Quando a reportagem chegou ao número 533 da Rua Anália Dolacio Albino, no Capão Redondo, Zona Sul de São Paulo, um rapaz parado em frente ao portão, sorriso aberto e gentileza nos olhos, logo convidou a equipe de Marie Claire para entrar e ficar à vontade. Edcarlos de Jesus está entre os “manos” que viviam a “vida louca” – como diz a gíria sobre o envolvimento com as drogas –, e que mudaram sua realidade graças ao trabalho do Projeto Sonhar, criado em 2011. A organização não governamental, que atualmente atende cerca de 30 jovens, oferece ajuda para quem foi fisgado pelo vício ou seguiu o caminho do crime. O começo é mostrar que todo mundo pode sonhar – daí o nome. Parece um chavão, mas conversando com Marcos Lopes e Alex Sandro de Lima, donos da iniciativa, fica claro que o sonho é justamente a primeira coisa que as pessoas acabam abandonando em uma comunidade carente e violenta. E é a partir daí que as coisas deixam de fazer sentido – família, amigos, amor, a vida humana. “Você encontra meninos que só precisam sair do meio para não usar mais [drogas]”, diz Marcos, também autor do livro Zona de Guerra (Matrix, 2009). O trabalho vai desde convencer o usuário a se tratar até conseguir atendimento gratuito. “E esse é o segundo passo: levar o menino para esses locais e depois visitá-lo, levar a mãe, levar a família”.
Convidado a participar da conversa, Edcarlos contou que, enquanto traficava, via alguns jovens em volta de Marcos e Alex “sempre felizes”. Um dia, a curiosidade alfinetou e ele procurou um dos meninos. “Aí ele me falou qual era a pegada, os rolês que eles faziam, umas ideias totalmente diferentes do que eu vivia”. Os “rolês” são as viagens de lazer promovidas pelo projeto – o Rio de Janeiro e a Praia do Bonete, no litoral sul de São Paulo, estão entre os destinos do grupo. Aos poucos, ele foi se sentindo atraído por essa outra vida, sem polícia e bandidos. “Não é vida”, diz. Mas o começo foi difícil. Primeiro veio um tempo dividido entre os dois mundos, até ser preso e passar um ano na cadeia. “Nesse período, decidi que aquela não era mesmo minha vida, que eu queria parar com as drogas”. Uma vez em liberdade, e depois de sumir das ruas para não cruzar as antigas companhias, Edcarlos reencontrou Marcos e, há dois anos, sua história é outra. “Desde o momento que eu botei a mochila nas costas e vim pra cá, cada segundo é mágico.”
FILOSOFIA DAS RUAS
Além de outro rapaz – cujo nome não pôde ser divulgado –, Edcarlos é o único que mora na sede do projeto, onde também trabalha. Os demais são atendidos por meio de visitas, tanto de Marcos e Alex às suas casas, momento em que a família é envolvida no processo, quanto dos meninos à sede – como acontece no chamado Café Filosófico. Nessas ocasiões, embora o método usado seja inspirado, segundo Marcos, na maiêutica socrática – grosso modo, um “nascimento intelectual” que procura a verdade no interior de cada pessoa –, a filosofia praticada está distante da dos livros. “Vem tudo da realidade deles”, retoma Marcos. “Às vezes a gente tá aqui sentado, aí um resolve contar como foi a semana dele. Começa de forma espontânea”, diz Alex. O método para atrair os participantes – e, mais importante, garantir que eles voltem – é simples, mas infalível. Alex explica: “Aprendemos que é pelo estômago. Então, a cada encontro, a gente oferecia um banquete pra eles.” A ideia é conquistar a confiança por meio de um gesto inédito para os meninos – o mesmo princípio das viagens. Os encontros semanais tiveram de ser suspensos este ano por falta de dinheiro, mas há planos de retomá-los com a chegada de uma verba extra.
DO TRÁFICO À ONG
Tanto Marcos quanto Alex têm histórias que se aproximam muito das desses garotos. Alex nunca se envolveu com a “vida louca”, mas já viu de perto o que acontece “nas quebradas” – perdeu amigos, parentes. Já Marcos foi mais fundo. Morador do Parque Santo Antônio – que, ao lado do Jardim São Luis e Jardim Ângela, forma uma espécie de triângulo da violência na periferia da Zona Sul –, começou a realizar pequenos furtos aos 14 anos. Aos 16 já ajudava na preparação de papelotes de cocaína. Passava a maior parte do tempo na rua. “Falava pro meu pai que ia pra casa da minha mãe e vice-versa.” O dinheiro foi entrando – “muita grana mesmo” – e junto vieram a polícia para fazer “acordos”, e traficantes rivais “pra dar tiro na gente aqui na quebrada.” Nesse bang bang da vida real as pessoas começaram a morrer. “Em uma semana perdi três amigos”, lembra. Na mesma época, uma amiga – que nada tinha a ver com o crime – foi assassinada numa emboscada. “Aí perdi o chão. Fiquei com medo de morrer”. A partir disso, o primeiro passo foi procurar a Casa do Zezinho, instituição de apoio a crianças e jovens em situação de risco que atua também no Capão Redondo. “Lá conheci a literatura. Li Capão Pecado, do Ferréz [lançado em 2000 e reeditado este ano pela Planeta do Brasil] e virei fã dele– numa tal proporção que onde ele tava eu ia atrás.” Uma década depois, a vontade de oferecer a mesma ajuda a outros jovens levou Marcos a buscar trabalho em outra instituição da região, o Instituto Rukha. Conheceu, então, o amigo e parceiro Alex.
O SONHO NÃO MORREU
Em 2011, no entanto, o Rukha encerrou as atividades por falta de patrocínio. Mas esse fim se mostrou um novo começo. “A gente sempre falava [para os jovens no antigo instituto] que palavra de homem não faz curva”, afirma Marcos, usando uma expressão que indica compromisso com o que foi dito. “Não iríamos deixar os moleques”. Assim, a dupla conseguiu dinheiro para custear os primeiros seis meses do novo projeto –“mas a gente segurou tanto o dinheiro que ele durou oito... (risos)”, diz Alex. Os jovens atendidos pelo Rukha foram convidados a seguir no Projeto Sonhar, atualmente mantido pelo Afroreggaee por empresas privadas. Além dos encontros e encaminhamentos, o projeto também oferece cursos de inglês, violão e ajuda na recolocação profissional. Os números podem ainda não impressionar, mas como diz o provérbio escrito numa parede na sede do Sonhar: “Gente simples fazendo coisas pequenas em lugares pouco importantes conseguem mudanças extraordinárias”.