Quando foi eleita a vencedora do Miss Mundo 1998, Linor Abargil chorou. As lágrimas, gravadas bem de perto pelas câmeras de redes de televisão do mundo todo, não eram, porém, de felicidade. Assim que ouviu seu nome ser pronunciado no microfone do apresentador, Linor liberou toda a dor represada e, ali, naquele instante, entendeu que tinha uma missão.
Apenas seis semanas antes, a jovem de 18 anos, recém-eleita Miss Israel, morava em Milão, onde tinha um contrato com uma agência de modelos. Cansada da rotina de testes e fotos, sentiu vontade de voltar para sua cidade, Netanya. A agência concordou em liberar Linor para sua casa e indicou o agente de viagens, o também israelense Shlomo Nour, para comprar a passagem e levá-la até o aeroporto. No meio do caminho, Nour disse que iria pegar um atalho e logo depois, parou o carro. Ali mesmo, na estrada, no escuro, ele amarrou Linor, a esfaqueou, estrangulou, amordaçou e a estupro várias vezes.
Os detalhes do crime e a jornada de Linor Abargil em busca de justiça estão no documentário “Brave Miss World”, que acaba de entrar para o catálogo da Netflix. Dirigido pela norte-americana Cecilia Peck, o filme mostra a transformação de Linor em uma ativista, que ajuda vítimas a quebrar o silêncio e lidar com suas histórias, como parte de um ritual de cura delas e da própria Linor.
Em entrevista exclusiva para Marie Claire, Cecilia fala das dificuldades de filmar a trajetória da ex-modelo e da importância deste lançamento para mulheres do mundo todo.
Marie Claire: Como a história de Linor chegou até você?
Cecilia Peck: Recebi uma ligação dela, assim que chegou aos Estados Unidos, quando buscava por diretoras mulheres que pudessem transformar sua experiência de sobrevivente de um crime de estupro em um documentário. Ela estava em Los Angeles, então me sentei com ela e fiquei muito impressionada com a forma desembaraçada que Linor falava sobre estupro. Eu realmente nunca tinha ouvido uma pessoa falar do assunto sem sentir vergonha. Ela dizia “por que deveria sentir vergonha? A culpa é dele, não minha”.
M.C.: E por que decidiu fazer o documentário?
C.P.: Linor foi vítima de um sequestro violento e de um estupro quando tinha 18 anos. Na época, ela conseguiu colocá-lo na cadeia, mas demorou dez anos para ter coragem e se sentir preparada para contar exatamente tudo como aconteceu. Aceitei fazer o filme porque a mensagem dessa linda Miss Mundo é muito importante e não deve ser silenciada. Precisamos falar sobre o assunto.
M.C.: Qual foi a parte mais difícil de realizar este trabalho?
C.P.: Acho que foi a antecipação de Linor em acreditar que estava preparada para fazê-lo. Toda vez que gravávamos com outras vítimas, ela precisava falar sobre sua história e relembrar aqueles momentos a fez querer parar várias vezes. Seu trauma voltava à tona. Ficamos sem gravar durante seis meses. Com o tempo ela entendeu que olhar para a câmera e contar sobre o crime a deixaria mais forte, além de ajudar os outros que ainda permanecem calados. Também tivemos muitos desafios financeiros, foi difícil levantar fundos para contar a história. Acho que o principal motivo foi a demora para a transformação de Linor realmente acontecer.
M.C.: O documentário mostra Linor viajando ao redor do mundo e conversando com outras vítimas, incluindo estrelas de Hollywood. Foi difícil convencê-las a falar?
C.P.: Não, assim que ficaram sabendo do filme, se ofereceram para ajudar. Elas nunca tinham ido para a frente de uma câmera para falar sobre o assunto, algumas jamais tinham contado para alguém sobre o crime que sofreram. Acho que a participação no documentário fez muita diferença para elas e para as pessoas ao redor, que puderam ajudar mais. Essas mulheres são muito corajosas.
M.C. De tantos casos filmados, qual mais te impressionou?
C.P: Tem uma sequência do filme, gravada na África do Sul, onde Linor visita um centro que reúne crianças e adolescentes vítimas de estupro. Lá, ela conversou com algumas dessas garotas e é perceptível, através da câmera, ver a transformação acontecer. Quando ouvem a história, essas meninas realizam a ideia de que se aconteceu com a Miss Mundo, tudo bem, elas não são as únicas, não estão sozinhas. E também vemos a transformação de Linor, que ali realmente começa acreditar que pode fazer uma grande diferença no mundo.
M.C.: Por que acredita que Linor teve coragem para se tornar uma porta-voz deste tipo de crime?
C.P.: Quando contam sobre o crime, vítimas de estupro costumam ouvir que a culpa é delas, que o melhor é se calar e coisas do tipo. Quando Linor ligou para sua mãe contando que um homem a tinha estuprado e tentado mata-la, ouvi um “não tome banho, vá até o hospital e a polícia que eles irão te ajudar”. E é isso, a única coisa que uma vítima de estupro quer ouvir é “vou te ajudar”, não importa de quem seja. Isso encorajou Linor a fazer a denúncia e, posteriormente, se tornar uma ativista. No filme, vemos essa transformação, de uma jovem vítima de um crime violento, em uma mulher, mãe, advogada competente e líder, que ajuda outras mulheres. Para mim, é a jornada de uma heroína, ela é uma mulher-maravilha, que luta por justiça e cura.
M.C. O que você aprendeu pessoalmente neste trabalho, como mulher?
C.P.: O filme fala sobre a coragem que é preciso ter para fazer justiça. E fui muito inspirada por Linor, não só por ela ter tido coragem, aos 18 anos, de depor contra um estuprador em série durante o ano em que participava do Miss Mundo. Mas também porque, dez anos depois, ela foi ainda mais corajosa por pegar para si a missão de contar sua história e ajudar outras vítimas do mesmo crime. Além disso, aprendi que, mesmo que você tenha sorte o bastante para ver a justiça ser feita, o que é raro acontecer em casos de estupro, se curar pode demorar uma vida e é preciso seguir alguns passos para que o trauma não engula outros aspectos da vida. O suporte da família, dos amigos e terapia são indispensáveis para ter uma vida saudável novamente. Documentários sempre tratam de assuntos muito importantes e trabalhar com assuntos sociais é como um chamado, uma missão, toma muito o tempo, este me tomou cinco anos. No entanto, me sinto feliz de poder contar histórias de outras mulheres que lutam pelo o que acreditam a custo de sua coragem.