As últimas imagens registradas na mente da estilista Michele Simões, 31 anos, antes do acidente que sofreu em 2006, são de uma noite divertida na balada, ao lado da irmã. Na hora de ir embora, Michele deitou no banco de trás do carro e dormiu. Um breve piscar de olhos que mudou completamente a vida da jovem, na época com 24 anos, recém-formada na faculdade e que há dois meses tentava a vida em São Paulo. “Não conseguia ver muita coisa, acho que por causa da pancada. Perguntei para a minha irmã o que tinha acontecido, pois não conseguia levantar, nem mexer as pernas. Ela pediu para eu ficar calma, que havíamos batido o carro. Fiquei desesperada porque já sabia que havia ficado paraplégica”, contou para a reportagem de Marie Claire.
A lesão na coluna de Michele não só impede os movimentos das pernas como afeta a parte torácica e compromete o equilíbrio de tronco. Nem por isso ela desistiu de realizar um de seus sonhos, interrompido na época do acidente: no final de 2013 ficou três meses nos Estados Unidos vivendo como intercambista. E de sua experiência fora do país nasceu o blog “Guia do Viajante Cadeirante”, uma das únicas páginas da web dedicadas ao tema: “como não achei nada na web que pudesse me ajudar, resolvi compartilhar tudo que vivi de bom e de ruim para facilitar a vida de outros cadeirantes”, explica. Durante a conversa, Michele falou de suas descobertas e surpresas durante a viagem, o relacionamento com o namorado, seus próximos projetos e desejos para as mulheres cadeirantes:
Marie Claire: Como se sentiu quando recebeu a notícia de que realmente estava paraplégica?
Michele Simões: eu já tinha certeza da minha situação dentro do carro, pois não conseguia mexer as pernas. Foi um acidente bem grave, fiquei três meses internada. Quando confirmaram a notícia, fiquei desesperada, é claro, mas nunca pensei que minha vida tinha acabado ali. Sempre fui muito à luta, naquele momento não seria diferente. Sempre acreditei e ainda acredito que posso voltar a andar. Não sou muito conformada com o que as pessoas dizem, o que posso ser ou não. E isso ajuda muito.
M.C.: Nessa época já namorava?
M.S.: não. Na verdade, já conhecia o Thiago, meu atual namorado. Nós havíamos saído algumas vezes antes do acidente, mas tínhamos decidido que o melhor era ficar só na amizade mesmo. Ele era amigo do namorado da minha irmã na época e, assim que rolou o acidente, foi correndo para o hospital. Foi a primeira pessoa a ficar comigo lá, me acalmou. Durante os três meses que fiquei internada, não deixou de me ver uma vez. Aí, um dia, ele aproveitou que não tinha ninguém no quarto para se declarar. Perguntou se eu achava mesmo que não íamos dar certo, que ele queria namorar porque estava apaixonado. A minha cabeça estava um turbilhão com tudo que estava vivendo. Eu gostava dele, mas não sabia como seria a minha vida e ficava encanada com corpo, vaidade. Mas resolvi seguir o conselho da minha mãe e tentar. Estamos juntos até hoje, a gente é muito parceiro, ele está sempre do meu lado. Até decidiu ir comigo no intercâmbio! (risos)
M.C.: Quando decidiu fazer a viagem?
M.S.: era uma vontade antiga. Quando me mudei de Rio Claro para São Paulo, antes do acidente, a ideia era ganhar experiência na minha profissão e juntar dinheiro para morar fora. Depois que tudo aconteceu, tive que adiar. Procurei uma agência no ano passado e eles me informaram que Boston, nos Estados Unidos, era uma cidade com muita acessibilidade. Lá havia uma escola que tinha convênio com um hotel e que eles topavam ser responsáveis por minha estadia, já que não tinha conseguido nenhuma casa de família para me receber. Decidi arriscar e foi ótimo! Embarquei em agosto e deu tudo certo. A cidade, apesar de ter uma arquitetura muito antiga, permite que os cadeirantes sejam muito independentes. Eu ia sozinha para todos os lugares, desde escola e lavanderia até prédios históricos. Lá eu me sentia parte da sociedade de novo.
M.C. E o blog, nasceu quando?
