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A menina que não sente dor: conheça a história da americana de 13 anos que sofre de uma síndrome rara

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Facada, queimadura ou um corte profundo: Ashlyn não tem dor com nada disso (Foto: Jeff Riedel)

Em uma noite qualquer, durante a semana, Ashlyn Blocker preparava um macarrão instantâneo quando deixou a colher cair na panela de água fervendo. Antes de pedir ajuda, Ashlyn, de 13 anos, decidiu resolver sozinha a situação: sem pensar muito, enfiou os dedos na água e tirou a colher. Quando olhou suas mãos e viu a pele vermelha, percebeu que havia feito besteira. Correu para a pia e as colocou sob a água corrente. Só então chamou a mãe. Tara Blocker largou o que estava fazendo para acudir a filha – assustada, esperava pelo pior. Há 13 anos, ela vive um medo constante esperando sempre pelo pior. Hoje, dois meses depois, ela consegue contar essa história rindo. Mas as ameaças, diz, são diárias – e sempre há uma nova. “Minha preocupação agora é que ela começou a usar a chapinha para alisar o cabelo e aquilo fica muito quente.”

Enquanto me conta essa e outras histórias na sala de sua casa, na Geórgia (EUA), Tara usa uma camiseta com a frase: “Acampamento sem dor, mas com esperança”. É do grupo criado pela família para crianças que, como Ashlyn, não sentem dor. Ela e o marido, John, buscam de todas as formas saber mais sobre insensibilidade congênita à dor, a doença da filha.

Ashlyn parece uma adolescente como qualquer outra. Ela é ativa e animada. Corre de um lado para outro sem se preocupar com seu corpo, para desespero dos pais. Justamente por não sentir dor, ela se coloca em constante perigo. Até mesmo coisas mais simples, como comer um sanduíche, podem ser um risco. “Ela tira do forno e leva direto para a boca, apesar de já termos dito mil vezes para testar antes com as mãos se já está frio o suficiente”, diz a mãe. Ashlyn pode perceber a temperatura das coisas, mas não a ponto de sentir algo quente queimar sua boca. Quando possível, a família investe para preservar a segurança da filha, caso do aparelho dos dentes: ela usa a versão de plástico invisível porque os tradicionais de metal podem cortar sua gengiva ou língua sem que perceba. Outra precaução é a pulseira de silicone que não sai de seu pulso e que traz um aviso importante: “Incapaz de sentir dor – não produz suor”.

Tara e John não gostam de deixar Ashlyn sozinha na cozinha, mas é algo com que tiveram de aprender a lidar, uma concessão ao crescimento e amadurecimento da filha. E, apesar de elogiarem muito o senso de responsabilidade da menina, não conseguem esquecer as tantas vezes em que sua condição a colocou em perigo. Aos 2 anos, Ashlyn deixou as palmas das mãos em carne viva quando o pai lavava o quintal com uma mangueira de pressão e, num momento de descuido, não viu a menina colocar a mão na saída de vapor fervendo. Não muito tempo depois, foi atacada por um formigueiro inteiro no jardim e, só quando já estava com mais de 100 picadas pelo corpo, chamou a mãe reclamando de “bichinhos”. Mais crescida, andou com o tornozelo quebrado por dois dias até que os pais se dessem conta de que havia algo errado.

Quando nasceu, Ashlyn não chorou. Também não expressou reação nenhuma quando teve assaduras tão feias que faziam a mãe se contorcer a cada troca de fraldas. “O pediatra me mandava trocar a fórmula, passar pomada e manter seco, mas o que eu estranhava era o fato de ela não reclamar sequer de conforto ou esperança. “John e eu nunca tínhamos ouvido falar dessa doença, estávamos totalmente no escuro, então ficamos apavorados.”

No destaque, a menina com as mãos feridas, aos 2 anos. Na foto maior, com o pai e os irmãos (Foto: Reuters / Everett Kennedy Brown (Epa/Corbis))

RISCO ZERO
A primeira providência dos dois foi livrar-se de tudo que oferecesse risco ao bebê, de móveis com quinas perigosas a enfeites cortantes. Forraram todo o piso com o carpete mais macio que encontraram. Nunca deixaram Ashlyn andar de patins, nem de bicicleta. A vestiam com diversas camadas de roupa para deixá-la protegida de arranhões, cortes e quedas. A babá eletrônica ficava ligada 24 horas por dia e eles prestavam atenção até num ranger dos dentes mais forte da filha. E quando, mesmo assim, não conseguiam dormir, a levavam para a sua cama e Tara ficava a noite toda segurando as mãozinhas de Ashlyn para que ela não se machucasse durante a noite coçando muito forte a pele ou os olhos.

