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Leia o primeiro capítulo da biografia de Ivete Sangalo

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CAPA DA BIOGRAFIA DA CANTORA: "IVETE SANGALO, PURA PAIXÃO" (Foto: Divulgação)

SER CAÇULA O COMEÇO DA VIDA
“Livrai-nos de todo mal. Amém.” Ali, todos juntos, abraçados - eu, meus músicos e toda minha equipe - pedimos bênçãos e forças. Depois, subo cada degrau mentalizando e agradecendo por tantos momentos maravilhosos nesses últimos vinte anos de carreira. Chego no topo do trio e um filme ainda passa na minha cabeça. Olho o mar, o Farol da Barra, e sinto em cada olhar que vem das sacadas, dos camarotes, da pipoca e dos integrantes do meu bloco o carinho que me dá forças durante todos os dias desses anos. Comemoro. Derramo toda a minha energia em cada estrofe cantada, em cada refrão repetido e em cada coreografia. É Carnaval na minha Bahia e ali construí a minha carreira, a minha história. O primeiro acorde é entoado. Estou no olho do furacão e esse furacão sou eu mesma: Ivete Sangalo.

Minha mente volta a Juazeiro. Na sala da minha casa, meu pai com a viola a tiracolo dá a primeira nota. Bem miudinha, ainda com três anos, canto “Maré cheia”, de Clara Nunes. Foi a primeira vezue cantei em público - formado pelos amigos do meu pai, que sempre se reuniam para saraus lá em casa. Ele achava que eu levava jeito e por isso adorava me exibir para eles. Começava a tocar, ia modulando minha voz, e eu entoava as músicas que ele felizmente me colocava para ouvir. Ele adorava quando eu cantava “O bêbado e o equilibrista”. Acho muito engraçada a maneira que ele gostava de me exibir para os amigos, porque a mesma coisa acontece comi- go atualmente. Meu filho, Marcelo, toca bateria e percussão muito bem, e adoro me mostrar às custas dele. É a mesma sensação que meu pai tinha. “Olhem! Ela é pequena e sabe fazer tudo isso”, dizia ele.

Acho que a introdução da música na vida do Marcelo aconteceu do mesmo modo que na minha. Já nasci com música ao meu redor, em 1972, caçula de seis irmãos - ao todo éramos três meninas e três meninos. Desde que me entendo por gente, me lembro dos instrumentos espalhados pelo chão, da radiola tocando João Gilberto, Maysa, Nelson Gonçalves, Dolores Duran, Pixinguinha e Cartola. Meu pai era obcecado por música. Entendia, estudava e era muito mais do que eu sou hoje. Todo tempo de descanso dele era dedicado à música. Ele e minha mãe passavam horas orga- nizando os discos, e já vi muitas vezes meu pai dormindo abraçado ao violão.

Mas não foi só a mim que ele levou para o mundo da música. Sou só uma pontinha daquele ice- berg sonoro. Minha irmã mais velha, Mônica, por exemplo, estudou e toca violão muito bem. Descendente de espanhol, meu pai foi à Europa quatro vezes na vida e em todas as oportunidades trouxe um violão para ela. Cresci vendo, entendendo e tendo apreço por um bom violão e tudo que ele pode nos proporcionar.

A casa que eu morava era grande, com quatro quartos e duas salas imensas, localizada no bairro de São Francisco Country Club. Um presente dado por meu pai à minha mãe quando nasci. Havia uma horta, uma amendoeira vistosa e uma varanda de pedras vermelhas. Adorava me divertir por ali ou na caixa d’água que fazíamos de piscina. Mas na real, o que me animava de verdade era participar das nossas reuniões musicais familiares.

Todos meus irmãos tocavam algum instrumento. Uns muito bem, outros mais ou menos, é ver- dade. Costumávamos sentar todos juntos para tocar: um com o timbau invertido, outro com o pandeiro, agogô... Meu pai e Mônica ficavam com os violões e minha mãe, toda linda, cantava. Ela tinha total noção de tons e ritmos. Acho que herdei isso dela.

Muitas vezes faltava luz no meu bairro em Juazeiro e eu adorava, porque sempre que isso acontecia corríamos para a porta para cantar. Meu pai pegava o violão e cantávamos com ele. Só tinha uma hora que eu emudecia: quando minha mãe começava a cantar lindamente, cheia de swing, sempre na batida correta e com a mais pura afinação. Meu pai era apaixonado por música, mas minha mãe era da música. Aquilo fazia parte da natureza dela.

Acho que faz parte da minha também. Inclusive, um dos dias em que mais fiquei feliz na casa de Juazeiro foi quando meu pai comprou uma radiola para a gente. Era uma radiola porreta mesmo, da Phillips, e cada um de nós tinha um horário determinado para usar. O negócio era organizado para não ter briga, e, durante a semana, todos tinham que usar fones para não atrapalhar o outro irmão a estudar. Eu ficava ali, deitada no chão, com a cabeça recostada numa almofada colada no aparelho de som, ouvindo Stevie Wonder. Pegava o disco Mel, de Maria Bethânia, e ficava curtindo aquela voz maravilhosa. Eu gostava até da textura da capa em alto relevo.

Ah! Foram tão bons os meus anos em Juazeiro! A vida lá sempre foi tranquila e minha infância foi realmente o alicerce para meus dias atuais. De fato, uma época em que fui criança o tempo todo. Não tinha negócio de calcinha: já saía de casa com o biquíni como roupa de baixo. Me juntava com meus irmãos e amigos e íamos sempre tomar banho no rio São Francisco. Com a roupa ainda molhada, tomávamos geladinho, brincávamos de esconde-esconde, elástico, pega-pega, invadíamos as casas em construção para brincar.

Era o maior barato. E sempre tinha um futebolzinho; fosse nos campinhos ou nas ruas de paralelepípedo mesmo, a gente se divertia muito. Meu irmão Marcos era doente por futebol e colocava Cynthia, minha outra irmã, e eu para jogar em qualquer lugar.

Uma vez, dormi na casa de uma amiga e durante a madrugada resolvemos aprontar uma: pegamos vários lençóis, nos vestimos de fantasmas e saímos pela rua assustando os outros. Aquilo foi tão engraçado que repetimos várias vezes. A gente também gostava muito de brincar de apresentação de circo, e de reencenar o programa de audiório da apresentadora Tia Arilma. Eu a imitava, fazia sorteio de cartas, show de calouros... O melhor é que a gente cobrava para as pessoas assistirem. Éramos uma turma muito sapeca e esperta.


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