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Uruguai: descubra como vive o país vizinho que (quase) não tem tabus

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Marcha pela diversidade, na cidade de Montevidéu, em 2010 (Foto: Cecília Suarez)Marcha pela diversidade, na cidade de Montevidéu, em 2010 (Foto: Cecília Suarez)

Entre as grandes cidades do mundo – aquelas que têm mais de 300mil habitantes –, as dez mais violentas estão na América Latina (de acordo com dados divulgados pelo Conselho Cidadão para Segurança Pública e Justiça Penal, do México). Mesmo assim, não é a bala de um revólver ou a explosão de uma bomba a principal causa de morte de mulheres latinas. Cerca de 30% desses óbitos, de acordo com a organização Mundial da Saúde, acontecem em consequência de abortos induzidos, feitos em condições inseguras – isto é, ilegais. Ver-se como uma clandestina foi o que aconteceu à uruguaia Ana Morales, quando tinha 21 anos, em 1992, e engravidou de um namorado. “Tomava anticoncepcionais, mas era desatenta. Com essa idade, quem não é? Esqueci um dia ou outro e, bingo, engravidei.” Ela, então, fez o que milhares de mulheres em quase todos os países da América Latina fazem quando se veem diante de uma gravidez indesejada. Procurou uma clínica ilegal e pagou para fazer o aborto. “A experiência foi um desastre. Desde o papel que fui obrigada a assinar, isentando qualquer pessoa da culpa pela minha morte, caso ocorresse, até o pânico de que a polícia chegasse no meio da cirurgia e eu fosse presa”, diz. “Mas foi uma história com final feliz. Ou não estaria aqui para contá-la.” Ana, agora com 41 anos, é mãe de dois filhos. Hoje, além da angústia natural gerada por um procedimento cirúrgico, não teria de se submeter às péssimas condições da clandestinidade.

Desde dezembro de 2012, as uruguaias podem interromper a gravidez se a gestação tiver no máximo 12 semanas e após passarem por uma entrevista com uma equipe formada por médicos, psicólogos e sociólogos. Apenas depois de cinco dias, tempo mínimo exigido pela lei para que a mulher possa refletir sobre a decisão, o procedimento pode ser feito. Inicialmente, é realizado por meio de medicamentos abortivos e, caso isso não seja suficiente, o médico pode decidir pela curetagem. Depois da Guiana, o Uruguai é o segundo país da América do Sul a liberar o aborto. Se considerarmos a América Latina, ele também é legalizado apenas em Cuba, Porto Rico (que está sob legislação dos Estados Unidos) e Cidade do México (mas não no resto do país).

A iniciativa uruguaia vem no rastro de uma série de outras posturas consideradas de vanguarda num continente onde a maioria dos governos, a exemplo do Brasil, tem dificuldade em separar a Igreja da gestão pública. O ano de 2009 foi de virada para os direitos humanos no Uruguai. Casais formados por pessoas do mesmo sexo passaram a poder adotar crianças. Aos transexuais, foi permitido trocar o nome nos documentos. Legalizou-se a eutanásia. Outra questão que ainda causa debates calorosos no Brasil e que no vizinho já está absorvida no dia a dia é o uso de maconha. Desde 1974, os uruguaios têm direito assegurado de consumir a erva, embora o comércio, de qualquer tipo, ainda seja proibido. Os mais jovens, em especial, fumam sem a menor cerimônia nas ruas e cafés. No final do ano passado, o governo de José Mujica, presidente do país, lançou um projeto de lei que prevê a produção e a comercialização da erva feita pelo Estado. Recuou dias depois, alegando que a sociedade uruguaia ainda não estava preparada para o debate.

