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Ninfomania: histórias de mulheres que mostram quando o sexo vira doença

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O elenco do filme Ninfomaníaca simula o êxtase nos cartazes (Foto: Divulgação)

Duas garotas bonitas embarcam num trem noturno, vestindo, em suas próprias palavras, “roupas para foder”. A intenção das amigas é justamente essa: transar, transar, transar. Não importa com quem ou onde. Valem até os banheiros sujos dos vagões. Quem colecionar mais “presas” ganha uma aposta. O prêmio, uma inocente caixa de chocolates, é só um pretexto para dar vazão ao que realmente importa para elas: alimentar um ímpeto sexual descomunal. A overdose de sexo termina quando uma delas invade a cabine de um passageiro e, com uma delicadeza perversa, faz sexo oral no homem, engolindo todo seu esperma. A vitoriosa é Joe, protagonista de "Ninfomaníaca", vivida pela modelo Stacy Martin na juventude e por Charlotte Gainsbourg na fase adulta. No esperado filme do polêmico diretor Lars Von Trier, que estreia nesta sexta (10), além de transar com Deus e o mundo, Joe consegue combinar o figurino de periguete com semblante inocente e uma voz suave, que anuncia o tom ambíguo da história.

Uma outra ambiguidade acomete as mulheres que sofrem dessa doença psiquiátrica na vida real: em nossa sociedade hipersexualizada, o termo “ninfomaníaca” é um grande elogio. Ele é associado a uma mulher liberada e sexy, que conquista o homem que quer e é capaz de proporcionar, para ele e para ela, os orgasmos mais intensos e inesquecíveis. Só que esse tipo de sedutora, que exercita sua curiosidade e liberdade sexual, para de transar quando quiser. A ninfomaníaca de verdade, não. O perfil da compulsiva sexual é tão angustiante quanto o de uma viciada em drogas ou comida: ela não tem controle. Isso significa que não consegue parar de transar ou de pensarem sexo mesmo que queira. O termo que melhor define a diferença entre esses dois mundos é sofrimento. “Avaliar o grau de dor e prejuízo que o comportamento acarreta é fundamental para o diagnóstico”, diz o psiquiatra Marco Scanavino, “já que uma mulher pode adorar sexo e ter vários parceiros sem que isso seja um problema”. Embora existam estudos americanos recentes definindo como “hiperativa” a mulher que tem nove ou mais parceiros em três meses, nem toda hiperatividade é patológica. Daí a dificuldade de se diagnosticar uma ninfomaníaca.

Segundo Scanavino, que é coordenador do Ambulatório de Impulso Sexual Excessivo (ligado ao Hospital das Clínicas de São Paulo), o transtorno se configura quando, em função de suas fantasias ou práticas sexuais, a mulher prejudica a saúde, contrai DSTs, perde a concentração e deteriora suas relações, isolando-se da família e dos amigos, de quem esconde suas atividades. Scanavino diz que às vezes as pacientes usam o sexo para aliviar sintomas de depressão ou ansiedade, e podem sofrer como outras compulsões, como álcool, drogas ou comida. Há tratamento psiquiátrico para as ninfomaníacas, mas ele não é simples. Costuma combinar medicamentos com psicoterapia. Mas, diferentemente do que acontece no caso de álcool e drogas, onde o objetivo é abstinência total, no caso dos dependentes de sexo (ou de comida), a meta é retomar o autocontrole. Daí as chances muito maiores de recaídas.

O termo “ninfomania”, alusivo às ninfas gregas, refere-se exclusivamente à compulsão sexual feminina (para os homens, o termo é “satiríase”, de sátiros). Essa nomenclatura, entretanto, caiu em desuso entre os médicos: hoje os manuais de psiquiatria chamam o transtorno de Apetite Sexual Excessivo ou Impulso Sexual Excessivo – que pode acometer ambos os gêneros, mas é muito mais comum na ala masculina. A proporção de pessoas que buscam tratamento é de 8 homens para cada mulher, de acordo com Scanavino. No cinema, o filme Shame (2011) abordou a compulsão do homem. Lars Von Trier preferiu focar na mulher, colocando Joe sob camadas de poesia e pecado, fazendo-a penetrar na floresta da infância e confessar:
“Eu me rebelo contra o amor,” diz a personagem.

