Em um dos momentos mais assustadores de sua vida, a jornalista da Cruz Vermelha Sara Al Zawkari, de 33 anos, dizia a si mesma: “Se tiver que morrer hoje, vou viver meu último dia ajudando o máximo que puder”. Era 2017 e estava em Mossul, no Iraque, no momento em que as Forças Armadas iraquianas lutavam contra o Estado Islâmico para retomar o controle da cidade. “Foi a batalha final e a mais violenta”, lembra.
Estava a caminho de encontrar-se com um jornalista num hospital, e de repente viu-se numa cena que, diz, “parecia de filme”: fumaça preta, helicópteros, aviões, explosões e tiros para todo lado. Conseguiu chegar ao hospital, que tremia inteiro a cada ataque. Parte da equipe de comunicação da organização humanitária, Sara conta que em momentos como esse faz de tudo: traduz, levanta caixas, leva equipamento médico, consola pacientes.

A jornalista nasceu na Arábia Saudita, mas morou anos com sua família no Iêmen, país em guerra desde 2014 e considerado pela Organização das Nações Unidas (ONU) a pior crise humanitária do planeta. “Teve um dia em que estava deitada na cama e um foguete caiu atrás da minha casa. Fui literalmente lançada até a sala com a explosão”, relata.
Diante do sentimento de impotência diante do conflito no Iêmen, decidiu trabalhar na Cruz Vermelha. Já atuou em zonas de guerra em diversos outros países como Sudão, Síria e Líbia. “Sempre pensamos que conflitos armados são território masculino e costumamos ver mulheres apenas como vítimas. Mas quem trabalha em área de conflito sabe que é muito mais do que isso. Mulheres não são apenas vítimas indefesas: muitas mostram força e coragem, são as que protegem suas famílias, se colocando em risco para conseguir alimento e remédio, e muitas participam do processo de reconstrução da paz depois da guerra”, conta Sara.

Mundo afora, a tendência é de crescimento no número de mulheres combatentes. A Segunda Guerra Mundial (de 1939 a 1945) foi um marco histórico de presença feminina, tanto em alistamentos oficiais quanto na resistência civil, explica Mariana Bernussi, professora no Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC) de São Paulo e pesquisadora de segurança internacional e temas de gênero. A pesquisadora ressalta a atuação das mulheres soviéticas nas forças partisans, de resistência civil armada. “Não são profissionais, mas pegam em armas. Podemos observar o mesmo agora na Ucrânia”, afirma.
Na Ucrânia 15% do Exército é composto por mulheres. Segundo Mariana, até 2016 as mulheres eram proibidas por lei de atuarem em posições de combate nas Forças Armadas ucranianas. Depois que essa norma foi derrubada, o número de soldadas dobrou. “Elas têm sido convocadas desde o ano passado, quando as tropas russas começaram a se movimentar. Do outro lado, quando pensamos nas tropas russas, as mulheres têm uma participação menor: só 5% das Forças Armadas são compostas por mulheres”, afirma. Mulheres também costumam fazer parte do atendimento médico.
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“Tradicionalmente o papel da mulher na guerra é esse: de cuidado, ajuda”, explica Mariana. A pesquisadora destaca a atuação feminina na ajuda humanitária e na organização para o envio de equipamento e alimento à linha de frente, e para a oferta de refúgio aos que estão em deslocamento.

Em A guerra não tem rosto de mulher (ed. Cia das Letras, 392 págs., R$ 57,90), a escritora bielorrussa Svetlana Alexijevich reconstrói a narrativa das quase meio milhão de mulheres que lutaram no Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial. Svetlana faz com que as vozes delas ressoem de forma arrebatadora através de memórias que evocam frio, fome, abusos e a sombra onipresente do medo.
A autora ganhou o Nobel de Literatura em 2015 pelo conjunto de sua obra, mas com certeza teve relevância para a condecoração esse livro revolucionário, o primeiro grande retrato sobre os tantos lugares das mulheres nas guerras – justamente a base para a discussão que propomos aqui.

Bombas explodiam do lado de fora do ateliê enquanto Margo Sarkisova, 25 anos, corria para enfiar algumas de suas obras na mala e partir. A artista plástica iria de Kharkiv, cidade no leste da Ucrânia, para Lviv, no oeste, em 20 minutos. A guerra com a Rússia havia começado três dias antes, quando mudou-se com a irmã mais nova, de 20. Desde então, as duas vivem na casa de uma amiga de Margo com outras cinco pessoas, dois gatos e um cachorro. Ao soarem os alarmes aéreos, todos descem para se abrigar no porão, um ritual praticado algumas vezes por dia a depender da semana. A artista nunca pegou em armas, apesar de defender que mulheres o façam: “São combatentes importantes para nossa vitória”, opina.