À esquerda, no alto, o presidente José Mujica. Logo abaixo, jovens uruguaios fumam maconha na rua. À direita, manifestante a favor da liberação da erva (Foto: Panta AstiazaráN / Pablo la Rosa (Reuters) / Nicolas Celaya)À esquerda, no alto, o presidente José Mujica. Logo abaixo, jovens uruguaios fumam maconha na rua. À direita, manifestante a favor da liberação da erva (Foto: Panta Astiazarán / Pablo la Rosa (Reuters) / Nicolas Celaya)

UM PRESIDENTE POP
A própria figura de Mujica significa em suma quebra de paradigmas. Sua postura diante da liturgia e das regalias do cargo estão mais para a de um governante escandinavo do que de um latino. Quando não está em compromissos oficiais, ele anda em um fusca caindo aos pedaços – nesses momentos, costuma vestir jeans e botas surradas. Mesmo no trabalho, nada de carrão: utiliza um singelo Corsa. Jamais usa gravatas, mesmo em encontros com outros chefes de Estado. Todo mês, doa 90% do salário de US$ 12.500 para a construção de habitações populares. Também abriu mão de viver no luxuoso Palácio Suarez y Reyes, a residência presidencial, e continua morando com a mulher, a senadora Lúcia Topolansky, no sítio Rincon del Cerro, nos arredores de Montevidéu.

A ala residencial do Suarez y Reyes é usada apenas em casos de emergência.O que, para Mujica, significa dar abrigo temporário a um sem-teto, por exemplo – foi o que fez no ano passado quando permitiu que uma moça e o filho ficassem ali até irem a um abrigo. Em janeiro de 2012, ele vendeu a casa de veraneio da presidência, em Punta del Este, por US$ 2,7 milhões.O lugar vai virar um centro cultural, além de abrigar escritórios, e o dinheiro da venda servirá para construção de casas populares. Ele virou pop, embora a taxa de aprovação de seu governo fique em torno de 36% – no Brasil, esse percentual é de 63%e nos Estados Unidos, 51%.

No alto, jovens encenam diversidade sexual nas ruas de Montevidéu. Abaixo, respectivamente, a senadora Verónica Alonso e a senadora Constanza Moreira (Foto: Nicolas Celaya)No alto, jovens encenam diversidade sexual nas ruas de Montevidéu. Abaixo, respectivamente, a senadora Verónica Alonso e a senadora Constanza Moreira (Foto: Nicolas Celaya)

LIBERDADE
Não é de hoje que nosso vizinho adota posturas tão modernas que, muitas vezes, deixou para trás nações europeias, onde despontaram os ideias de liberdade, igualdade e fraternidade. As uruguaias conquistaram o direito ao voto em 1927, quatro anos antes das francesas. Nesse mesmo ano, o país implementou a jornada de trabalho de oito horas. O divórcio foi aprovado em 1913 – 70 anos antes de países como a Espanha, por exemplo. A prostituição foi descriminalizada em 1915, antes de qualquer país da América Latina.

O ímpeto de vanguarda de los uruguayos firmou-se no início do século 20, no governo de José Batlle y Ordóñez, que iniciou uma era de modernização no país ao implementar reformas econômicas, sociais e políticas. O “batllismo”, como ficaram conhecidas as medidas do ex-presidente, tinha como objetivo recuperar o papel do Estado, já que muitos dos serviços básicos estavam nas mãos de empresas estrangeiras. No campo social, Battle propiciou uma pequena revolução nesse distante sul do mundo. Foi ele também que assegurou às mulheres o direito à educação. O espírito do batllismo pautou o país por toda a primeira metade do século 20. Depois dos anos 50, vieram sucessivas crises, os tempos obscuros da ditadura militar e a decadência.

