Os homens mais perigosos do Rio de Janeiro se curvam diante de Maíra Fernandes. Quando a advogada entra em uma cela, assassinos, traficantes e ladrões abaixam suas cabeças e colocam as mãos nas costas para dirigir-lhe a palavra. Essa não é apenas uma norma de segurança dos presídios. Eles se curvam porque têm esperança. A carioca Maíra é uma das poucas autoridades que defendem os direitos de homens e mulheres encarcerados. E, mais do que isso, simboliza uma segunda chance.
Aos 32 anos, Maíra é a primeira mulher a presidir o Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro, um órgão que tem como missão fiscalizar o cumprimento da lei dentro das cadeias – da garantia dos direitos humanos à execução correta das penas – e ajudar os presos a se reintegrar à sociedade. Antes de assumir o posto, aos 29, a advogada se dedicava a causas feministas. Chegou a defender, de graça, uma mulher que foi algemada a uma maca de hospital depois de um aborto malsucedido. O tema de seu mestrado foi a legalização da prostituição. Acredita que essa é a única maneira de as mulheres que vivem do sexo deixarem de ser exploradas e espancadas.
Criada na zona sul do Rio, Maíra trilhou um caminho incomum. Nascida em uma família de artistas, subia os morros da cidade ainda criança para ver um mundo ao qual a maioria de seus amigos não tinha acesso. “Lembro de ver os homens armados”, diz. Anos depois, virou advogada para defendê-los. A entrevista a seguir foi concedida em dois encontros nas salas de um dos escritórios criminalistas mais famosos da cidade, onde trabalha, e também em longas trocas de e-mails e telefonemas.
Nessas conversas, Maíra se emocionou ao lembrar dos homens que ajudou a sair do crime, das mães que perderam suas famílias quando foram para o cárcere e do doloroso suicídio do primeiro namorado, que pulou da janela do 9º andar quando ela tinha 15 anos. O que ela não imaginava é que aquela seria sua primeira experiência com a capacidade de superação – poder que alimenta hoje nos meandros das cadeias.
MARIE CLAIRE Você é um dos destaques do documentário Go Brazil, do cineasta Spyke Lee sobre o país. Como foi a entrevista?
MAÍRA FERNANDES Uma honra, sou superfã dele. Ele pediu um raio X do nosso sistema penitenciário. Respondi que não temos motivos para nos orgulhar. Ele está superlotado e é absolutamente falido.
MC Por que diz isso?
MF Porque prende-se muito e prende-se mal no Brasil. E é preso quem não precisa estar ali: usuários de drogas ou pequenos traficantes que vendem para sustentar o vício. São jovens que tinham futuro. Lá dentro, encontram um chefão do crime que os alicia para alguma facção porque lhes fornece aquilo que o Estado não dá – de cigarro a segurança. Assim, as cadeias ficam superlotadas e forma¬-se a universidade do crime.
MC O que mais impressionou você nas visitas às cadeias brasileiras?
MF Toda prisão masculina tem um cheiro específico, da aglomeração humana somado ao de pano molhado. A unidade de Belém do Pará, que visitei recentemente, imunda, tinha um odor pior, de lixo. Era difícil respirar. Também vi muitos ratos. Havia presos dormindo em contêi¬neres. Eles saíam de lá durante o dia, mas é de qualquer forma uma condição sub-humana. Ouvi muitos relatos de maus-tratos.
MC Você conversa com os presos?
MF Sempre. Aqui no Rio, inclusive, conheço alguns pelo nome.
MC Não tem medo deles?
MF Não. Quando conversamos, os presos ficam no que chamamos de posição de confere, com os braços para trás e a cabeça abaixada. Mas não sou doida. Pergunto ao diretor do presídio como está o clima. Se está complicado, não entro.
MC Já foi vítima de preconceito?
MF Não. Sei que não é assim para a maioria das mulheres. Mas eu, particularmente, nunca sofri nenhum desrespeito no meu trabalho.
MC Nem dentro das prisões?
MF Não. Esse, aliás, é um lugar onde sou muito respeitada. Quando entro em uma prisão, os agentes avisam os presos que há uma mulher ali. É impressionante a deferência: todos colocam imediatamente a camisa e vão avisando para os que estão longe: “Tem madame na área, tem dama na unidade”.
MC As rebeliões estão controladas nas cadeias cariocas?
MF Os últimos anos foram estáveis. O fato de os presídios serem divididos por facções – há uma unidade do Terceiro Comando, outra do Comando Vermelho etc. – evita brigas que culminam em rebeliões, como acontece em outros estados. Essa divisão é um dilema para nós porque as facções acabam fortalecidas, mas, se colocarmos inimigos em um mesmo lugar, eles se matam. Também ajudou o fato de os grandes chefões do tráfico serem transferidos para os presídios federais longe do Rio, e o fato de cada unidade prisional ter um defensor público para atender seus presos.
MC O que te choca quando visita as unidades femininas?
