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"Decidi ser guerrilheira para libertar meus filhos das FARC", diz colombiana

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PROCUREI O COMANDO DAS FARC E DISSE: "TROCO A MINHA LIBERDADE PELA DOS MEUS FILHOS" (Foto: © JOEL SAGET / AFP )

Em 1996, eu tinha 22 anos e era mãe solteira de dois meninos, de 8 e de 5 anos. Trabalhava como camponesa na região central do país. A vida era simples, plantávamos para comer. Na década de 90, a Colômbia passava por um momento político delicado: enquanto o presidente se enfraquecia, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) buscavam aliados entre os camponeses para implantar o socialismo no país. Eu estava distante desse contexto, até o dia em que a Milícia Clandestina, grupo das Farc que recruta civis para a guerrilha, chegou à minha região. O discurso era claro: eles nos garantiram que só teríamos paz e proteção se os ajudássemos a fazer a revolução. Para eles, ou você apoiava ou era considerada inimiga. Com a pressão, acabei me integrando ao grupo. Como a Milícia Clandestina não usava armas, nem uniformes, eu não achava que estava fazendo mal a ninguém. Minhas funções eram providenciar esconderijos para integrantes das Farc e plantar coca, de onde eles extraíam a matéria-prima para a cocaína.

Depois de alguns meses nessa situação, a Milícia Clandestina comunicou que eu teria que fazer um treinamento de oito dias com a Milícia Bolivariana, braço armado das Farc que atua perto dos centros urbanos e é fundamental na produção de cocaína,principal fonte de financiamento da guerrilha. Eles insistiram que todos os camponeses teriam que ir e levar suas crianças.

RECRUTAMENTO FORÇADO
No dia combinado, eu e meus filhos entramos em uma caminhonete em que havia outras famílias – umas 12 pessoas, entre crianças e adultos. Estava convencida de que logo voltaria para casa. Mas, no caminho, uma dessas pessoas me disse que a Milícia Bolivariana impedia que os filhos regressassem junto com seus pais. Descobri, ali, que havia um esquema para cuidar das crianças, como um pré-recrutamento, até que elas atingissem 12 anos, idade em que as Farc começam a capacitar seus soldados para a guerrilha. O tal treinamento era só um pretexto para que levássemos os meninos para lá.

Quando percebi que tirariam meus filhos de mim, fiquei desesperada. Queria sair da caminhonete a qualquer custo, aproveitei uma hora em que o encarregado de nos levar havia parado na estrada e saí escondida do veículo com as crianças. Quando Juan, o encarregado, se deu conta de que tínhamos fugido, ele ordenou que seus guarda-costas nos procurassem. Passamos a noite escondidos no mato. No dia seguinte, começamos uma caminhada para tentar voltar para casa. Mas o caminho era de savana, por isso não tínhamos como nos esconder direito. Juan acabou nos encontrando. Tentei correr, mas os dois capangas desceram do carro, com espingardas apontadas para nós. Colocaram a arma na minha cabeça e começaram a gritar: “Se você não vier conosco, vamos te matar!”. Meus dois filhos correram para debaixo das minhas pernas, começaram a chorar e gritar: “Não, não! Não matem minha mãe, não matem minha mãe”. Sem saída, eu subi no carro com as crianças. No trajeto, crianças e adultos foram separados. Os outros pais foram liberados, mas eu fui mantida na caminhonete. Não sabia para onde iria. Durante todo o tempo, eles mantiveram a arma apontada para mim e, por isso, fiquei imóvel quando os meninos foram levados. Eles choravam muito.

Descobri mais tarde que eles foram levados para uma casa onde a guerrilha abrigava as crianças pequenas. Meu destino foi o acampamento da Milícia Bolivariana. Lá me castigaram: tive de cozinhar para os 120 homens da milícia, limpar o acampamento e alimentar os porcos no chiqueiro por 50 dias, ou até que eu me rendesse e dissesse que queria trabalhar para eles. Eu estava muito triste, só queria meus filhos e não parava de dizer isso e brigar.

Depois de 15 dias ali, conheci uma mulher que estava em situação parecida com a minha. Ela me disse: “Vera, pense nos seus filhos. Se você continuar se rebelando, pode ser morta e nunca mais vai vê-los”. Ela tinha razão e resolvi mudar de estratégia. Fui ao encarregado e disse: “Acho que gosto das Farc e da ideia da revolução”. Mudei de postura e fingi que estava feliz lá. Comecei a ser treinada para lutar, com armas inclusive. Continuava agoniada, mas não podia deixar isso transparecer.