Após passar por uma grave crise financeira em 2002 – impulsionada, em grande parte, pela derrocada econômica argentina pós-dolarização – o Uruguai retomou o crescimento e, junto com ele, a ousadia do início do século 20. A diferença é que hoje as mulheres são nomes fortes por trás de todas as mudanças, e não mais meras receptoras. São elas também as primeiras a colocarem o pé no freio quando a mídia internacional insiste em glamourizar o momento do pequeno país, chamando-o, por exemplo, de Amsterdã dos trópicos. Muito por conta do descompasso que ainda existe entre o que pensa grande parte dos uruguaios e o modo como vem agindo o governo. Em uma entrevista recente,o presidente Mujica foi pragmático quanto a isso. “As pessoas fumam maconha, as meninas fazem aborto, a homossexualidade existe. Não podemos criminalizar a realidade”, disse. Mesmo assim, o deputado Pablo Abdala, do Partido Nacional (oposição ao governo), lançou uma campanha para que seja realizado um plebiscito ainda neste semestre para decidir sobre a continuidade da lei. Ele tem o apoio de Tabaré Vázquez, antecessor de Mujica na presidência e que, apesar de estar no mesmo partido do presidente, vetou a liberação do aborto durante seu mandato.

O abismo entre o que diz a Constituição e o que acontece com uma mulher que vai interromper a gravidez ainda pode ser bem profundo. O jornal La Diária publicou recentemente a história de Gabriela, 30 anos, que diz ter sido maltratada pela equipe do hospital que a atendeu. “Quando eu falei ao médico que havia tomado o Misoprostol (medicamento que pode induzir o aborto), ele começou a rir. Qual a graça numa situação dessas?”, afirmou Gabriela, que pediu para ter o nome trocado na reportagem. Segundo ela, a decisão de interromper a gravidez foi tomada antes da legalização do procedimento. Quando a lei foi aprovada, decidiu procurar um hospital. “O médico me receitou o remédio novamente, mas não funcionou. Só então foi feita a curetagem.O problema é que existe um prazo para abortar e fiquei com medo que não desse tempo.” Ela diz ainda que todo o sistema de saúde comportou-se de forma “violenta”. “Na ultrassonografia me perguntaram se eu queria ouvir o coraçãozinho.Outra funcionária fez cara de desaprovação e ainda soltou comentários para outro colega. A verdade é que a equipe técnica não estava preparada. Cada um mostrou sua opinião.”

O caso que mais chamou atenção na mídia local, no entanto, foi o de Laura Galván, que iniciou o procedimento para abortar no sistema público de saúde e depois teve de recorrer a uma clínica clandestina. Em outra reportagem dessa vez publicada no jornal El País, do Uruguai, a moça contou que procurou o médico na 11ª semana, mas ele receitou o uso do Misoprostol. Como não funcionou e, naquela altura, a 12ª semana já estava em curso, ele se recusou a fazer a curetagem. Para Lilián Abracinskas, fundadora e diretora da ONG Mulher e Saúde, o ideal seria a mulher não depender de uma equipe multidisciplinar para aprovar o aborto e poder decidir entre o remédio abortivo ou a curetagem. “A lei como está não modifica o conceito de delito. Se todas as condições impostas não forem cumpridas, as mulheres continuam tendo que recorrer à clandestinidade”, diz.

No alto, à esquerda, manifestantes contra o aborto. Abaixo, jovens vão ao senado assistir à votação para liberação do aborto. À direita, a arquiteta Verónica Hernandez (Foto: Miguel Rojo (AFP Photo) / Iván Franco (EFE))No alto, à esquerda, manifestantes contra o aborto. Abaixo, jovens vão ao senado assistir à votação para liberação do aborto. À direita, a arquiteta Verónica Hernandez (Foto: Miguel Rojo (AFP Photo) / Iván Franco (EFE))

IGUALDADE
Apesar dos muitos avanços conquistados pelas uruguaias, elas ainda enfrentam problemas parecidos com os das brasileiras. A senadora Constanza Moreira, do Frente Ampla (mesmo partido de Mujica), explica que a baixa representação feminina no parlamento traz uma consequência direta, que é a falta de força para aprovar leis que tenham a ver com outros assuntos que preocupam as mulheres – além do aborto. “Até quando falamos sobre jornada de trabalho, ela é diferente para homens e mulheres. Nesse caso, é preciso considerar que o trabalho doméstico e a responsabilidade com os filhos ainda pesam mais sobre nós.” Mesmo na oposição, há quem concorde que a relação entre o parlamento uruguaio e as mulheres ainda é muito fria. Para Verônica Alonso, do Partido Nacional, a política é um terreno no qual o machismo está totalmente arraigado. “No geral, sobram às mulheres apenas os assuntos ligados a gênero, questões sociais, família e etc. Eu mesma sou especialista em política internacional. Mas não tinha jeito, nunca chegavam os projetos dessa área para mim.”

