
O tempo passou num piscar de olhos para Sam Porto. O modelo de 26 anos, nascido em Brasília, lembra a primeira vez que pisou na São Paulo Fashion Week, em 2019. Foi nesse mesmo ano que decidiu persistir na carreira. Naquela edição, a imagem de Sam na passarela logo tornou-se emblemática em um momento em que a falta de representatividade de pessoas transgêneras na indústria da moda não era sentida como um problema. Nos poucos segundos de percurso, Sam trazia um único pedido grafado em seu torso desnudo: “Respeito trans”. No mesmo ano, tornou-se o recordista de desfiles entre os homens.
Ele diz que sua timidez é forte e que estava com medo de que ela interferisse naquele momento. Nada poderia dar errado. Mas quando perguntaram se havia alguma mensagem que gostaria de passar, não hesitou em tirar a camisa e mostrar suas cicatrizes. O pedido soava como uma denúncia, já que há uma carência de homens trans trabalhando como modelos.

Em 2021, com mais segurança e experiência, Sam voltou ao SPFW, e desfilou para a LED e a Soul Básico. O nervosismo dessa vez era outro, já que os shows foram gravados anteriormente. “Sempre fico muito ansioso quando vai sair um trabalho assim. No formato digital, é sempre uma surpresa.”
Para Marie Claire, ele conta que na primeira ocasião o reconhecimento logo deu as caras e até hoje não conseguiu responder todas as mensagens de apoio. “Na época, recebi muitos agradecimentos de pessoas trans dizendo que abri as portas, que dei a cara a tapa e que a partir disso conseguiram mais visibilidade para trabalhar com outras marcas.”
No entanto, ele diz que não se sente à vontade quando apresentado sob o carimbo da representatividade. “Sou um homem branco, com corpo padrão [na moda]. Eu não represento um homem trans negro, por exemplo. Há muita diversidade.”
Dois anos depois da primeira participação, diante do estouro da pandemia, Sam não pôde colher os frutos que a atenção lhe rendeu, com menções em veículos como o The Guardian. E a meta de conquistar o mercado internacional precisou ser adiada.
Foi uma longa caminhada até chegar neste ponto. Antes de se consolidar na profissão, trabalhava como tatuador e ocasionalmente fazia fotos para editoriais de marcas no Instagram. O encanto fazia parte dos objetivos de sua mãe, Olindina, 67, que desejava que Sam e a irmã, Thaynara, 28, seguissem por essa estrada. Mas ser modelo não fazia parte dos seus planos. Seu verdadeiro sonho era ser jogador de futebol, mas a inabilidade do esporte em alocar pessoas trans seria ainda mais acentuada do que na moda.
“Desisti do futebol porque não tinha nenhuma pessoa trans ali, até então eu jogava no feminino. No masculino era mais por brincadeira, porque não tinha coragem de tentar e falar que eu era trans para jogar no time. O futebol sempre foi muito machista.”
Se no time masculino imperava o machismo, no feminino faltavam oportunidades. “O futebol feminino ainda é muito desvalorizado”, ele lembra. Com o tempo, o capricho de Olindina finalmente se manifestou em Sam. “Da mesma forma que eu tinha o sonho no futebol, ele renasceu dentro da moda”.
Sobre a infância, o modelo conta que sempre foi uma criança trans e acreditava ser o único no mundo a se sentir daquela maneira. “Não sabia que tinha outras pessoas como eu, e quando cresci e vi que tinha outros homens trans fiquei até meio emburradinho.”
A aversão inicial com a moda tinha a ver com as próprias disforias com o seu corpo. Mas no decorrer, tomou gosto pelo trabalho e veio para São Paulo com o objetivo de encontrar uma agência que o representasse. Duas semanas antes da conversa com Marie Claire, havia sido agenciado pela Way Model Management.
No início da carreira, seu grande medo era ser colocado numa fila de mulheres e identificado como andrógino. O medo nunca se concretizou.
A história de Sam é um ponto fora da curva no que diz respeito à vivência de pessoas trans no momento que afirmam suas identidades. O apoio e respeito que encontrou dentro da profissão foi também demonstrado por seus pais, quando decidiu se abrir aos 13 anos.
“Chorei quando falei, mas minha mãe me tranquilizou, me abraçou, disse que já esperava. O sofrimento foi muito mais por uma pressão psicológica com base na transfobia na sociedade. Eles foram os primeiros para quem eu contei.”
Hoje, quando lembram do momentos, os três riem. Afinal, eles já sabiam. “Nós respeitamos o seu tempo e esperamos você colocar isso para fora”, teriam dito.

O desafio na moda não foi exatamente enfrentar o preconceito, mas passar sua experiência para outros profissionais e conseguir mostrar que “trabalhar com pessoas trans é tão fácil quanto trabalhar com pessoas cis”.
Apenas com uma ressalva: “Nós pessoas trans temos as nossas disforias, que precisam ser olhadas com um pouco de atenção. Eu sinto que quando eu comecei tinham pessoas que não sabiam lidar direito com isso.”
Sam defende que é importante que os modelos se imponham quando não estiverem confortáveis, mas que também exista um cuidado por parte da produção em perguntar como estão se sentindo.
“Acho que já passou dessa época de que modelo é apenas cabide. Precisam enxergar que temos personalidade, sonhos, que queremos ir atrás de entregar quem somos e o que estamos sentindo.”