Quando Ashlyn tinha cinco anos, os Blockers decidiram que a única forma de encontrar outras pessoas com a mesma condição da filha era levantando uma bandeira. Entraram em contato com o jornal da cidade, que publicou um artigo sobre Ashlyn em outubro de 2004. A agência de notícias Associated Press comprou a matéria e a foto da menina foi parar ao lado da de George W. Bush na home do site MSN. O programa de TV “Good Morning America” pediu uma entrevista com a menina. Nos talk shows, todos queriam saber das histórias – aparentemente engraçadas – em que ela se machucou sem perceber (e sentir). Até a mídia internacional a transformou em notícia. Toda essa repercussão ajudou a colocar a família em contato com cientistas e especialistas do mundo todo para ajudá-los a entender mais sobre a condição da filha.

Um deles foi o reumatologista Roland Staud, professor na Universidade da Flórida, que os convidou para ir até seu consultório, onde ele pesquisava a ausência crônica de dor havia 15 anos. As implicações da doença de Ashlyn são profundas. Durante anos, o professor fez testes em seu material genético e encontrou duas mutações no gene SCN9A, responsável por enviar o alerta de dor ao cérebro. O mesmo gene, com uma mutação distinta, leva a dores severas e crônicas, numa síndrome inversa à de Ashlyn. Se pudesse entender como a mutação aconteceu na menina, especula, ele poderia ocasioná-la nas pessoas que sofrem de dores crônicas e aliviar seu sofrimento.

A conexão entre o gene SCN9A e a intensidade da dor foi descoberta em 2006 por Geoffrey Woods, um geneticista da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. “Eu trabalhava em Yorkshire, onde havia muitos imigrantes paquistaneses e o número de casamentos entre primos de primeiro e segundo grau era alto”, diz Woods. “Havia muitas crianças com doenças genéticas.” Numa viagem ao Paquistão, lhe pediram para ver um menino em Lahore que, disseram, não sentia dor. “Mas antes que eu chegasse lá o menino morreu. Me contaram que, como presente de aniversário, ele quis pular do telhado de sua casa térrea. Apesar de ter saído aparentemente ileso da queda, ele morreu no dia seguinte por conta de uma hemorragia interna sem sentir nada. Quando voltei para a Inglaterra, encontrei outras três famílias com filhos com a mesma condição – com feridas múltiplas, mordidas na língua, nos lábios, fraturas e cicatrizes. E em muitos casos os pais quase perderam a guarda das crianças por suspeita de abuso físico.”

DOR FÍSICA X DOR EMOCIONAL
Ao lado dos diplomas na parede da sala do professor Staud estão penduradas fotos de Ashlyn. Ele a acompanha desde tão pequena que se tornou quase da família. “A história dela nos oferece um excelente exemplo de como a vida pode ser complicada sem a orientação da dor”, diz. “A dor é uma dádiva e ela não a recebeu.” Os testes feitos por ele mostram que Ashlyn pode sentir cócegas e pressão e diferenciar um toque suave de um cutucão, mas não percebe variações de temperatura nem a dor propriamente dita. Ele também a avaliou psicologicamente para determinar se ela poderia sentir algum tipo de dor emocional ou empatia. Descobriu uma menina brilhante, doce e amigável, mas o resto é preciso esperar para ver. “Ainda há muitas perguntas sem respostas. Não sabemos como ela vai se envolver com as pessoas amorosamente.” Ele se refere, principalmente, à dor emocional que muitas vezes nos atinge também de forma física. A dor do coração partido, a perda de um grande amor ou o fim de um relacionamento nos causam um tipo de dor que pode ser determinante sobre como agimos em nossas relações íntimas para toda a vida.

A questão é: uma pessoa com inabilidade de sentir dor física pode ser afetada em seu desenvolvimento emocional? “É completamente possível que algumas conexões da transmissão da dor funcionem em Ashlyn. E esse é um dos motivos pelo qual acompanhamos seu desenvolvimento tão de perto. Ela está entrando numa fase de mudanças hormonais agora. Os receptores de estrogênio na puberdade estão diretamente associados ao processo de dor.

