
Uma mulher morre a cada 9 minutos no Brasil em decorrência de abortos clandestinos. Estima-se que, por ano, uma milhão de brasileiras se submete à interrupção da gravidez de maneira ilegal. Nas ruas, feministas clamam pela descriminalização da prática, enquanto no Congresso políticos se unem para impedi-la a qualquer custo. Diante de um cenário tão brutal, Helena Solberg fez o documentário “Meu Corpo, Minha Vida”, que será exibido nesta quinta (30.03), às 23h30, no canal GNT.
“Enquanto estamos debatendo a descriminalização do aborto, mulheres estão morrendo”, disse a cineasta em entrevista à Marie Claire. Para apresentar esta realidade de maneira franca e reflexiva, Helena se debruçou sobre a história da jovem carioca Jandyra Magdalena dos Santos, que foi morta em uma clínica clandestina no Rio de Janeiro, em 2017, quando tinha 27 anos e pretendia interromper sua terceira gestação. O caso ganhou repercussão mundial e jogou luz sobre a realidade dramática de muitas brasileiras.
Jandyra foi uma personagem icônica, “vítima do discurso religioso que contaminou as políticas públicas brasileiras”, diz a jornalista Flávia Oliveira, que participa do filme. A jovem reunia vários elementos que dão tanta complexidade ao tema: moradora da periferia, de família religiosa, mãe de dois filhos, separada e que engravidou pela terceira vez por acidente. “Diante do dilema de embarcar na carreira profissional ou em mais uma gestação, ela recorre ao procedimento realizado de maneira clandestina e ainda precisa lidar com sintomas de depressão decorrentes de uma decisão absolutamente solitária”, explica Flávia. “Ela é muito simbólica por ter passado por todos os problemas que as mulheres não deveriam passar, se não fosse esse debate hipócrita e cínico que tomou conta da sociedade e da política.”
Para não parecer militante demais, mas ao mesmo tempo se posicionar a favor da descriminalização que pode salvar a vida de muitas mulheres, Helena procurou ouvir opiniões contrárias, que dessem um panorama bem completo sobre o assunto – do Pastor Silas Malafaia ao ministro do STF Luís Roberto Barroso, que decidiu que aborto nos três primeiros meses de gravidez não é crime, passando pela família de Jandyra e por uma jovem brasileira que realizou o procedimento na Alemanha com todo o aporte do governo local.

Em pouco mais de uma hora, o documentário, que trata até da indefinição sobre o início da vida, deixa claro o quanto o tema ainda é fortemente impactado por questões morais e religiosas. “O que precisa ficar claro é que não é um debate sobre ser contra ou a favor, mas de políticas de saúde pública que envolve uma gama de ações não só de direito ao aborto, como também de acesso a contraceptivos, atendimento psicológico, educação sexual, orientação de planejamento familiar...”, diz Flávia. “Isso sem contar ainda uma outra grande problemática que está presente no discurso de quem se posiciona contra a descriminalização que é a de transformar a maternidade em um castigo para aquela mulher que engravidou sem querer. Se você acha que são pessoas sem condições morais e responsabilidades de assumir um compromisso, como é que a punição a elas é levar a gravidez adiante e ter o filho? É absolutamente contraditório.”
O filme mostra ainda a maneira empoderada com que um grupo cada vez maior de feministas tem se organizado para ir às ruas e lutar não só por mudanças, mas também para barrar o avanço de agendas mais conservadoras encabeçadas principalmente pela bancada evangélica no Congresso.
“No fundo, a criminalização do aborto é o melhor exemplo da negação da liberdade das mulheres. Ter ou não ter um filho? Essa escolha é dela e de mais ninguém. Nenhuma lei tem o direito de impor a uma mulher ter um filho, como também não tem o direito de impor que ela não o tenha, como é o caso, por exemplo, das políticas de esterilização. Portanto, decidir, ‘vou ou não vou ser mãe’, é a manifestação de uma liberdade” diz a escritora Rosiska Darcy de Oliveira, no documentário. “A história das mulheres é a história da negação da liberdade e é também, sobretudo recentemente, a história da conquista desta liberdade. Nós estamos brigando por isso há mais de dois séculos. Nosso corpo é nossa vida, e a nossa vida nos pertence”, encerra.