Registros oficiais dão conta de 1.932 civis mortos e 2.589 feridos na guerra da Rússia contra a Ucrânia, segundo monitoramento da Organização das Nações Unidas, atualizado diariamente. Dos mortos, 485 eram homens, 313, mulheres, 31, meninas, 54 meninos, e 72 crianças e 977 adultos com gênero ainda desconhecido.
Ainda que um fenômeno global, as motivações para o aumento do número de mulheres combatentes variam. É o que afirma a indiana Swati Parashar, professora do Departamento de Estudos Globais da Universidade de Gotenburgo, na Suécia: “Os motivos pelos quais as mulheres lutaram na guerra no Sri Lanka foram muito diferentes dos que contribuíram na guerra anticolonial da Algéria, na resistência no Kashmir ou no Nepal. Mulheres também participam de atividades violentas de extrema-direita de grupos de vigilância, até mesmo defendendo o uso de extrema violência e estupro contra mulheres consideradas ‘inimigas’.”

Pesquisadoras como Swati fazem parte de um movimento acadêmico de feministas que buscam entender o espaço das mulheres para além do inegável papel de vítimas dos impactos da guerra, mas também como perpetuadoras e planejadoras de ações armadas, por exemplo.
“É importante reconhecer que mulheres atuam em guerras há muito tempo e esse é um assunto do qual ninguém quer falar. A ideia de que homens fazem guerra e mulheres, a paz, é problemática. Quanto mais as mulheres são visibilizadas em guerras, mais podemos argumentar de que podem ter voz ativa na paz. A menos que você desmantele a hierarquia social de gênero e a forma como a guerra é representada, você não conseguirá questionar a guerra em si. Vamos continuar presumindo que guerra é natural, assim como homens lutarem e mulheres protegerem. Quando você diz que mulheres lutam, isso não é natural, então você desloca a guerra e a pergunta passa a ser: se nem todos os homens fazem guerra e nem todas as mulheres são vítimas, por que guerras acontecem?”.

As palestinas são um exemplo de protagonismo histórico na resistência às políticas expansionistas de Israel, de acordo com a jornalista e pesquisadora palestino-brasileira Soraya Misleh.
A mais famosa delas é Leila Khaled, 78, ex-militante da Frente Popular para a Libertação da Palestina e atual membro do Conselho Nacional Palestino. Os olhos pretos amendoados, o lenço ao redor da cabeça e o fuzil AK-47 pendurado no ombro: a imagem da guerrilheira rodou o mundo após ser a primeira mulher a sequestrar um avião, em 1969. Junto com um colega da organização, desviou um voo que ia de Roma para Tel Aviv, forçando a nave a descer em Damasco, na Síria. Todos os passageiros saíram ilesos, e depois o avião explodiu. “Se for ajudar a minha causa, ficarei feliz com a minha morte”, afirmou em entrevista na época.
A partir dos anos 1920, as mulheres palestinas, que até então atuavam em associações assistenciais e humanitárias, colocam-se ao lado dos homens contra a ocupação de terras por parte de Israel.
O I Congresso das Mulheres Árabes em Jerusalém foi realizado em 1929, depois do qual as participantes saíram em carreata parando em frente a consulados estrangeiros. Elas então passaram a atuar em vários campos: como enfermeiras, auxiliando nas linhas de comunicação, alimentando os combatentes, organizando greves e protestos, mas também avançam nos anos seguintes para formar suas próprias brigadas. As irmãs Nariman e Moheed Khorsheed formam a primeira brigada feminina palestina em fevereiro de 1947.

