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Anjos da Morte: como é a rotina das enfermeiras que buscam doadores de órgãos nos hospitais brasileiros

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O time de profissionais que busca doadores de órgãos é, em muitos casos, majoritariamente de mulheres  (Foto: LALO DE ALMEIDA)

A enfermeira Luciana Ribeiro Martins, 38 anos, entrou numa pequena sala de um hospital de São Paulo e deu de cara com outra mulher. Era uma noite fresca do final de 2008 e muitas coincidências as uniam. As duas tinham a mesma idade, eram mães e haviam escolhido o mesmo nome para suas filhas de quatro anos: Isabella, assim mesmo, com dois “Ls”. A diferença entre as crianças, no entanto, era abissal. Enquanto a filha da enfermeira dormia, cheia de saúde, em casa, depois de mais um dia na escolinha, a outra Isabella acabara de morrer, depois de dias de agonia no hospital. Luciana queria abraçar aquela mãe e confortá-la, de alguma maneira, pela perda irreparável. Mas estava ali com uma missão: perguntar se ela aceitaria doar os órgãos da filha para salvar outras vidas.
 

“Foi minha primeira vez nesse papel. Uma prova de fogo”, diz Luciana, que trabalha numa área da medicina chamada captação de órgãos, responsável por encontrar doadores para transplantes. Depois de uma longa e emocionante conversa, a mãe de Isabella decidiu doar os órgãos da filha e, no final, as duas se abraçaram. “É um gesto que faço em nome dos que vão receber os órgãos, como agradecimento. Eu, que estava calma até então, não consegui conter a emoção. Choramos muito juntas”, diz a enfermeira.

Depois de anos cuidando de pacientes graves e em tratamento intensivo, Luciana havia acabado de mudar de time: entrou para a “turma” da doação por enxergar, ali, melhores chances de salvar vidas. Já são seis anos na área e, desde então, ela conseguiu encontrar órgãos para centenas de pacientes, que estavam entre a vida e a morte. O Brasil possui hoje cerca de 400 profissionais com essa função, na sua grande maioria mulheres. É muito graças a elas que o número de transplantes (e de vidas salvas) cresceu 100% na última década no País, de acordo com o Ministério da Saúde, que contabilizou mais de 24 mil cirurgias em 2012.

Enfermeiras cruzam os hospitais brasileiros atrás de órgãos para salvar vidas (Foto: LALO DE ALMEIDA)

Por cinco semanas, Marie Claire acompanhou o cotidiano de enfermeiros em São Paulo e arredores, a região que mais realiza o procedimento no Brasil. Todos os ouvidos pela reportagem relatam sofrer preconceitos diários. Muitos colegas de hospital os chamam de urubus, como se espreitassem carniça ou “torcessem” pela morte de quem luta pela vida. “Mas isso não é verdade”, diz a enfermeira Nelly Izumi, 33 anos, do serviço de buscas do Hospital das Clínicas de São Paulo, “A gente está lá para ajudar alguém. Não quero que ninguém morra. Mas, se acontecer, é meu papel estar presente”.

Diferente do falecimento por parada cardíaca, a morte cerebral acontece quando o cérebro para de funcionar de maneira irreversível. Não tem nada a ver com coma, coma profundo ou estado vegetativo. É morte mesmo. Mas com o coração pulsante. Algo ainda difícil de entender. Por isso, para conseguir fazer seu trabalho, a equipe da doação de órgãos também precisa explicar o processo a parentes e médicos e enfrentar o tempo escasso – minutos fazem a diferença na hora de um coração mudar de dono.
 

Pode parecer piegas, mas o que faz essa turma seguir em frente é mesmo a vontade de fazer diferença – às vezes, um paciente com morte cerebral consegue promover até cinco transplantes com diferentes órgãos como pulmão, fígado, coração, rins. Portanto, cinco vidas. “O meu trabalho é cuidar de gente morta para salvar gente viva”, resume Luciana, que precisou adaptar as palavras para explicar o seu dia a dia à filhinha Isabella, hoje com 9 anos. “Ela me pergunta: ‘por que a mamãe precisa sair às quatro da manhã?’”, conta. “Eu respondo: ‘porque tem um mortinho que vai ajudar um monte de gente a viver’. Essa é a ideia que tento passar. Quando volto, à noite, ela quer saber se deu certo e quantas pessoas ‘o mortinho’ conseguiu ajudar”.

HABILIDADE ESPECIAL
Assim como Luciana, os enfermeiros que escolheram esse ramo delicado da profissão, possuem uma característica especial (e incomum): a habilidade para falar com as pessoas sobre a morte. É através das palavras que eles, ao mesmo tempo, confortam famílias em luto e concretizam mais doações. Num espaço em que o silêncio e a negação prevalecem, eles enxergam uma nova vida, e falam dela em voz alta. “Você vê que faz a diferença quando a família, que estava muito transtornada, te dá um abraço no final e agradece”, diz Roberta Cardoso dos Santos, 29 anos, funcionária do hospital Albert Einstein que atende no Hospital Municipal do Tatuapé. “No interior, onde já trabalhei, as famílias doadoras voltavam ao hospital para me oferecer um pão caseiro, ou conversar. Nessa hora, eu via que, embora não pudesse mudar nada sobre a perda que eles tiveram, podia confortar alguém.”

