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"Eu não ando atrás de ninguém", afirma mulher de Sebastião Salgado

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Sebastião Salgado e Lélia Wanick Salgado (Foto: Ricardo Beliel)

Faz 45 anos que Lélia Wanick Salgado, 66, vive em Paris, mas o sotaque capixaba ainda é muito presente. A fala mansa agrada os ouvidos logo que começa a contar sobre o almoço, horas antes, com o Príncipe Albert II de Mônaco. Ela e o marido, Sebastião Salgado, 70 anos, um dos maiores fotógrafos do mundo, receberam o monarca para uma visita guiada na exposição Gênesis, que ficou até janeiro na Maison Européenne de la Photographie, na capital francesa. Lá estavam 245 fotos do projeto de Salgado e Lélia, que levou oito anos e 32 viagens para ser concluído, registrando paisagens naturais intocadas, espécies animais e tribos como os nenets e seus rebanhos de renas no Círculo Ártico.

As mesmas fotografias, que contemplam o livro homônimo, podem ser vistas no Sesc Santo André (SP) até 4 de março e, a partir do dia 13, na Usina do Gasômetro, em Porto Alegre. Em junho, a exposição estará em Belo Horizonte e, em setembro, irá para Brasília. Quando Lélia recebeu Marie Claire para duas entrevistas no escritório da Amazonas Images, agência que dirige e que criou com Salgado em 1994, estava justamente desenhando a cenografia dessa mostra. É de uma sala de vidro, com vista para o canal Saint-Martin, que ela organiza as exposições internacionais do marido, desenha e edita os livros de fotos, como Êxodos (2000) – hoje já são mais de dez obras. Nesse mês, será lançada no Brasil a biografia do artista, Da minha terra à Terra (ed. Paralela, selo da Companhia das Letras). Tudo o que diz respeito ao trabalho do fotógrafo passa pelo crivo de Lélia. Mas, ai de quem ousar descrevê-la como “a grande mulher por trás do grande homem”. Ela reage: “Eu não ando atrás de ninguém, ando ao lado”, diz.

Há anos, Lélia acompanha o marido em boa parte das viagens, mas nem sempre foi assim. Ela chegou a permanecer meses longe de Sebastião com a chegada dos filhos, Juliano, hoje com 40 anos – cineasta que mora em Berlim (e acaba de realizar um documentário sobre o pai com o alemão Wim Wenders) – e, em especial, Rodrigo, 34, portador da síndrome de Down, cuja saúde exigiu cuidados redobrados. “Sinto orgulho ao ver o Rodrigo independente. Ele é a grande vitória da minha vida”, afirma, emocionada. Ainda mais quando lembra que criou os meninos sozinha, enquanto Salgado se embrenhava em cantos remotos do planeta, em zonas de conflito e lugares de pobreza extrema.

Natural de Vitória (ES) e caçula de oito irmãos, foi lá que ela conheceu o marido, quando cursava Aliança Francesa. Mais do que um companheiro para a vida, encontrou nele, na época um estudante de economia, a pessoa certa para dividir seus sonhos. Lélia queria viajar o mundo. Tião, como ela o chama, também. Casaram-se quando ela tinha 20 anos e, aos 22, depois de perder o pai e a mãe num intervalo de dois meses, seguiram para Paris. Formou-se arquiteta e só mudou de área quando começou a trabalhar com fotografia em revistas especializadas, como a Photo Revue, e na direção da galeria da Magnum Photos, agência de Henri Cartier-Bresson. Aqui ela fala de trabalho, família e muito mais.

Lélia em uma viagem à Papua Nova Guiné, em 2008 (Foto: Sebastião Salgado)

MARIE CLAIRE Você e o Sebastião estão juntos há 50 anos, mas passaram muito tempo longe um do outro. Como lidou com esses períodos de distância no casamento?
LÉLIA WANICK SALGADO
A distância ajuda tanto a provocar quanto a atenuar conflitos. Crise pode ser quase um enjoo do outro. E às vezes dá vontade de viver sem assumir a rotina de casada. Ajuda a espairecer. Você não precisa encontrar quem não gosta, pode ficar quieta, ver o filme que quer. São exemplos simples, mas fazem o dia a dia. Quando Tião chegava das viagens, havia mudado um pouco. E eu também estava outra, porque tinha um marido, filhos, mas estava sempre sozinha. Precisei ser forte, não tinha com quem contar.