Será que ela sentirá medo, insegurança? Até agora seus principais desafios foram físicos, mas, com a maturidade, suas ameaças se tornarão emocionais. Eu não a vejo chorar muito, por exemplo. O que isso significa?” Ashlyn chora, sim, defende a família. Ela chorou quando seu cachorro fugiu de casa no ano passado. “Ela pode sentir empatia”, insiste a mãe. “Não sei se isso pode ser apontado nos exames, mas eu sinto que ela sente, sei no meu coração.”

Ashlyn com as amigas (Foto: Jeff Riedel)

VIGILANTES DA DOR
Além do doutor Staud e dos pais e irmãos, Ashlyn tem outros 730 “alarmes artificiais de dor”. São os habitantes da pequena cidade em que ela mora, que não só sabem de sua doença como zelam por ela o tempo todo. “Uma vez ela cortou o pé e não percebeu. Quando a vi estava cheia de sangue e fui socorrê-la”, diz Michael Carter, professor de música da menina. Assim como ele, todos parecem sentir Ashlyn como um ser estranho e especial e têm orgulho de cuidar dela. “Ela tem um jeito especial de enfrentar tudo isso. Não tem vergonha de dizer ‘Eu sou assim’ e contar para as pessoas sobre sua doença. E ela adora abraçar, é uma menina muito carinhosa”, diz o professor.

Quando Ashlyn falou da doença na escola, a primeira pergunta que ouviu dos colegas foi se era uma espécie de super-homem. Poderia sentir um soco na cara? Poderia andar sobre carvão em brasa como se estivesse caminhando na grama? Sentiria dor se levasse uma facada? As respostas: não, não, sim, não. Ela pode sentir pressão e texturas. Pode também sentir um abraço. “Todo mundo na minha classe pergunta e eu explico mil vezes: eu posso sentir a pressão, mas não sinto dor.”, diz. São segredos que seu corpo carrega que podem ser valiosos para desvendar os mistérios da dor. Por isso, Ashlyn e sua família já se conformaram com o fato de que ela será testada durante toda a sua vida. Assim como também já assimilaram que ela nunca estará totalmente protegida de si. É impossível querer prever todos os perigos com antecedência, então o que ela pode fazer é contar com todos que estão à sua volta para ajudá-la. “As pessoas ficam dizendo ‘não sei como vocês conseguem lidar com isso.´ E eu apensas respondo: ‘Não sei, venha até a nossa casa e me diga o que não te parece normal.”

COMO FICA NA VIDA ADULTA?
Quando Karen Cann e sua irmã Ruth eram crianças na Escócia, ninguém sabia explicar o que havia de errado com elas. Seus pais viviam com medo de as filhas se machucarem, mas tentavam disfarçar sua diferença e parecer normais. “Nós não queríamos ser consideradas aberrações”, diz Karen, hoje com 35 anos. “Quero dizer, sei que é o que somos.” Elas não transpiram nem sentem cheiro (assim como Ashlyn).

Durante toda a infância, elas estavam sempre com gessos e queimaduras pelo corpo, e a mãe tinha que enfrentar olhares suspeitos dos médicos. Só aos 20 anos elas conheceram o geneticista Geoffrey Woods e, depois de alguns testes, ele comprovou que ambas as irmãs tinham mutações no gene SCN9A. Quando Karen começou a se interessar pelos homens, ela lembra de se sentir muito constrangida com as cicatrizes de seu corpo a ponto de nunca usar saias para esconder as pernas. Mas ela e a irmã conseguiram passar por essa fase e se formaram na niversidade. Hoje, ambas têm namorados e empregos bacanas. Quando transa com o marido, Karen diz que pode sentir prazer – ou, pelo menos, pensa que pode. “A intimidade é agradável”, diz. “Eu provavelmente não sinto o mesmo que outras pessoas, mas é gostoso.

Aos 31 anos, ela teve sua primeira filha de parto cesariana. A menina nasceu saudável, mas algum tempo depois a mãe começou a sentir a parte direita do corpo um pouco rígida. Ficou assim por semanas, até que ouviu um barulho estranho. Como se algo tivesse quebrado dentro de si, um “crack”. Então a dificuldade para andar ficou insuportável. Os médicos descobriram que ela havia fraturado a pélvis em muitos pedaços durante o parto e estava sangrando internamente. Foram seis meses no hospital e nenhum tipo de dor.

Ao ouvir a história de Ashlyn, Karen diz se sentir bem. “Minha irmã e eu sempre vimos nossa condição de uma maneira negativa, tentávamos esconder de todo jeito. Quero, assim como a família de Ashlyn, disseminar a consciência do que é viver sem dor.


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