Assim que recebeu alta do hospital há pouco mais de um mês, Carol Marra foi almoçar num de seus restaurantes favoritos no bairro dos Jardins, em São Paulo. Era sua primeira refeição prazerosa após dias se alimentando de sopa durante a internação para a cirurgia de redesignação sexual. “Entrei carregando minha bolsa coletora de urina. Devem ter pensado que sou louca, mas não estava nem aí”, conta a jornalista e atriz à Marie Claire, em sua primeira entrevista após adequar o corpo à identidade feminina.
O prato, um entrecôte, seguido por uma sobremesa de chocolate, poderia ter vindo com sabor de novidade, mas era o mesmo de sempre. Isso porque a mudança a qual ela foi submetida foi realizada apenas para que Carol vivesse da única forma que sempre soube: como mulher. “Não me senti outra pessoa. Acho que já tinha absorvido essa realidade antes mesmo de vivenciá-la. Não vi diferença nem mesmo olhando para baixo durante o banho.”
Falar sobre a cirurgia lhe provoca emoções fortes, especialmente ao lembrar os momentos de solidão no quarto do hospital. “Não contei para quase ninguém. Nem mesmo para minha mãe”, diz com a voz embargada. As fortes dores físicas e emocionais, bem como a repercussão do procedimento em sua vida, estão detalhadas nesta entrevista. Carol também fala sobre as dificuldades enfrentadas por outras mulheres como ela no Brasil, país onde mais se mata travestis e transexuais no mundo. “O preconceito surge pela falta de informação. As pessoas não entendem isso, acham que trans significa putaria. Mas somos como qualquer outra mulher”.
Marie Claire – Como foi, aos 32 anos, finalmente adequar seu corpo à sua identidade sexual?
Carol Marra - Fiz a cirurgia e não falei para ninguém. Nem para minha mãe. Como ela não mora em São Paulo e está em luto com a morte recente do meu pai, não quis deixá-la preocupada. Fui sozinha, fui guerreira. Dependi da ajuda de poucos amigos. Passei dias muito difíceis, de solidão, dor. Cheguei a pedir a Deus para morrer na pior fase. Mas precisava passar por isso. O processo foi mais do que uma transformação exterior, ele representou uma mudança interna. Fiquei em casa por 25 dias para me recuperar.
MC – Por que a cirurgia foi feita somente agora?
CM – Sempre pensei em ser operada. Era para ter feito antes, mas não tinha um dos laudos que pediram. Adiei também para não perder algumas oportunidades de trabalho que surgiram. Mas decidi, neste mês, me dedicar somente a isso.
MC - Como é o processo para fazer a cirurgia de redesignação sexual?
CM – A vaginoplastia ou redesignação sexual, nomes corretos para o procedimento, é uma cirurgia cercada de medos e burocracia -- o Brasil é o único lugar do mundo que exige um laudo psicológico e endocrinológico. Uma assistente social é designada para conversar com amigos e familiares para atestar que a pessoa realmente é uma mulher. Tem também o acompanhamento de um psiquiatra, o que é compreensível, porque a cirurgia é irreversível. Mas em outros países é preciso levar apenas exames clínicos, como hemograma, risco cirúrgico e exame de coração. No Brasil, a transexualidade é também considerada uma doença, tanto que consta na CID (Classificação Internacional de Doenças). Isso acontece porque a pessoa trans não se reconhece no próprio corpo, não se sente confortável com a imagem que vê refletida no espelho. Muitas, por não conseguirem fazer a cirurgia, se mutilam ou até mesmo tiram a própria vida. Por isso, é considerada um transtorno psiquiátrico.
MC – Ainda existe muita confusão entre o que significa ser travesti e transexual. Poderia esclarecer as diferenças?
CM - A travesti, assim como a transexual, modifica o corpo para torná-lo feminino. Ambas colocam silicone, quando podem, e deixam o cabelo crescer. A diferença é que a travesti aceita a própria genitália e a utiliza na relação sexual com um homem, chegando a penetrá-lo em alguns casos. Ela tem uma relação saudável com o próprio corpo. A transexual, não. É muito triste ter um namorado e não se sentir à vontade para tirar a lingerie durante o sexo. Isso acontecia comigo: não me sentia completa. Mas eu, particularmente, não gosto de rótulos, me considero uma mulher e pronto. Detesto quando ficam me adjetivando: “A atriz e jornalista trans Carol Marra”. Ninguém fala: “O ator fulano de tal homossexual é o novo galã da novela”. Meu talento é mais importante do que minha genitália. Já era uma mulher antes da cirurgia.
MC - Em qual momento de sua vida soube que é uma mulher?
CM – Desde criança tinha um comportamento diferente dos outros meninos. Gostava de brincar com as bonecas da minha irmã e de imitar a Xuxa. Lembro que subia na cadeira e descia como se estivesse naquela nave do cenário dela. Na escola, era chamada de bichinha, mulherzinha. Também não podia frequentar o banheiro dos meninos, porque eles me batiam. Segurava o xixi até fazer nas calças. Naquela época, não se falava em bullying ainda. Minha mãe chegou a me levar a uma psicóloga, pensando que eu poderia me tornar homossexual. Já na adolescência, quando os hormônios floresceram, me sentia atraída pelos namorados das minhas amigas, e não pelos homossexuais. Também não conseguia me identificar como gay nem como travesti. Queria ser como minha prima, minha amiga. Queria ser mulher.