Ao ouvi-los falar, a imagem do profissional robótico e frio cai por terra. Eles têm a voz suave, causam empatia e se colocam no lugar do próximo. Genuinamente. Por conta do que vivenciam diariamente, entendem melhor o que a maioria de nós reluta em aceitar: estamos aqui hoje, mas podemos não estar amanhã. “Aprendi a valorizar o hoje, o agora, a minha família. E digo ‘Eu te amo’ com muito mais facilidade”, diz Roberta, que acabou se tornando uma terapeuta informal do luto. “Uma vez, uma moça que havia perdido a mãe me pediu para pintar o cabelo da mãe no necrotério. Ela disse que mãe sempre pedia esse favor e ela respondia ‘No próximo fim de semana eu vou’. Só que não deu tempo.”

Hoje a decisão é 100% da família, que assina o termo de doação (foto acima)  (Foto: LALO DE ALMEIDA)

DO OUTRO LADO DO PROCESSO
A veterana em enfermagem Renata Leite, 41 anos, migrou para a área há dezesseis anos, quando as doações ainda engatinhavam no Brasil e a Escola Paulista de Medicina precisava de uma especialista pediátrica para desenvolver o setor de transplantes em crianças. “Aprendi na prática e me apaixonei.” Por anos, ela teve contato direto com os beneficiados do processo -- no Brasil, 38 mil pessoas têm vidas comprometidas por causa de um fígado que não funciona, um rim que condenou seu dono a diálises ou um coração que pode parar a qualquer momento. “Eu era a pessoa que ligava para quem ia receber o órgão. Quando você faz esse telefonema, é inesquecível, não tem como explicar. O paciente sai da casa dele correndo, e quando chega ao hospital é como se tivesse ganhado na loteria. Fica repetindo: ‘Foi você que me ligou, né? Foi você, não foi? Pessoal, foi ela que me ligou e disse que eu ia ganhar o meu órgão’”. É essa emoção que leva muitos enfermeiros a se interessar pela área, mesmo que ainda hoje ele seja praticamente ignorada pelas faculdades. Quem quer entender o tema procura especializações e cursos paralelos.

É só depois de o paciente ter o diagnóstico de morte encefálica – e dois médicos precisam concordar em fazê-lo – que os enfermeiros convocam os parentes para uma conversa. São as chamadas entrevistas familiares, em que um médico anuncia a morte do paciente e, na maioria das vezes, sai da sala logo em seguida. O enfermeiro acolhe os familiares, os ouve e tira as dúvidas sobre o caso. Esses encontros são os momentos mais emotivos – e cruciais – da profissão. “Você amadurece como pessoa. Dá outro valor para a vida e entende que não dá para recuperar o tempo perdido”, diz Renata.

ELES TAMBÉM SOFREM
Mesmo estando acostumados com as tragédias, os captadores de órgãos sofrem com a morte como qualquer outra pessoa. Ao recordar de um caso ocorrido há dois anos, a enfermeira Nelly Izumi, do Hospital das Clínicas, não consegue conter o choro. “Era uma moça da minha idade, tinha sofrido um AVCH [derrame]. A família toda estava lá e a mãe não aceitava o fato de jeito nenhum, pedia para ir no lugar da filha. Eu vi o desespero e imaginei minha mãe naquela situação. Foi muito triste.” Nelly diz que, nos primeiros anos, era mais comum “desabar” depois de uma entrevista. Com o tempo, passou a ter mais domínio sobre as emoções – mas aprendeu que controle demais não traz benefícios.

"NUNCA TINHA PRESENCIADO NADA PARECIDO, UMA CIRURGIA DE RETIRADA COM O CORAÇÃO BATENDO"

“Quando é assim, tem que chorar. Os enfermeiros também são humanos”, diz o coordenador de Nelly, Edvaldo Leal de Moraes, há 19 anos na busca de órgãos. Ele lembra seu primeiro plantão, em 1996: “Avisaram que havia um doador de 22 anos, acidente de moto, e eu tinha de transferi-lo de hospital para a cirurgia de retirada. Lembro como se fosse hoje, fiquei 36 horas em plantão porque queria acompanhar o processo até o final. Nunca tinha presenciado nada parecido, uma cirurgia de retirada com o coração batendo. Quando o vi no centro cirúrgico com os braços estendidos, me fez pensar em Cristo. Chorei muito. Pensei que eu fazia parte daquilo, que outras pessoas iam ser salvas. Fui fisgado naquela hora”.
 

A íntegra desta reportagem você confere na revista Marie Claire de abril, nas bancas de todo o país. Corra para ter a sua!


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