minhas metas profissionais. Estava cheia de saúde, fazendo meus exames e me programando para entrar no pós-doutorado quando tive uma notícia inesperada: estava no terceiro mês de gestação. Era o início deste ano e a médica pediu um teste de gravidez ao ver alterações em um dos exames. Eu não desconfiava de nada, já que continuava menstruando. Um dos remédios que tomei diminuiu o efeito do anticoncepcional e engravidei sem querer.
Foi um susto enorme, já que por causa da válvula seria uma gravidez de muito risco. Consultei a equipe que me acompanha e decidi que só contaria a novidade ao meu marido no fim de semana, depois de ter visto se o bebê estava bem.
Fiquei muito emocionada ao ouvir seu coraçãozinho durante o ultrassom. Comprei uma roupinha de bebê, escrevi uma carta e coloquei tudo dentro de uma caixa. Na mensagem, eu detalhava para Vilmar minhas expectativas para 2014. Dizia que ia ser um ano especial para a nossa família, com a chegada de um bebê. Mas nem deu tempo de entregar. Ele encontrou o exame antes, abriu e começou a chorar descontroladamente.
Emocionado, me abraçava e agradecia. Foi lindo. Busquei especialistas em gravidez de risco e programamos uma cesárea, que foi acompanhada por um obstetra, um pediatra e meu neurologista.Tudo muito monitorado. Durante a cirurgia, não foi necessário cortar a válvula. No fim, a Maria Clara nasceu no mesmo hospital onde fiz minha última cirurgia. No mesmo lugar onde nasci de novo.”