REENCONTRO
Dois meses depois de mudar de comportamento, fui mandada para um treinamento em San Vicente de Caguán, a 286 km de Bogotá, onde funcionou o secretariado das Farc nos anos 90. Lá, vi chefes importantes da guerrilhas, como Manuel Marulanda e Mono Jojoy (mortos há quatro anos, em operações militares). Durante três meses, tive aulas de ideologia da revolução, uma lavagem cerebral. Quando voltei, pedi para ir visitar meus filhos. Já fazia um ano que não tinha notícias deles. Insisti tanto que me deixaram ir. Por precaução, levei comigo uma pistola pequena, escondida.

Quando cheguei ao abrigo em que meus filhos moravam, fiquei chocada. Eles estavam subnutridos, malvestidos e malcuidados. Nosso reencontro não foi como eu esperava. Eu apenas pude olhá-los, enquanto eles limpavam a casa. Quando me viram, eles não saíram de onde estavam. Conversamos pouco. Eu não tinha permissão para agir como mãe deles. Junto com meus filhos, havia outras 18 crianças. A menorzinha tinha só 4 anos e a maior, 11. No lugar, havia, além dos milicianos, duas mulheres e um senhor de bastante idade que tomavam conta dos pequenos. Fiquei ainda mais revoltada em ver como as crianças eram tratadas. Vi uma das mulheres bater no meu filho mais novo, que sempre foi travesso. Fiquei furiosa e saquei a arma para matá-la. Mas o velhinho que estava lá me disse: “Se você matar essa mulher, vão matá-la em seguida. Pense em seus filhos”. Isso me deteve. Passei 15 dias nesse alojamento e a cada dia ficava mais indignada. Ver um filho sofrer e não poder fazer nada é insuportável. O senhor que cuidava deles viu meu sofrimento e me aconselhou a voltar ao acampamento e esperar. “Quem está no meio dessa guerra, sobrevive se fingir que é parte dela.” Acabou me convencendo a ir embora. Sequer pude me despedir dos meus filhos e explicar para eles por que estava indo. O mais novo pensa, até hoje, aos 20 anos, que eu os abandonei. De volta à Milícia Bolivariana, continuei com a farsa de que pretendia participar da revolução. Era esse discurso que me permitia sobreviver.

UM AMOR NA SELVA
Quando voltei, conheci Saul, um miliciano muito experiente com quem comecei a me envolver. Ele tinha uns 40 anos. Sabia dançar bem, era bonitão e chamava muita atenção. Um dia, começou a me olhar e a gente acabou ficando junto. Mas como sabia que ele era mulherengo, no início não quis namorar. Eu gostava de ficar com ele, porque era bom de cama. Só que a gente foi ficando cada vez mais junto e ele foi deixando de ficar com outras mulheres. Namoramos sem ninguém saber por dois anos, já que para namorar dentro de acampamentos das Farc é preciso pedir permissão. É necessário ter autorização do chefe até para transar. O comandante determina até quantas horas um casal tem para fazer sexo. As barracas, às vezes armadas em buracos, ficam juntas umas das outras, e assim se escuta gemidos à noite. Mas nós não queríamos ficar pedindo permissão e por isso namorávamos escondido.

Só resolvemos avisá-los quando decidimos nos casar. Dentro da guerrilha, casamento se chama associação ou parceria. Pedimos autorização para associação ao comandante e ele nos casou. O casamento me ajudou a seguir vivendo, embora Saul pensasse de uma maneira oposta à minha em relação à guerrilha. Ele era muito fiel às Farc e insistia que era melhor para meus filhos serem parte da luta. Dizia que entendia meu sofrimento de estar longe, mas que se eu fugisse para tirar meus filhos de lá, não me ajudaria. E falava até que entenderia se me matassem por desobediência. Mesmo assim, eu fiquei com ele.

Foi Saul quem me ensinou a ser guerrilheira. Com ele, aprendi a atirar e a cuidar do equipamento. Tinha me tornado uma boa combatente, hábil com armas. Sabia operar até fuzil AR-15. Em 2000, as Farc fizeram uma grande convocação para milicianos e civis da região, oferecendo dinheiro para quem fosse trabalhar nos acampamentos onde não só combateríamos os soldados, mas atuaríamos no narcotráfico, levando drogas de um ponto ao outro. Eles pagavam, pois era um passo mais difícil, uma vida mais perigosa, na selva, tendo que passar fome em dias de combate, e sendo considerado um fora da lei. Aos que já estavam trabalhando nas milícias, as Farc fizeram a oferta em dinheiro e ainda disseram que, antes de ir para os acampamentos, a pessoa teria o direito de visitar a família.