Fora do congresso, o velho espírito de pioneirismo uruguaio parece fazer mais eco. Nas ruas, na TV, no dia a dia existem mulheres como a arquiteta Verônica Hernández, 40 anos, que esteve à frente da recuperação do Hotel Carrasco, mais importante símbolo arquitetônico do Uruguai do início do século 20, hoje pertencente à rede Sofitel. Embora tenha formação católica e se questione sobre alguns dos temas que estão em ebulição, Verônica representa o que há de melhor numa sociedade cada vez mais diversificada: o respeito a quem pensa diferente. “Tenho dúvidas sobre muitas coisas, mas estou segura de que a decisão de seguir ou não com uma gravidez é de cada uma. Nunca provei maconha, mas estive em Amsterdã, onde o Estado fornece a erva a quem quer comprá-la. Acredito nesse método, sobretudo porque evita a delinquência. Quanto ao casamento gay, as pessoas precisam se acostumar à ideia de que todos nós temos os mesmos direitos”, diz.

No alto, à esquerda, jovem pró-aborto. Ao lado, a advogada transexual Michelle Suarez. Abaixo, am marcha pela diversidade sexual (Foto: Federico Gutierrez (Dpa/Corbis) / Iván Franco (EFE))No alto, à esquerda, jovem pró-aborto. Ao lado, a advogada transexual Michelle Suarez. Abaixo, am marcha pela diversidade sexual (Foto: Federico Gutierrez (Dpa/Corbis) / Iván Franco (EFE))

FRATERNIDADE
Uma das personalidades mais célebres e representativas dos novos ventos que sopram no Uruguai é, sem dúvida, a ativista transexual Michelle Suarez. Seu trabalho pela igualdade de direitos a transformou numa espécie de celebridade local. Aos 30 anos, ela é advogada e fundadora do coletivo Ovelhas Negras, que luta pelos direitos dos homossexuais e transexuais. Michelle foi uma das redatoras da lei que transita no parlamento e que, se sancionada, vai legalizar o casa mento gay – a lei já foi aprovada pela esmagadora maioria da Câmara dos Deputados (81 dos 87 votos) e tudo indica que deverá ser aprovada pelo senado e sancionada por Mujica. Michelle foi também a primeira transexual uruguaia a assegurar a nova identidade nos documentos, embora não tenha feito cirurgia para mudança de sexo. “Isso não me incomoda nem um pouco. No Uruguai, a troca do nome nos documentos não depende de mudanças morfológicas e, sim, da autodeterminação”, diz.

Michelle nasceu na pequena Salinas, cidadezinha nos arredores de Montevidéu. Diz que até hoje mantém as amizades da infância e que o bullying não chegou a ser problema. “Devo reconhecer que nunca fui questionada. Acho que o maior choque das pessoas é que elas têm a ideia de que um ‘trans’ tem de ser hipersensual.” Ela diz também que a família foi compreensiva. “Sempre tive um lar, não apenas um lugar para dormir. Minha esfera de amor estava intacta.” Lembra-se com carinho de uma cena que traduz a maneira leve com que a família encarou a transexualidade dela. “Uma vez, meu pai, que hoje tem 73 anos, estava me olhando e disse: ‘Pensar que quando sua mãe estava grávida de você, eu queria que fosse um menino e ela, uma menina... Olha as voltas que o mundo dá’”, conta ela, rindo. Para Michelle, “os inimigos da diversidade sempre estiveram fora”.

* Alguns nomes foram alterados a pedido dos entrevistados


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