MC Cansou de viver sozinha?
LWS
Tinha horas que pensava: ‘Será que essa coisa da fotografia é mais importante do que eu?’ Mas a verdade é que respeito muito a escolha dos outros. Prefiro mil vezes me adaptar a frustrar alguém. Jamais pedi ao Sebastião que parasse de viajar ou que voltasse antes, por exemplo.

MC E como você lidava com a falta dele no cotidiano?
LWS
A saudade física é o que eu acho mais difícil. Você quer estar perto, sentar para ver televisão agarradinho, namorar.

MC É mais difícil do que levar uma casa sozinha nas costas?
LWS
É, porque com o resto você se vira. Quando os meninos eram pequenos, eu tinha uma babysitter que ia buscá-los na escola, e uma faxineira, duas ou três vezes por semana. Quando eu chegava do trabalho, umas 19h30, abria a porta e o Rodrigo pulava no meu colo. Aí eu ia fazer o jantar, assistia ao jornal, fazia o dever de casa com o Juliano, tomava meu uísque e fumava um cigarro. Depois, ainda contava história e cantava com eles na cama. Como é que eu fazia tudo isso? Não sei! Só sei que eu fazia. E tudo saía direito. Mas, em relação à saudade do marido... Não é o caso de arranjar outro homem, porque não é a mesma coisa. O carinho que tenho por aquela pessoa é diferente, a outra não vai suprir. Não é saudade só de um corpo. Poderia até acontecer de ter um caso, numa hora em que estava precisando. Acontece. Mas não tem nada a ver com gostar de alguém.

MC Já procurou saber se o Salgado teve outros relacionamentos, extraconjugais?
LWS
Aconteceu de eu saber, e devem ter muitos outros que nunca soube. E nem quero, não me interessa. Não é a minha vida, é a vida dele. Só não aceito falta de respeito como, por exemplo, trazer a pessoa para dentro de casa. Agora, o impulso, numa hora em que a oportunidade aparece, é outra coisa.

MC Você considera que esse envolvimento de momento é uma coisa natural?
LWS
É. E não tira pedaço. Agora, tem o risco de se apaixonar e estragar tudo. Aí entra o respeito. Se alguém está com uma pessoa que ama, tem que abrir o jogo. Penso: ‘Pelo menos me dê a oportunidade de escolher o que quero, se é te mandar embora ou se é viver a três’. Se eu escolher que pode ser assim, tudo bem. Se não, vai ter que arcar com a responsabilidade.

MC Isso é suficientemente conversado entre vocês?
LWS
A gente sempre conversou e conversa sobre isso. Mas não questiono, porque não quero que ele questione a minha vida.

MC E você, já se apaixonou por outra pessoa?
LWS
Nunca fiquei apaixonada por outro. Já ficaram apaixonados por mim, mas sou muito pé no chão. Para desestruturar tudo por conta de uma paixão, precisaria saber se realmente vale a pena. Outro pode até te amar melhor,
como a música [Olhos nos olhos] do Chico Buarque, que diz ‘bem mais e melhor que você’. Mas acho que a mulher não age guiada somente pelo instinto.

MC Acha que esse tipo de abertura desgasta o casamento? Ou fortalece?
LWS
Pode fortalecer como pode desgastar, depende de como acontece. Quando a gente é jovem, é impulsivo. Existem tribos indígenas em que as mulheres têm cinco maridos e os homens, cinco mulheres. E essa maneira de viver é muito mais sã, porque leva em consideração os impulsos. Na nossa sociedade, judia, cristã, todo mundo fica com uma pessoa a vida inteira, enquanto quer ficar com dez.

MC Quando viu o Salgado, sabia que iam ficar juntos? Comofoi o início do romance?
LWS
Fizemos planos rapidamente. Moramos em São Paulo e viemos para Paris em 1969. Sempre foi um sonho. Meu pai adorava a França. Eu e o Tião nos conhecemos na Aliança Francesa em 1964. Viemos estudar, mas não tínhamos bolsa de estudo, o começo foi difícil. Eu tinha 21 anos, meus pais tinham acabado de morrer. Foi um golpe muito duro. Larguei meu país, sem pai nem mãe, e vim para um lugar que não conhecia. Mas a gente queria viajar... E é assim até hoje. No ano passado, saí de férias com Tião num roteiro que incluía Bali. Depois embarquei para Genebra, na Suíça, para visitar meu neto Flávio, 17 anos, filho de Juliano. E a seguir fui à Fazenda Bulcão, em Aimorés (MG), onde Sebastião foi criado. Há 15 anos, fundamos o Instituto Terra – que presido – para recuperar a Mata Atlântica da antiga fazenda. O foco agora é reaver as nascentes do rio Doce, o maior rio do sudeste do país. Trabalho para 30 anos! Tem muitos casais que se amam muito, mas cada um tem um projeto de vida. E na primeira vez que uma pedra rola no projeto de um, a relação pode sofrer. E evidente que a gente se deu bem na vida sexual, que é importantíssima.

