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"Mulher andar de bike no Afeganistão é uma ofensa cultural", diz atleta Shannon Galpin

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SHANNON NOS BASTIDORES DE "AFGHAN CYCLES" (Foto: Claudia Camila Lopez)

Ser mulher no Afeganistão é estar em risco. Apenas nas últimas duas semanas, uma jovem foi morta pelo próprio pai por, supostamente, ter traído o marido e 70 meninas foram envenenadas por ter cometido o “crime” de ir à escola. A elas, muito pouco além de manter precariamente a própria existência é permitido. É nesse contexto que a americana Shannon Galpin, de 38 anos, iniciou uma revolução sobre rodas. Ex-instrutora de pilates e atleta, ela sonha passar com sua bicicleta por países tão aprazíveis quanto Itália ou França. Mas é no Afeganistão que ela resolveu se instalar.

Ali, teve a ousadia de montar um time de mulheres ciclistas. De acordo com a Sharia, a lei islâmica adotada no país, uma mulher pedalar é uma ofensa social maior do que dirigir um carro. Significa imoralidade. A missão de Shannon é fazer com que o ciclismo seja visto apenas como um esporte. E, ao conseguir isso, ela, quase sem querer, transforma sua ação em uma oportunidade emancipatória para as mulheres. “Ter uma bike é sinal de liberdade. Pedalar te permite interagir de uma maneira diferente com locais desconhecidos. Você sente a energia deles na pele, no cheiro e até na poeira que o vento traz. Sem falar que é a maneira mais autêntica de explorar novos lugares”, diz Shannon.

EM VISITA A PRISIONEIRAS AFEGÃS (Foto: Tony Di Zinno)

Fundadora da organização sem fins-lucrativos Mountain2Mountain, além de treinar suas atletas, Shannon está produzindo o documentário “Afghan Cycles”, que mostrará a rotina perigosa e inspiradora de sua equipe. Entre seus sonhos, Shannon mescla aspirações meramente esportivas, como incluir o time de Cabul em futuras Olimpíadas, e as grandes conquistas dos direitos humanos, como elevar as mulheres a uma posição igualitária aos homens na sociedade afegã. Ela contou à Marie Claire sobre os seus planos, seu cotidiano e suas inspirações em uma entrevista feita, por email, diretamente de Cabul, a capital do país.

IMAGENS DE "STREET OF AFGHANISTAN", EXPOSIÇÃO PÚBLICA ORGANIZADA PELA AMERICANA (Foto: Gulbidin)

Marie Claire - O que significa ser mulher e ciclista no Afeganistão?
Shannon Galpin -
As mulheres do Afeganistão fizeram muitos progressos nos últimos dez, doze anos. Vão mais às escolas, representam as províncias no Parlamento, são médicas,juízas, advogadas, policiais e até soldados. As mais jovens têm crescido em um mundo diferente do das suas mães. Mas ainda há o receio de que os direitos femininos regridam nos próximos anos, caso a segurança não seja mantida. E apesar da evolução nos direitos, mulheres no esporte ainda é um tema muito controverso. Especialmente, no ciclismo.

PEDALANDO PELAS RUAS DE CABUL (Foto: Tony Di Zinno)

MC - Por que é tão imoral que elas andem de bike?
SG -
É considerado uma ofensa cultural, em parte, porque ter uma bike é sinal de liberdade. Também pela natureza do ciclismo: não é algo que você faz de portas fechadas, tem que estar em público para praticar. Apesar de não ser ilegal, a atividade ainda é um tabu. Não é tão grave quanto os crimes de moralidade (como ser vista na rua falando com um homem que não seja seu pai ou seu marido), que levam mulheres à prisão, mas é considerado pior que aprender a dirigir um carro. Alguns homens (até os mais jovens) atiram pedras quando vêem mulheres sobre bicicletas e outros colocam seus carros por cima delas. Isso sem falar nas ameaças verbais.

MC - Quais as estratégias usadas por elas para pedalar sem sofrer agressões?
SG -
Pedalam fora da cidade e sempre com instrutores ou outros pilotos homens. Contudo, eles ajudam, mas não eliminam as ameaças.

O LABORATÓRIO DE INFORMÁTICA MONTADO PELA FUNDAÇÃO DA AMERICANA (Foto: Tony Di Zinno)

MC - Pretende transformar o ciclismo em um movimento político pela emancipação feminina?
SG -
Não. Esse movimento é puramente esportivo, para que as mulheres possam desfrutar do ciclismo do mesmo modo que os homens. É algo por igualdades de direitos, inclusive da alegria do esporte.

MC - Você poderia pedalar em qualquer lugar do mundo – e inclusive o fez. Então por que se instalar no Afeganistão, um dos lugares mais perigosos e precários do mundo?
SG -
Quando decidi pedalar aqui a primeira vez, em 2009, eu queria experimentar o país de forma única e desafiar a ideia de que as mulheres não podem andar de bike. Saí pedalando em várias áreas do país, conversei com mulheres sobre esporte, educação e com homens sobre a história local. Ao mesmo tempo, mostro para os Estados Unidos, onde nasci, uma visão que retrata o Afeganistão com outros olhos. Desafio a mídia a mostrar a beleza, o espírito e o povo local. Esse país é fascinante, tem uma história rica e mais pessoas que me mostraram generosidade e doçura do que assédios e ameaças.