MF Preciso de um dia de recuperação psicológica depois de ir a um presídio feminino. Não que lá tenha insalubridade. O cheiro é de limpeza. O problema é outro: as carceragens parecem cemitérios de mulheres vivas. Primeiro porque elas quase não recebem visitas. As mulheres são abandonadas pelas famílias. Depois, sempre ouço a mesma pergunta das presas: ‘Onde está meu filho?’. As grávidas podem ficar por seis meses com os bebês enquanto amamentam mas depois têm de encaminhá-los a um familiar. Se não têm para quem mandar, eles vão para abrigos. Será que essas mulheres vão reencontrar suas crianças depois? Outro problema é que a família só vai saber que a mulher foi presa tempos depois – se souber. Nas delegacias, não existe o hábito de dar um telefonema, como vemos nos filmes. Se a mulher não tiver apoio familiar, não sabe o que acontece com os filhos enquanto cumpre pena.
MC Como mudar isso?
MF Seria preciso o triplo de assistentes sociais para atender essa demanda. Está previsto em tratados internacionais de direitos humanos que a mulher, no momento da prisão, tenha um tempo para organizar a vida. Nunca vi isso ser cumprido. Com as presas estrangeiras, é pior ainda. Muitas acham que virão para o Brasil para um emprego e, quando chegam ao aeroporto, os traficantes dizem que têm de levar droga. Elas se negam, mas eles ameaçam suas famílias. Conversei várias vezes com estrangeiras que não faziam a menor ideia do que tinha acontecido com os filhos. Elas podem ficar até dez anos sem a família saber que estão presas.
MC Você está no Conselho Penitenciário desde 2007. Que histórias mais te tocaram nesse período?
MF Algumas. Tem a do Fábio, que estava em liberdade condicional, trabalhava durante o dia e voltava para a prisão para dormir. Ele me procurou porque um preso estava cobrando pedágio dele toda noite. Ele disse que não tinha dinheiro e o rapaz o ameaçou de morte. Para ajudá-lo a deixar a cadeia, pedi a tornozeleira de monitoramento eletrônico, mas só conseguiria o benefício se ele tivesse residência fixa. Como morava havia anos na prisão, fomos atrás de uma pensão. Conseguimos, mas ele perdeu o emprego nesse processo. Arranjei-lhe outro trabalho em um restaurante. Um dia o chefe pediu que ele buscasse algo em um depósito subterrâneo e a tornozeleira apitou. Foi mandado embora outra vez. Outro dia, Fábio apareceu aqui com um chapéu de cozinheiro e uma torta de chocolate com morangos. Arranjou um terceiro emprego e queria mostrar que meu trabalho tinha valido a pena [seus olhos se enchem de lágrimas e a voz fica embargada].
MC Algum preso te surpreendeu?
MF O Narciso, que chegou até mim pelo Afroreggae [ONG carioca], para quem nosso escritório trabalha gratuitamente. Ele era foragido e pediu para voltar para a prisão. A mulher estava grávida e ele queria arrumar um emprego, mas só poderia fazer isso depois que cumprisse toda a pena. Eu o levei de volta para o presídio e fui visitá-¬¬ ¬lo no dia seguinte. Tinha certeza de que o encontraria arrependido [por ter voltado à prisão]. Nunca vou esquecer o que me disse: “Estou em paz, doutora. Quando sair daqui, vou cuidar do meu filho de cabeça erguida e ele vai poder se orgulhar do pai”. Depois de alguns anos, tocou meu telefone: “Doutora, é o Narciso. Estou ligando para contar que estou trabalhando em um posto de gasolina. Tenho carteira assinada e ganho 1.500 reais. Meu filho está bem. Sou muito agradecido” [os olhos se enchem d’água novamente]. Hoje, tenho absoluta certeza de que é possível recomeçar.
MC As visitas aos presídios te abalam psicologicamente?
MF No começo tinha insônia. As imagens vinham à minha cabeça de madrugada. Agora aprendi a administrar o meu sono. Faço aulas de dança, minha válvula de escape.
MC Já foi ameaçada?
MF Sou elegante na maneira de agir. Mas o juiz da Vara de Execuções Penais (VEP) não manda mais alguns processos para o Conselho Penitenciário opinar nos casos coletivos de redução e perdão de penas. Talvez isso seja reflexo dos embates que tivemos. [Ela pediu para tirar de lá alguns dos 150 mil processos porque a vara tem apenas quatro juízes.]
MC Alguns candidatos à presidência pretendem aumentar a pena para tráfico de drogas. Como avalia essas propostas?
MF Isso mostra uma incompreensão do tema da segurança pública no Brasil. Penas longas não resolvem a criminalidade. A população carcerária só aumenta e os índices de violência também.
MC Sempre quis ser advogada?