MC – Como foi abordar o tema com sua família?
CM – Costumo dizer que fui uma mentira para minha família, para a sociedade e para mim mesma durante muitos anos. Quando completei 18 anos, meu pai me presenteou com um carro. Eu o usava para trocar de roupa quando saía de casa, e fazia a mesma coisa ao voltar. Não podia me vestir de mulher em casa porque dependia financeiramente dos meus pais. Vivi essa mentira por muito tempo, até cair em depressão aos 20 e poucos anos. Busquei a ajuda de um psicólogo para finalmente revelar que sou transexual. Não foi uma escolha ser assim: é uma condição com a qual você nasce, assim como acontece com quem tem olho azul, cabelo liso ou cacheado. Lembro que, naquela noite, houve um silêncio em casa. Nas semanas seguintes, troquei as peças do meu guarda-roupa por itens femininos e agendei minha mastectomia. Saí pela manhã sem ninguém saber e retornei com implantes nos seios.
MC- Como imagina que será a vida amorosa de agora em diante?
CM – Antes de mais nada, quero que gostem de mim pelo ser humano que sou. A partir daí, se sou transexual ou não é apenas um detalhe. Costumo brincar agora que sou virgem, porque é uma genitália nova. Quero que a primeira noite de amor seja especial, afinal, foram 32 anos de espera para me sentir inteira, plena. Estou solteira, e a pessoa que escolher terá de ser especial. Apesar da cirurgia, alguns problemas vão continuar iguais. Nunca serei uma mulher como minha mãe ou minha irmã. Por mais que tenha mudado os documentos e ganho uma vagina esteticamente perfeita e funcional (posso ter orgasmos, inclusive), sempre serei transexual. Sempre haverá alguém esfregando na minha cara que nasci no corpo de um homem, mas não tenho problema com isso. O homem que estiver comigo precisará ter orgulho da minha história, não com vergonha.
MC - A cirurgia mudou sua visão de mundo de alguma forma?
CM - Nunca tinha sido militante pelos direitos das transexuais, mas agora me sinto na obrigação de ajudar outras meninas que não tiveram as mesmas oportunidades que eu. Antes mesmo da cirurgia, consegui trocar meu nome e meu gênero. Foi o primeiro caso no Brasil. A transexual, antigamente, precisava ser examinada por um perito do IML para comprovar a realização da cirurgia. Somente depois disso poderia pedir a mudança nos documentos. Meu caso também foi o primeiro no Brasil que retirou a menção ao procedimento do RG. Está escrito que nasci mulher. Minha jurisprudência está ajudando outras meninas a conseguirem o mesmo.
MC – Quais são as dificuldades para as transexuais conseguirem fazer a cirurgia?
CM – Eu paguei para ser operada, mas o procedimento também é feito gratuitamente no SUS. Porém, pode levar anos até que a menina seja operada. Além disso, há muitos cirurgiões plásticos despreparados que deixam sequelas, como problemas urinários, no corpo das pacientes. Esse não é um procedimento estético. Somente um médico urologista e um cirurgião geral plástico podem realizá-la.
MC – Embora o Brasil seja o país com o maior número de homicídios de travestis e transexuais no mundo, começamos a ver o reconhecimento de pessoas como Lea T. e Pabllo Vittar na mídia. Isso pode ser encarado como um sinal de mudança?
CM – Estamos longe do que seria o ideal, mas conseguimos uma certa visibilidade. Apesar de eu não gostar da palavra "aceitação", porque não fiz nada de errado para ser aceita ou não, dá sinais de melhora. Acredito que falta de informação leva ao preconceito. As pessoas precisam conhecer nossa história antes de nos julgarem. Espero um dia poder ver mais atrizes transexuais na TV, em capas de revista, e que isso seja considerado algo normal. Infelizmente, muitas ainda se prostituem pela falta de oportunidades no mercado de trabalho. Elas são covardemente empurradas para a prostituição, por não conseguirem um emprego. Fazem isso como última alternativa para não passar fome.
MC – Recentemente você participou do filme “A Glória e a Graça”, com Carolina Ferraz, em que interpretou uma travesti. Como acha que vai ficar sua carreira de atriz a partir de agora?
CM – "A Glória e a Graça" foi meu primeiro filme. Agradeço muito ao diretor Flávio Ramos Tambellinia e a Carolina. Nos tornamos muito amigas. A partir de agora, não quero fazer somente papéis de transexuais. Sou uma atriz e quero emprestar meu corpo para contar histórias diferentes da minha. Não preciso fazer a bonequinha queridinha da novela, e para mim não há papéis grandes ou pequenos. Quero uma personagem boa, que toque o telespectador e o transforme de alguma forma. Sobre a carreira, em breve estarei no set para o longa “Charlotte", desta vez como protagonista. Mudei de visual, fiquei morena e estou com o cabelo enorme. Também vou lançar outro filme, “Berenice Procura”, em que faço uma vilã. Participei ainda de “Homem Perfeito”, com Dani Calabresa, Marco Luque e Luana Piovani, minha melhor amiga. Tem também a série do Miguel Falabella, “Brasil à Bordo”, que já está na Globo Play, e irá estrear na TV em breve. Planejo lançar um canal no YouTube, mas como jornalista. O primeiro vídeo será com a Luana.