CONDUTA DE GUERRILHEIRA
Nessa época, meu filho mais velho tinha completado 12 anos e já ia ser recrutado. Isso me desesperava. Pedi uma audiência com o comandante responsável pela campanha de recrutamento. Contei a história toda e disse: “Camarada, o senhor precisa de gente preparada para o combate, não é?”. Ele disse que sim. Então, eu falei: “Eu quero ser diretamente das Farc. Eu já sou guerrilheira. Já sirvo a vocês, sou hábil com armas. Não quero dinheiro. Só quero que meus filhos sejam mandados pra casa e dispensados da guerrilha. Peço que eles sejam entregues à minha mãe”. Ele pensou um pouco e eu insisti. “Troco a minha liberdade pela dos meus filhos. Faço o que vocês quiserem. Mas quero meus filhos livres.” Eles aceitaram. Saul foi comigo. Para ele, foi como uma promoção.

Um mês depois de ser integrada às forças mais combativas das Farc, minha mãe foi me visitar. Pedi que ela levasse os dois meninos. Depois soube que o senhor que cuidava dos meus filhos no abrigo foi quem realmente os criou. Quando minha mãe foi buscá-los, o velhinho disse que estava muito apegado a eles. As crianças foram com minha mãe, mas o velhinho fugiu do abrigo e foi atrás. Como ela era muito pobre para sustentá-los, confiou no velho e deixou que ele vivesse com os meninos, perto da casa onde ela morava. Eles o chamavam de paizinho. Tudo isso eu só soube quando saí, em 2008. Infelizmente, nunca pude agradecê-lo; quando desertei, ele já havia falecido.

LINHA DE FRENTE
A partir daí, fiquei um pouco mais aliviada por meus filhos não estarem mais em perigo. Mas vivia com saudade e, apesar de casada, sonhava com minha fuga. A vida é difícil nas Farc. Há dias de festa e muita comida, quando não se está combatendo. Mas há dias de fome. Eu cheguei a ficar cinco dias sem comer em uma das missões. Participei de uma batalha contra o Exército na qual, de 100 guerrilheiros, só cinco saíram vivos. As mulheres também têm de enfrentar os abortos. Os chefes das Farc nos davam injeções de anticoncepcional, mas o controle não era perfeito. Então, se você engravida, provavelmente terá que se submeter a um aborto, mesmo contra a sua vontade. Eu engravidei uma vez de Saul. Queria esconder a gestação, mas aos quatro meses, ele me levou ao comando para contar. Me mandaram ao hospital da guerrilha. Eu estava acordada. Não sentia dor, pois me deram uma anestesia, mas sentia quando raspavam meu útero, parecia que estavam esfregando vidro dentro de mim. Naquela hora, só me lembrava dos meus filhos nascendo, pequenininhos. Chorei muito.

Depois de oito anos na selva com as Farc, eu estava exausta. A tensão crescia. Já estávamos em 2008, auge do governo do presidente Álvaro Uribe, que aumentou as operações militares de repressão à luta armada. Meu marido foi ferido no pulmão um ano antes, e ficou bastante frágil. Depois disso, ele já não ia aos combates, embora eu continuasse indo. Sempre o convidava a fugir e comecei a incentivá-lo ainda mais. Um dia, doente e desesperançado, ele topou e desertamos. Nos apresentamos ao Exército e fomos viver na cidade de Villavicencio, a 105 quilômetros da capital do país. Mas, quando alguém se desmobiliza, vira alvo da guerrilha. Nossos nomes e fotos apareciam na revista das Forças, na página de “procurados”. Meu marido foi morto poucos meses depois da nossa fuga. Um paramilitar o matou, em busca da recompensa oferecida pelas Farc.

O RECOMEÇO
Quando saí, fui atrás dos meus filhos. Meu mais novo já tinha 17 anos e estava com minha mãe. O mais velho estava com 20 anos e havia completado o serviço militar. Fui reintegrada à sociedade e hoje trabalho como costureira em Bogotá. A vida não é fácil para quem volta, mas cada vez mais guerrilheiros desistem da revolução, tanto pela pressão da operação militar, quanto pela desilusão ideológica com a guerrilha. Quando surgiram, nos anos 60, as Farc eram uma revolta camponesa que lutava por igualdade social e que pregava a revolução socialista por armas. Mas, com o passar do tempo, a guerrilha foi perdendo credibilidade, depois de se envolver com o narcotráfico e fazer seqüestros e ataques terroristas contra civis. Há muito rancor contra as Farc.

O que me deixa feliz hoje é ver que meus filhos se tornarem homens de bem. Eles estudam, trabalham, têm amigos e são honestos. Moro com o mais velho, que agora tem 24 anos e acabou de se casar. Ele é muito carinhoso e sempre diz que entende o que fiz por eles. Com o menor, ainda não me acertei. Ele cresceu revoltado com a ideia de que o abandonei e diz que não se sente meu filho. A verdade é que nosso tempo perdido não vai voltar. Simplesmente perdemos. Eu não pude vê-los crescer e eles perderam o colo de mãe. Mas ganharam liberdade. E, ao final de tudo, estamos todos vivos. Isso me consola.


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