“Em 1964, duas mulheres participaram do congresso fundacional da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e um ano depois foi constituída a União Geral das Mulheres Palestinas.
No final dos anos 1960 e início da década de 1970 algumas se engajaram em ações diretas na busca por troca de prisioneiros. Também muitas escritoras se somam ao movimento de literatura de resistência, como a poeta Fadwa Tuqan. Nas intifadas [levantes populares] estiveram na linha de frente e hoje jovens mulheres reivindicam esse legado e são a vanguarda”, diz Soraya.
As Forças Armadas israelenses mataram 355 palestinos e feriram mais de 16.500 ao longo de 2021, segundo relatório divulgado pelo Ministério da Saúde da Palestina. A maior parte dos mortos foi na Faixa de Gaza.
Mulheres e meninas tendem a ser retratadas como vítimas em situações de conflito, em parte porque de fato o são. Assim como idosos e deficientes, configuram o grupo mais exposto e vulnerável. A tunisiana Imene Trabelsi, porta-voz da Cruz Vermelha para assuntos de Oriente Médio, países do Golfo e norte da África, elenca os principais impactos às mulheres, como o acesso limitado aos escassos serviços de saúde, saneamento básico e água.
No aspecto econômico, são mais propensas a perder a fonte de renda, ao mesmo tempo em que passam a ser o arrimo da família em caso de morte do marido. “De acordo com a ONU, 60% das mortes maternas acontecem em áreas de crise humanitária. No Iêmen, país em guerra desde 2014, apenas metade dos partos são realizados por profissionais capacitados”, exemplifica.
Pesquisas mostram que, quando ações humanitárias miram em mulheres, a comunidade toda se beneficia, afirma Imene. Apesar disso, costumam ser excluídas do processo de elaboração de uma resposta da comunidade diante de uma crise. “No Oriente Médio em particular, ainda que estejam no centro de alguma ação humanitária, as mulheres não têm acesso aos espaços de tomadas de decisões, que acontecem a portas fechadas em ambientes exclusivamente masculinos. As mulheres são um centro mudo.”
Um conflito armado também pode levar ao aumento da violência de gênero – mais expecificamente da violência sexual. Um terço das mulheres no mundo vivenciam a violência física e/ou sexual durante a vida, segundo dados divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2021. Esse número, alarmante e certamente subnotificado, cresce num contexto de conflito. Apesar de ser uma violação da legislação internacional humanitária, o estupro historicamente é usado como arma de guerra.
Foi o que aconteceu com a camaronesa Dorice Takeu Kouamo, de 39 anos. As batidas na porta de casa tarde da noite eram sinal de que algo não estava certo. Dorice estranhou, já que não esperava visita. Grávida, estava em casa com o companheiro e o filho pequeno. O casal havia mudado de uma região francófona para uma anglófona de Camarões, que vive uma guerra civil entre os dois grupos desde 2017. Ao abrir a porta, Dorice conta que um soldado entrou e levou o seu marido, acusado de ser um espião do grupo inimigo. Ficou desaparecido por dias, até que, mais uma vez, tarde da noite, ela ouviu mais batidas na porta. O corpo desfalecido do marido tinha sido deixado na frente da casa. Nesse momento, um outro soldado teria aparecido e capturado Dorice.
A camaronesa relata que ela e o filho, então com 3 anos, ficaram trancados em um quarto escuro e sem água, por três dias. Dois homens então chegaram e a levaram para outro espaço, onde a estupraram. “Falei para eles que estava grávida, mas não adiantou”, lembra. Depois disso, Dorice não consegue se recordar. Só sabe que acordou um dia com o filho do lado e uma mulher desconhecida, que a ajudou a sair dali. Juntou-se a outros camaroneses jurados de morte e fugiu com o filho para Guiné Equatorial, onde entrou de barco clandestinamente. Foi trabalhar como empregada doméstica na casa de um alto funcionário do governo, que também a violentou sexualmente durante meses. “Ele me dizia que se eu o denunciasse, me entregaria para a polícia, já que eu estava lá sem documentos. E eu não poderia voltar ao meu país senão seria morta. Eu era uma escrava dele”, relata.
O bebê acabou nascendo prematuro, com seis meses de gravidez. Ficou no hospital por uma semana, mas não sobreviveu. Ali Dorice fez amizade com uma enfermeira que a acolheu em sua casa e a ajudou a conseguir um visto com um amigo que trabalhava na embaixada brasileira. Não podia continuar na Guiné Equatorial e nem voltar para Camarões, então resolveu vir ao Brasil. Assim que chegou, quis aproveitar o atendimento médico gratuito pelo SUS. Fez diversos exames e testou positivo para HIV. “Não faço ideia de quem me infectou”, lamenta aos prantos.
Dorice vive num quarto em uma pensão na Santa Ifigênia, região central de São Paulo. Gostaria de estar junto ao seu filho, que vive em Camarões com a tia, e de morar numa casa maior e mais confortável, mas não reclama. Diz que está feliz no Brasil, onde chegou em 2018 e trabalha como recepcionista e faxineira de um hotel.
Há três anos, aguarda um horário na Polícia Federal para dar início ao seu processo de regularização. Só então tentará trazer seu filho para o país.
A ucraniana Margo, por sua vez, não consegue prever o que será de sua vida daqui pra frente. Conta que vive em estado de medo e ansiedade constantes, mas se esforça para criar uma rotina que a ajuda a tranquilizar a mente, como praticar yoga e desenhar. Ao pensar no futuro, cita a si mesma e lembra do que falou em entrevista recente a uma amiga escritora, a australiana Kathryn Carter: “Situações como essa nos ensinam que nosso lar pode desaparecer a qualquer momento. Estabilidade é a maior ilusão de nossa mente.”