MC Como seus pais morreram?
LWS
Meu pai morreu num incêndio, em um edifício onde trabalhava [era dono de uma marmoraria]. Os bombeiros o acharam numa escada, asfixiado com a fumaça. Isso foi em maio. Em julho, minha mãe morreu de câncer no intestino. Naquela época, quem tinha câncer estava condenado. Ela foi operada, mas a doença logo voltou. A morfina foi acabando com ela, mas era a única maneira de conseguir suportar a dor. Quando meu pai morreu, ela estava tão ruim que mal conseguia sofrer. Eles se gostaram muito. Foram um ótimo exemplo de vida de casal.

No instituto terra, com Wim Wenders, que prepara um filme sobre Salgado (Foto: Sebastião Salgado)

MC Você criou seus dois filhos praticamente sozinha. Quando Salgado estava presente, ele era um bom pai?
LWS
Ele foi e é um bom pai. Quando estava em casa, brincava muito com os meninos, trazia presentes. Quando escrevia – somos do tempo das cartas –, sempre havia uma mensagem especial para eles. Mas quem tomou conta mesmo fui eu, essa responsabilidade sempre foi minha. Também não sei até que ponto deixei ele tomar conta. É difícil você parar de fazer quando o outro chega.

MC Ele não conseguia encontrar algum espaço para tomar conta dos filhos?
LWS
Não sei se ele queria ter espaço. Quando o Tião estava aqui, botava o fone no ouvido para não escutar. Com o Digo [Rodrigo, hoje com 34 anos, portador da síndrome de Down], mesmo se ele quisesse, eu não ia deixar. É muito difícil ter um filho excepcional. Eu não deixava ele carregar. Achava que só eu tinha o que o Digo precisava. Mas só me dei conta disso anos depois.

MC Como reagiu ao descobrir que seu filho era portador da síndrome de Down?
LWS
É muito duro aceitar, levei um choque. Veio uma tristeza profunda, porque eu não tinha conhecimento. Pensava: ‘E agora? O que vai ser dele?’ Ao
mesmo tempo: ‘O que vai ser de mim? Como vai ser a minha vida?’ Mas isso me ajudou a evoluir e é a prova de que aceitei, não me deixei arrasar, porque precisava arranjar alguma solução. ‘Como é que vou sair dessa?’

MC E como você se saiu?
LWS
Sem nenhuma humildade, me saí vitoriosa! Porque o Rodrigo é um rapaz tão legal. A grande vitória da minha vida é essa [Lélia se emociona]. Não fiquei me lamentando. Consegui fazer com que ele fosse autônomo. Li tudo sobre o assunto. O que podia fazer com ele, o que não podia, as diferenças que meu filho teria em relação às outras crianças, e de que maneira atenuá-las. Por exemplo, aprendi que se eu brincasse com ele de mexer a boca, a musculatura do rosto ficaria mais rígida e isso seguraria a sua língua [quem tem síndrome de Down costuma ter a língua protuberante, que tende a cair]. Para o Digo conseguir segurar a dele dentro da boca, eu brincava comele fazendo careta, todos os dias. Só dava banho assobiando um samba. Um dia, com oito meses, ele assobiou! Tudo que eu fazia, ele fazia também. Tanto é que o Digo nunca botou a língua para fora. Ser mãe dele foi quase uma outra profissão.

MC Como o Sebastião lidou com a síndrome do Rodrigo?
LWS
O Tião até lida bem, mas os homens e as mulheres são muito diferentes. Os homens são muito orgulhosos, se sentem poderosos e têm vergonha de mostrar as fraquezas. Então, para ele, ter feito um filho ‘atravessado’, eu não sei... Acho que as mulheres são mais generosas. E quando você é mais generosa, aceita as diferenças com mais facilidade. No início, eu não saía de casa porque o Rodrigo tomava um friozinho e já pegava uma pneumonia. Então, botava os amigos para dentro de casa. Acho que essa é a minha grande força. Nunca fiquei imaginando que podia ser assim ou assado. Tem gente que vive reclamando ‘se eu tivesse isso, eu faria aquilo...’ Eu não penso a minha vida na condicional. Se não fosse assim, não tomaria nenhuma atitude.

