“A voz é um ponto de disforia. Não adianta passar por um processo de transição, seja com cirurgia ou hormonização, e quando você abre a boca tem uma voz grave”. Em poucas palavras, a analista financeira Zara Cosenza, de 35 anos, resume o motivo que a fez procurar o professor e fonoaudiólogo João Lopes, da Universidade Veiga de Almeida, no Rio de Janeiro, para ajuda-la a readequar o som que saia de sua boca de acordo com sua imagem física.
O projeto surgiu quando o professor percebeu que homens e mulheres transexuais, que já eram marginalizados pela sociedade, tinham dificuldade de serem inseridos no mercado de trabalho. Juntamente com a ex-aluna Gisele Braga, os dois tiveram a ideia de criar este projeto de readequação vocal no Centro de Saúde da universidade e hoje atendem pacientes de todas as classes sociais.
“Começamos nosso trabalho com três garotas de programa, mulheres transexuais, sendo duas delas com nível superior e que não conseguiam emprego. Por este motivo se prostituíam. A partir daí ficamos conhecidos aqui no Rio, depois no Brasil e até internacionalmente e o público mudou. A classe social é híbrida, bem misturada, mas agora não tenho mais nenhuma garota de programa e sim advogado, auditor fiscal, professores, empresários, alunos que cursam medicina, farmácia e serviço social, cantores e atores. O público ficou bem diversificado”, explica.
João já havia trabalhado com atores que feminilizavam suas vozes para personagens no teatro e entendeu que juntando a ciência com a arte poderia se dedicar ao público transexual. Ele explica que seu objetivo sempre foi inserir estas pessoas no mercado de trabalho, pensando também no social, uma mudança que pode contribuir muito para uma melhora na qualidade de vida delas.
“Homens e mulheres transexuais fazem muita mudança física, mas a voz não acompanha. Quando a gente trabalha com um som que se identifique com o corpo, isso facilita a empregabilidade. Queremos trazer as pessoas trans para o mercado de trabalho e o nosso meio social, principalmente dando direito à cidadania a eles”, completa.
Marielle*, de 49 anos, conta que começou sua transição sexual em 2009, quando se entendeu como transexual. Este processo não foi algo tranquilo, mas aconteceu de forma natural, por meio de uma brincadeira entre amigos que tinham o hábito de se vestir de mulher e tudo ficou mais sério.
“Sou de uma época em que não tínhamos informação, internet e nenhum conhecimento. Na minha cabeça, quando eu era adolescente, só existiam homem e mulher, lésbica e gay. Não havia a figura transexual, somente a travesti, mas eu não me identificava com elas porque eram hostilizadas e marginalizadas”, lembra.
Foi aí que deu início à sua mudança física com hormônios e logo ficou sabendo sobre o projeto do professor João por meio de uma amiga.
“Corri atrás disso, gostei e estou lá há mais de três anos. Eu queria trabalhar a minha voz porque achava isso importante porque minha imagem não estava condizendo com a minha voz. Tenho um rosto superfeminino, mas minha ela não era assim. Aprendi nestes anos todos a trabalhar minha prosódia, que é a forma como a mulher fala. Independente se você tem um tom mais grave, fino ou agudo, o importante é ter a prosódia refletida no gênero que você pertence. Consegui fazer isso, claro que podemos melhorar sempre, mas já me sinto satisfeita com minha qualidade vocal”, comemora.
Como a "mágica" acontece
João detalha que o trabalho começa nas pregas vocais e na ressonância da paciente. Depois, o foco passa a ser a pronúncia das palavras, o gestual, a elaboração da fala e os aspectos ressonantais. Segundo ele, uma articulação que é muito travada ou fechada, vai proporcionar mais grave para a voz enquanto que as mulheres precisam de mais agudo, então existe um exercício diário de nitidez articulatória e aumento dos tempos das vogais.
“Já com os homens é o contrário: deixo mais pontuais e objetivos nos discursos. Diminuo o tempo de vogal. Não fazemos nenhum tipo de cirurgia, apesar de existirem e consistem em diminuir o tamanho das pregas para obter mais agudo. O nosso trabalho é terapêutico, sem medicações e a hormonização ajuda o homem trans porque tomar testosterona dá mais massa à prega vocal. No caso da mulher não faz muita diferença nos padrões femininos e masculinos. Por este motivo, 70% das pacientes são de mulheres. O hormônio feminino não atua diretamente nas pregas e não tenho diminuição de massa”, detalha.
O idealizador do projeto comenta que não é possível que uma mulher parta de uma voz muito grave para um agudo porque tem de ter um respeito à estrutura fisiológica e anatômica de cada indivíduo. Ele exemplifica que se uma mulher transexual tem 1,90 m de altura, a estrutura inteira dela é maior e, provavelmente, vai apresentar uma voz mais grave.
“Nestes casos, suavizo o padrão vocal, com mais soprosidade, um pouco de sensualidade, aumento um pouco o tempo de vogal, mas não é possível reestruturar a voz para torna-la uma soprano. Anatomicamente isso não é possível. Só por cirurgia mesmo, que também tem seus riscos e não há resultados que comprovem a real eficácia. Tem pessoas que não recuperam a voz”, avisa.
Zara não tinha uma voz feminina e estas entonações características de uma mulher. Aos 32 anos começou seu processo de readequação física e hoje tem feito exercícios diários para a evolução de seu tom vocal. Ela conta que desenvolveu uma consciência de sua voz e, normalmente, as pessoas não percebem que houve uma alteração.
“Quando a gente fala sobre feminilização da voz, não falamos sobre deixa-la mais fina, mas sim de entonação, deixar mais fluida e tive de aprender isso na marra. Eu não tinha bagagem disso. Foi um grande aprendizado. Eu gosto da minha voz, de onde eu cheguei, não estou 100% segura ainda, mas o termômetro que utilizo são as pessoas à minha volta. Eles me passam o feedback muito bom sobre o que alcancei. Tem um teste até bobo, que chamam ‘o teste da pizza’, em que você não se identifica, não fala seu nome para não caracterizar seu gênero, e você sabe se te identificam como uma pessoa masculina ou feminina. Eu fiz isso e deu certo”, celebra.
Ela comenta que este processo já a ajudou a se sentir mais confortável consigo mesma e sente que sua voz está mais próxima de uma imagem feminina.
“Talvez não me sinta com uma voz ideal, mas tenho mais segurança que antes com o que tenho hoje”, pontua.
Por fim, João esclarece que os primeiros resultados surgem, em média, em três meses e a pessoa passa por um período de “estágio” que dura mais cinco meses. Quem chega ali, sabe que terá um trabalho de um semestre inteiro para conquistar a readequação.
“Pedi gentilmente para que o tratamento fosse 100% gratuito, o que foi atendido pela universidade e os interessados podem entrar em contato com Centro de Saúde e marcar o horário para começar. Estamos com os horários lotados e com uma fila de espera. Nosso projeto deu certo, começou pequeninho em 2016 e ficamos muito felizes, com artigos científicos e capítulos de livros sobre o assunto. Fico muito feliz de trazer este tratamento.”
*nome alterado a pedido da entrevistada