
O Carnaval, expressão genuína do que somos e do que queremos ser, é engenharia coletiva com forte marca das mulheres negras. Importado da Europa, foi apropriado pela população negra, que nele viu oportunidade de vivência à luz do dia e proteção contra a violência racista, de tradições negras perseguidas e desvalorizadas.
É da resistência negra que vêm a riqueza visual e sonora, o chamado à expressão livre do corpo, a alegria contagiante. Essa produção grandiosa teve e tem, muitas vezes, a liderança (invisibilizada) de mulheres como Alcione, Leci Brandão, Jovelina Pérola Negra, Dona Ivone Lara, Elza Soares, que representam um contingente cujos nomes são silenciados e que deram (e ainda dão) o tom do samba, da cultura e do Carnaval.
Há uma infinidade de figuras essenciais que inovaram e renovaram tradições. No Carnaval carioca, Tia Ciata, uma baiana na comunidade de imigrantes chegados ao Rio no final do século 19, tornou-se um dos nomes mais influentes da cultura brasileira no século 20. Muita gente não ouviu falar dela.
Para os amantes do samba, restou a versão da Tia Ciata dona da casa onde teria sido criado Pelo Telefone, primeiro samba gravado da história do Brasil. Mas ela era muito mais que isso: era líder religiosa do candomblé, em torno de quem a comunidade se reunia; destaque entre tantas outras baianas quituteiras e autoridades religiosas, cujos nomes e importância foram soterrados pelo interesse da indústria cultural em seus filhos e sobrinhos (João da Baiana, Donga, Pixinguinha).
Tia Ciata possivelmente estava na roda de improvisos que gerou Pelo Telefone, sendo uma de suas “autoras”, num tempo em que se valorizava a produção coletiva. É possível ainda que tenha influenciado a criação de agremiações que vieram a dar origem às famosas escolas de samba.
Eu, que nasci enraizada no samba e nas religiões de matriz africana, celebro o Carnaval como uma forma de celebrar também aquelas que vieram antes e as contemporâneas que levam adiante essa herança.
Eu, carioca de coração portelense, vi, ainda menina, Vilma Nascimento, uma das maiores porta-bandeiras da história, esbanjar elegância e magia na avenida. Presenciei Maria Lata d’Água, que exibia seu talento imenso sambando com o instrumento de trabalho de muitas na favela, uma lata d’água de 20 litros, na cabeça. Vi Pinah, destaque da Beija-Flor, dançando com um representante da casa real inglesa. Reverencio as mães de santo que plantaram o axé que deu origem às grandes escolas de samba do Rio.
Até hoje vejo essas mulheres, referências em suas comunidades, perseguindo protagonismos. Eu as chamo de ialodês, emprestando a designação iorubá dada a líderes e representantes de mulheres na esfera pública, na minha tese de doutorado e no livro O Samba Segundo as Ialodês.
No prefácio, a grande ativista Sueli Carneiro descreve ialodê como “metáfora da liderança feminina, uma chave de leitura das estratégias culturais mobilizadas pelas mulheres negras extraída das culturas africanas”. Todo mundo tinha uma contribuição a dar, um talento a expressar. E, ligando tudo, estava a referência mais ou menos explícita aos orixás, visível para quem entende, para quem tem olhos de ver, como dizia minha mãe, reafirmando pertencimentos e identidades.
É assim, apresentando e representando a diversidade do que somos, unindo tradição e modernidade, que enxergo o papel dessas mulheres na cultura do samba e do Carnaval.
O que digo aqui é visível para quem nasceu e vive imersa na cultura negra. Mas é uma história que se torna opaca porque racismo, preconceito e discriminação empurram mulheres negras e sua cultura à marginalidade social. Isso mostra o quão deletério o racismo é – não só para nós, suas vítimas diretas, mas para todos que perdem as cores e os sabores que a vida oferece.
Ainda afetado pela crise sanitária e de direitos humanos instalada pela covid-19 e por governantes negligentes e desastrosos e seus seguidores, o Carnaval de 2022 não é, não foi e não será como antes. E só poderá ser o que deve quando restituirmos às mulheres negras o seu lugar de direito.