A EX-INSTRUTORA DE PILATES EM UMA DAS ESCOLAS DE JARDIM DA INFÂNCIA (Foto: Tony Di Zinno)

MC – Você sofreu alguma ameaça ou viveu alguma situação perigosa por ter criado o “Afghan Cycles”?
SG -
“Afghan Cycles” está atualmente em produção. Estamos filmando em Cabul agora e estou trabalhando como produtora do filme. Sarah Menzies é a diretora e tivemos muitas experiências incríveis durante o trabalho. Não recebemos quaisquer ameaças, mas, às vezes, o perigo está na estrada: pedalamos em meio ao tráfego caótico e mal sinalizado de Kabul ou em rodovias onde os caminhoneiros dirigem de modo muito imprudente. São os maiores riscos do Afeganistão.

SEGUNDO SHANNON, A NOVA GERAÇÃO DE AFEGÃS NASCEU EM UM MUNDO DIFERENTE DE SUAS MÃES, O QUE LHES PERMITE FREQUENTAR AS ESCOLAS (Foto: Tony Di Zinno)

MC - Qual a sua pretensão com esse time de ciclistas?
SG -
Quero que a equipe seja completamente afegã e não ocidental. No momento, eles precisam de apoio do exterior, pois é um esporte novo no país. Precisam de treinamento, equipamento e corridas. Minha esperança é de que uma mulher e um homem obtenham apoio, coaching e educação fora daqui, como um primeiro passo para, consequentemente, fazer com que o nível de formação no esporte melhore organicamente. Também estou levantando fundos para conseguir um treinador e uma equipe que acompanhe os ciclistas de carro para que eles possam pedalar em segurança. Por último, estamos discutindo as possibilidades dos atletas mais experientes treinarem alguns anos fora de Cabul, na esperança de disputar os jogos da Ásia ou uma futura Olimpíada. É difícil, mas poderia melhorar a visão do ciclismo no Afeganistão de diversas maneiras.

EM GRAVAÇÃO DO OCUMENTÁRIO "AFGHAN CYCLES" (Foto: Claudia Camila Lopez)

MC - O que motiva as mulheres do time a se arriscar pedalando?
SG -
Eu as incentivo a assumirem riscos, ultrapassarem barreiras e expandir seus horizontes. Elas até já praticam o esporte sem a minha ajuda, querem mudar a percepção de atletas do sexo feminino em seu país.

MC - Além do projeto com ciclismo, você instalou um centro de informática para garotas em Cabul. Que outras ações você está tentando promover no local?
SG -
A Mountain2Mountain tem feito vários projetos no Afeganistão, com o objetivo de dar voz e valor a mulheres e meninas em zonas de conflito. Montamos laboratórios de informática, escolas com jardim da infância, apoiamos artistas grafiteiros e estimulamos o ativismo de meninas pela educação e os direitos das mulheres no país. Criei também uma exposição fotográfica pública em tamanho natural que foi montada como arte de rua, chamada "Streets of Afghanistan" (Ruas do Afeganistão). Agora estamos trabalhando para apoiar a comunidade surda de Cabul com o projeto de uma nova escola especializada. Foram muitos projetos nos últimos cinco anos. O ciclismo foi algo desenvolvido apenas nos últimos meses, quando eu encontrei feministas ciclistas pedalando pela primeira vez.

NA ESCOLA PARA SURDOS. À DIREITA, ALUNOS ESTUDAM A CÉU ABERTO (Foto: Tony Di Zinno)

MC: O que sua filha acha de sua atividade no país?
SG:
Ela é muito nova, só tem 8 anos e ainda não veio comigo ao Afeganistão. Mas faz muitas perguntas e quer vir. Espero que um dia venha. Ela é consciente do trabalho que eu faço e começou a entender os motivos.

MC - Como você sustenta a Mountain2Mountain?
SG -
A maior parte é através de financiamentos, com organizações privada. Não levantamos dinheiro do governo de país algum. A maior parte é arrecadada de pessoas que se preocupam com o trabalho que fazemos. Sabem que é muito desafiador, porém ao mesmo tempo limitado por causa da preocupação com o lado financeiro. Mas prefiro que seja assim a trabalhar com restrições e percepções que envolvem o dinheiro do governo.

COM A BIKE PELAS MONTANHAS DE CABUL (Foto: Tony Di Zinno)

MC - Em algum momento o governo do Afeganistão se mostrou disposto a ajudar?
SG -
Eles doaram o terreno da escola especializada que vamos construir em parceria com a Associação Nacional Afegã de Surdos. Além disso, na maioria das vezes, não os envolvemos em nossas atividades.

MC - Você tem conseguido bons resultados desde que começou este trabalho?
SG -
Estou muito orgulhosa do que realizei no Afeganistão. Nem todo projeto é um sucesso, mas isso é de se esperar em um país com tantas dificuldades. Meu maior orgulho é das mulheres e meninas afegãs que estão conquistando o país. Elas são bravas, corajosas e enfrentam a própria crença na busca por seus direitos de igualdade. A coisa mais importante que fiz até agora foi apoiar estas mulheres nisso e encorajar outras a fazê-lo também.

"INCENTIVO AS MULHERES A ULTRAPASSAREM BARREIRAS, ASSUMIR RISCOS E EXPANDIR SEUS HORIZONTES" (Foto: Claudia Camila Lopez)

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