M.S.: sempre foi muito difícil encontrar referências na internet. Em 2006, tudo era muito mais aterrorizante, as informações eram raras. Era aquela coisa: você está na cadeira, não vai conseguir fazer nada. Pesquisei muito e só achei um blog de uma cadeirante que havia morado fora do país. Entrei em contato com ela, que nunca me respondeu. Decidi então criar a minha própria página na web para contar tudo que vivia de bom e de ruim e, desta forma, ajudar um próximo cadeirante que desejasse viajar. Lá tem de tudo: desde usar o banheiro do avião, até transportar a cadeira e transitar pela cidade.
M.C.: Qual foi sua maior dificuldade durante a temporada fora de casa?
M.S.: meu medo era o principal obstáculo. Fiquei sete anos aprisionada, sem sair ou fazer nada sozinha. Por isso, quando meu namorado decidiu ir junto eu avisei que queria ter essa experiência para ver se eu era capaz de me virar. No primeiro dia de aula, fui sozinha, peguei metrô, estava tremendo. Parecia uma criança indo pela primeira vez para a escola (risos). Só pensava “e se eu cair?”. Mas depois tomei gosto pela experiência e vi que era capaz. As inseguranças acabaram. A ideia era ficar só dois meses, mas me maravilhei tanto com a independência que tinha na cidade, que estiquei a estadia por mais um mês. Por meio do blog, conheci uma brasileira, também cadeirante, que mora em Boston e ela me ofereceu para ficar na casa dela. Ela tem quatro filhos e por conta das responsabilidades do dia a dia, não sai muito de casa. Então, resolvi apresentar a vida em Boston para ela (risos). Ensinei a pegar metrô, coisa que ela nunca tinha feito, fomos ao médico juntas. Foi uma aventura!
M.C.: O que mais te surpreendeu?
M.S.: A minha visão sobre mim. Voltei me sentindo muito mais segura e com muito mais vontade de melhorar as coisas. Durante o tempo que fiquei lá e até hoje recebo muitos e-mails, de gente que também é cadeirante e percebe que a vida não acabou. Percebi que posso ajudar.
M.C.: Qual foi a principal diferença da vida nos Estados Unidos e aqui no Brasil?
M.S.: lá fora não tinha tanto esse olhar de piedade, de te enxergar como como um total incapacitado. As crianças só vão para escolas especiais em última instância, então estão todos acostumados com o diferente. Aqui no Brasil acontece o contrário. Na volta de Boston, no aeroporto mesmo, notei que já tinha muita gente me olhando. Tinha esquecido disso. Brinco com meu namorado ás vezes: olha lá, vai cair uma lágrima daqui cinco minutos (risos). Não é uma coisa que atrapalha, mas quando entrei nesse universo, me sentia constrangida. Logo depois que sofri o acidente, fui ao shopping e virei o centro das atenções. As pessoas não se acostumam nunca com um cadeirante, é incrível. Outra coisa: nos Estados Unidos tinha uma vida normal, foi uma libertação. Eu me sentia parte da sociedade porque tudo é muito acessível. Fui para Nova York sozinha de trem, sem nenhum problema. Aqui não consigo sair na minha rua, tudo tenho que fazer de carro, ligar antes para saber se há acessibilidade para deficientes e pedir para alguém me carregar.
M.C.: O que pretende fazer com o blog agora que voltou?
M.S.: vou dar continuidade, com dicas de passeios e lugares interessantes que tenham acesso aos cadeirantes em São Paulo. Já aprendi a nadar e velejar, tudo de graça. Quero incentivar as pessoas nessa área do esporte porque é onde a gente liberta o nosso corpo. Estou procurando parcerias, mas o que dá para eu fazer, eu faço. Já está encaminhado um projeto com uma escola de mergulho, devo fazer o curso e depois o mergulho adaptado nos próximos meses. Também fui atrás do paraquedismo para cadeirantes, mas ouvi coisas absurdas como “não tenho interesse nessa sua ideia porque é muito complicado”. É a vida, estou indo à luta. Minha proposta é procurar caminhos, provar que é possível mudar e mostrar que é possível sair de casa.
M.C.: No dia 8 de março comemora-se o Dia Internacional da Mulher. O que você acha que precisa mudar no mundo para que ele seja um lugar melhor para as mulheres?
M.S.: precisamos aceitar melhor a diversidade e ter consciência que são elas que nos completam. Temos que parar de dividir o lado A do lado B. Como cadeirante, percebo que a a sociedade brasileira não está preparada para lidar com os deficientes. As pessoas nos enxergam como seres de outro mundo. É claro que temos nossas limitações, mas nem por isso somos menos. Essa visão deveria mudar.