Ela foi chamada de “uma santa no inferno”. Também foi acusada de ser “a louca de Burundi”. Nada disso abalou Marguerite Barankitse que mora em Burundi, o terceiro país mais pobre do mundo de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU). A africana da etnia tutsi foi violentada, sobreviveu a um genocídio provocado pela tribo rival, os hutus, e, mesmo assim, superou o trauma com valentia. Hoje, dedica sua vida às crianças que são vítimas das guerras tribais em seu país. Em sua primeira visita ao Brasil, para o seminário realizado pela jornalista Ana Paula Padrão, a ativista humanitária conseguiu que uma plateia lotada se levantasse para cantar em uníssono “Imagine”, dos Beatles. Ela acredita que, assim como na canção, é o amor que ajuda a salvar vidas e fazer um futuro melhor.
Futuro que Marguerite, hoje aos 58 anos, não imaginava como seria transformado em uma manhã de domingo. Era outubro de 1993. Ela já trabalhava em uma organização dentro da Igreja Católica ajudando adultos e crianças hutus nas dependências do episcopado de Ruyigi. Na manhã do dia 24, assaltantes tutsis armados atacaram o local onde ela estava. Depois de a amarrarem, tirarem suas roupas e a violentarem, eles fizeram Maggie assistir a uma cena cruel: assassinaram dezenas de pessoas na sua frente e atearam fogo no lugar. Um dos estudantes que conseguiu escapar da matança a ajudou a escapar. “Das 72 pessoas que vi morrer, 62 eram de minha família entre tios, primos e sobrinhos. Mesmo assim, nunca considerei que quem fez aquilo era um criminoso”, afirma. “Na hora, só conseguia me lembrar de minha mãe dizendo que minha vocação era distribuir felicidade”.
O que a ajudou a superar o trauma foi o trabalho que realizou com as 25 crianças que ficaram órfãs naquela chacina e que pegou para criar. “Estaria mentindo se dissesse que não pensei em suicídio. Não sou um anjo, queria me vingar, pegar nas armas”, conta. “Consegui superar a violência que sofri ao ver a esperança e o perdão nos olhos das crianças”. Maggie ficou frente a frente com seus carrascos tempos depois no Tribunal da cidade. “Queria que eles não fossem penalizados, mas tivessem consciência do que fizeram para tentar resgatar o lado bom deles”. Abandonar o país que tinha virado as costas para ela também foi um dos pensamentos que deixou para trás. Aquela era a sua família e era por ela que iria lutar.
MAISON SHALOM
Sem casa, sem dinheiro, mas com a ideia de não desistir e não deixar aquelas crianças órfãs, Maggie tentou ajuda financeira nos mais diferentes locais – do governo de seu país, passando pela Unicef e pela Igreja – e, naquele momento, todos a consideravam uma louca. “Mas não desisti. Comecei com 25 crianças. Sete meses depois eram 300. Dois anos mais tarde eram 4 mil. Mais de uma década depois, são uma multidão porque a guerra demorou muito tempo”. Maggie considera todos seus filhos. “Muitos deles hoje são médicos, engenheiros, advogados ou economistas”, diz, orgulhosa.
Tirando forças de sua ira e da indignação que sentia, mas, sobretudo, da fé e do amor como ela gosta de reforçar, Maggie criou a Maison Shalom. Mais de 50 mil crianças já passaram por ela. Não apenas criá-las, o objetivo do projeto era promover a reintegração das famílias. Ela conseguiu coletar doações e, com o tempo, o projeto ganhou um fôlego que nem ela imaginava. Construiu casas populares e um hospital dedicado a fazer, especialmente, partos de mulheres pobres ou portadoras de HIV, por exemplo. Atualmente, a organização atua não apenas em Burundi, como também no Congo, e já ganhou diversos prêmios, como o de Prevenção de Conflito, da Fundação Chirac, em 2011.
PERDAS E SUPERAÇÕES
Marguerite acredita que todas as perdas pelas quais passou – a do pai, aos 5 anos, e a da mãe, vítima de câncer, aos 32 – a ajudaram a superar os obstáculos que passariam pela sua vida. “Cuidei de minha mãe durante seis meses. Ela me dizia para acreditar no amor e ter esperança sempre, mesmo naquele momento. Trouxe isso para o resto de minha vida”, diz.
Essa mensagem de amor é a que ela quer transmitir como legado para os milhares de filhos que criou e para o mundo. “Não há nada que resista ao amor”, filosofa. “Tive meu tempo de chorar, mas agora é hora de celebrar e transformar o ódio em amor”. Para as brasileiras, a mensagem que ela quer deixar é de força. “A mulher tem uma vocação sublime e carrega o mundo em seu coração com o poder de iluminar a vida”.
#BRINGBACKOURGIRLS
Sobre o sequestro das mais de 200 adolescentes nigerianas pelo grupo extremista Boko Haram, que age em nome de uma suposta "guerra santa" e contra o modelo de educação "ocidental" seguido no país, Maggie acredita na vitória do amor sobre o ódio. “É uma vergonha para a humanidade. Em pleno século XXI, já deveríamos ter ultrapassado esse tipo de coisa. Mas estamos nos afundando cada vez mais. Deveríamos nos juntar para dizer um ‘basta, chega disso’”.