MC Você, como outras companheiras de homens famosos, ganhou o rótulo de “a grande mulher por trás do grande homem”. O que acha disso?
LWS
Detesto. E as pessoas acham que estão fazendo um grande elogio. Eu não ando atrás de ninguém, ando ao lado. Atrás de um grande homem não tem uma grande mulher porque o que existem são grandes pessoas que se ajudam.

MC Quando é que o seu trabalho de edição começa?
LWS
Quando o Tião chega de viagem. Depois de fazer os contatos, ele faz uma primeira escolha, e então editamos juntos. Aí começo a montar o livro. Só eu faço o layout. Depois, monto a exposição. Vou antes para ver o museu, trago as plantas, estudo a cenografia, volto para checar se dá certo. O Tião não tem a mínima ideia de como vai ficar.

MC A palavra final é sua?
LWS
Não é bem a palavra final, porque escolhemos as fotos juntos. Às vezes, tem uma que ele gosta e que não entrou e me pede para colocar. Às vezes não arranjo, mas não tem conflito porque eu tenho boa vontade. São trabalhos complementares, porque na maioria das viagens eu também vou. Só não fui naquelas que teria que ficar um mês sem tomar banho, trinta graus abaixo de zero, ou quando precisaria passar 40 dias dentro de um barco, sem comunicação, porque tinha que tocar as coisas do escritório em Paris. Aí, não faço questão [risos]. Ah! E quando os meninos eram pequenos.

MC O que você não fez e ainda tem vontade de fazer?
LWS
Quero acabar de escrever um livro. É uma ficção, mas claro que tem coisas minhas. Escrevi o início e o fim, falta o meio. Por um tempo escrevi muito, mas depois parei. Comecei a não ter tempo por causa do lançamento de Gênesis.

MC Em 2013, na abertura de Gênesis, em São Paulo, uma fotógrafa pediu que você saísse para fazer um retrato do Salgado. Como lida com isso?
LWS
Considero falta de educação. As pessoas têm obrigação de pensar um pouquinho. Eu sou a organizadora, a cenógrafa da exposição, edito o livro. Uma vez até me empurraram. Eu falei: ‘Vai fotografar depois, porque agora estou aqui’.

Com o escritor José Saramago na espanha, em 1996 (Foto: Sebastião Salgado)

MC O assédio em cima do seu marido te incomoda?
LWS
Quando estou a fim de viver a minha vida, no cinema, por exemplo, me incomoda. Porque, de repente, aparece alguém para acabar com a minha privacidade.

MC E o que mais costuma tirar você do sério?
LWS
Trabalho mal feito. Odeio ter que parar o que estou fazendo para assumir uma parte do trabalho que não é minha.

MC Você é uma chefe exigente?
LWS
Sim. Sou muito exigente comigo e com os outros. Mas tenho muita capacidade de escutar.

MC Você acha que também é exigente com o Sebastião?
LWS
Olha, se eu fosse uma mulher exigente, já tinha me separado dele há muito tempo ou então ele já teria mudado de profissão. Conheci muitos fotógrafos que mudaram de profissão por esse motivo. Porém, exigir isso de alguém é fazer a infelicidade da pessoa. E não gosto de ninguém infeliz perto de mim.

MC Já pensou que ele corria riscos e poderia não voltar de alguma viagem?
LWS
Já, mas foi há muito tempo, em 1975, na época da independência de Angola. Luanda estava cercada pelo movimento contrário à libertação. Era bomba para todo lado. Fui levar Tião ao aeroporto e quando voltei me bateu uma tristeza. Pensei: ‘Ele não vai voltar.’ Comecei a chorar, tive que parar o carro. Esperei a emoção passar e falei comigo mesma: ‘Se um dia acontecer alguma coisa, eu vejo o que vou fazer. Mas, por enquanto, não tem motivo.’ Desde esse dia, parei de ficar imaginando coisas. Não dá para viver as tristezas antes da hora.

Agradecimento: Tam Linhas Aéreas


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