MF Quando era criança, pensava que viveria da dança. Mas um dia, na escola, surgiu a ideia de cursar direito. Em um trabalho, tive que defender a Capitu e provei que ela não traiu Bentinho [personagens do livro Dom Casmurro, de Machado de Assis]. Consegui até um laudo psicológico que dizia que Bentinho tinha complexo de Édipo e que tudo não passou de uma fantasia dele. Quando falei sobre essa escolha para minha família, meu irmão disse: “Nossa, que careta!”, e meu pai: “A gente vai apoiar você no que fizer” [risos].
MC Por que, entre tantos problemas que existem no país, decidiu trabalhar com os presos?
MF Sou contestadora desde criança. Quando meu pai me contava histórias para dormir, eu mudava tudo: o enredo, o nome dos personagens. Meu irmão ouvia quietinho. Minha família me deu uma formação humanista, de esquerda. Meu pai é ator de teatro, minha mãe é cantora e meu irmão, músico. Estudei em um colégio de classe média alta no Leblon, mas meu irmão nunca me deixou virar patricinha. Quando eu era criança, me levava em apresentações de música que fazia nas favelas. Na faculdade, entrei para o movimento estudantil e depois procurei estágio na Defensoria Pública, na área de execução penal. Meu contato com os presos começou ali. Depois veio o convite para trabalhar no Conselho Penitenciário e, em 2011, assumi a presidência.
MC Seus pais tentaram dissuadi-la de trabalhar com presidiários?
MF Minha mãe quase teve um treco quando disse que seria advogada criminalista. No momento em que entrei para o Conselho, ficou ainda mais preocupada. Mas meus pais nunca tentaram me dissuadir de nada. O Marcello [Oliveira, advogado, 40 anos], meu marido, também ficava receoso.
MC Você é militante feminista. É a favor da legalização do aborto?
MF Sim, e olha que estudei em colégio de padre e pedi para os meus pais para ser batizada, fazer primeira comunhão e crisma. Mesmo com essa formação, não posso aceitar, como advogada, que a lei interfira em uma decisão da mulher sobre seu corpo. Vivemos em um estado laico. Já defendi uma mulher que ficou algemada na maca de um hospital depois de um aborto malsucedido. Ela fez a curetagem com um policial do lado. De lá, foi para a cadeia, onde ficou por um mês. Ela era pobre e cuidava de seis outros filhos, o mais novo com 8 meses de idade.
MC Sua pós-graduação foi sobre a legalização da prostituição. Como foi esse trabalho?
MF Cresci em Copacabana e sempre convivi com isso. Se a atividade fosse legalizada, a vigilância sanitária poderia inspecionar as condições de higiene dos bordéis. As prostitutas também poderiam ter carteira assinada e, sobretudo, não ser mais exploradas pelos cafetões. Muitas vezes eles não as pagam. E elas não têm a quem reclamar disso, das longas jornadas ou quando apanham dos clientes. Fora que ajudaria a combater a prostituição infantil, esse sim um crime que deve ser mantido na lei.
MC Há feministas contrárias à legalização da prostituição por considerarem que nenhuma mulher faz isso por opção, mas por necessidade.
MF Quem fala isso não conversou com uma mulher que exerce a profissão livremente. Todas as classes sociais têm prostitutas. Elas fazem isso por opção; quem somos nós para julgar a elas e suas escolhas?
MC Você ocupa cargos políticos, advoga em um dos maiores escritórios do Rio, faz ginástica. Onde encontra tanta energia?
MF Sempre fui assim. Na infância era muito moleca, vivia arrebentada e aprontava muito...
MC Você sempre foi precoce?
MF Na adolescência, perdi quatro pessoas muito próximas, uma após a outra, em menos de um ano. Isso me trouxe uma maturidade e um senso de responsabilidade antes do habitual. Com 17 anos, sem precisar, decidi trabalhar em um escritório de comunicação.
MC Quem você perdeu?
MF Primeiro, perdi meu primo-irmão, de 17 anos, de febre reumática. Depois, meu avô faleceu de câncer às vésperas do meu aniversário de 15 anos. Na sequência, meu namorado se suicidou. Foi algo totalmente inesperado, estávamos juntos havia nove meses. Uma morte dessas é muito difícil, até hoje não entendo por que um jovem de 19 anos se joga da janela do 9º andar. Não quero falar muito sobre isso para preservar a família dele. Bom, semanas mais tarde, quando estava tentando recomeçar, ainda muito triste, perdi minha melhor amiga em um acidente de bicicleta.
MC Como lidou com tudo isso?
MF Tive de enfrentar esse tema difícil que é a morte ainda muito jovem, e aprender o que é superação na marra. Eu me perguntava por que aquilo tinha acontecido comigo. Depois, fiquei com medo de tudo. Se meu irmão demorava para chegar em casa, esperava na janela, angustiada. Tratei isso na terapia e aprendi a lidar com o medo. A dança também me ajudou. Dançava desde criança e, naquele ano, foi a primeira vez que me apresentei profissionalmente, o que deixou minha cabeça ocupada. No fim, passei a valorizar ainda mais as pessoas ao meu redor e o momento em que estou com elas.