LUXÚRIA E AMOR
“A maior dificuldade das ninfas é conseguir articular sexo, desejo e amor de uma forma que não seja compulsiva", afirma o psicanalista Christian Dunker, professor do Departamento de Psicologia da USP e autor de O Cálculo Neurótico do Gozo. “Há mulheres que buscam o sexo para diminuir a angústia e preencher um vazio, outras se entregam à compulsão, achando que assim eliminarão a dependência causada pelo amor”. O medo de intimidade e de estabelecer vínculos é quase um clichê atual, mas entre as ninfomaníacas, é levado às últimas consequências. “O transtorno revela um lado sombrio do sexo, que passa a funcionar como uma droga”, diz a Dra. Carmita Abdo, psiquiatra especialista em medicina sexual e coordenadora do Prosex, do Hospital das Clínicas de São Paulo. “O desgaste é enorme, pois a mulher não investe tempo e energia apenas no sexo em si, mas em tudo que o envolve, como a busca de parceiros e pensamentos obsessivos”. Na “fissura”, muitas correm o risco de se degradar fisicamente. Foi o que aconteceu com Lúcia* (leia depoimento abaixo) que chegou a se prostituir para dar vazão à libido.

No dia seguinte, não há aquela sensação agradável e de intimidade que costumamos ter após uma noite incrível de sexo. A ressaca pós-coito traz culpa, repugnância, vergonha, tédio. Por muitas vezes, inclusive, a ninfomaníaca não chega ao orgasmo. Sandra* só foi ter seu primeiro êxtase aos 41 anos, embora tenha sido compulsiva desde a adolescência. “Algumas pessoas até têm condições de desfrutar do sexo e sentir prazer, mas, mesmo assim, continuam buscando preencher uma necessidade emocional não satisfeita”, afirma a Dra. Vera Regina Fonseca, psiquiatra, psicanalista e Diretora Científica da SBPSP (Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo). “A principal diferença entre ter um desejo sexual forte, como o de uma paixão, e sofrer de uma obsessão, é a incapacidade de construir ligações afetivas reais com o parceiro a partir da experiência na cama”, diz ela.

Como outros transtornos psíquicos, as causas têm a ver com predisposição genética, no caso de pacientes que têm familiares que sofrem algum tipo de compulsão; e condições ambientais desfavoráveis, como as pessoas que tiveram relações muito complicadas na família ou na escola. O exemplo mais gritante é o abuso sexual na infância, mas não existem regras de causa e efeito, pois há pessoas que sofreram violência e não são compulsivas e vice-versa. “O fundamental”, diz Dunker, “é entender as motivações da mulher ao fazer sexo”. Ela é movida por curiosidade ou ressentimento? Anestesiou seus afetos? Para Dunker, “o imperativo de gozar a qualquer preço é a nova modalidade do mal-estar contemporâneo e pode dar origem a um sofrimento profundo”. Os depoimentos desta reportagem mostram até onde a compulsão pode chegar.

CENA DO FILME "NINFOMANÍACA", QUE ESTREIA NESTA SEXTA (10) (Foto: Divulgação)

“NA FISSURA, VIREI GAROTA DE PROGRAMA”
Lucia * , 24 anos, vendedora de sex shop

Aos oito anos, descobri onde meu tio guardava seus filmes pornôs. Via escondida e ficava fissurada nas cenas. Sentia muito tesão e me tocava, mas tinha vergonha daquilo. Meus pais acabaram flagrando minhas masturbações, mas sempre foram pessoas simples. Devem ter achado que passaria com o tempo. Na adolescência, passei a temer que os caras não quisessem nada comigo, porque sempre fui gordinha.

Um dia, meu primo estava em casa e falei que queria fazer sexo oral nele. Tínhamos 15 anos. Gostei e fiz o mesmo com o colégio inteiro. Fiquei mal falada, as amigas se afastaram. Comecei a praticar sexo anal nessa época, mas demorou para perder a virgindade propriamente dita – talvez por medo de engravidar... Rolou aos 19 anos com um cara que conheci na balada, doeu, foi horrível. Como diziam que ficaria prazeroso com o tempo, procurei outros e outros e outros.

Um dia, me vi sem controle, transando com qualquer um. Meu recorde foram seis caras diferentes em 24 horas. Nem sempre eu gozava, mas tinha prazer em dar prazer. Minha mãe percebeu: ainda morava com ela e muitos caras batiam na minha porta. Às vezes eu transava no carro na frente de casa. Foi ela quem me convenceu a ir a uma psicóloga. Após algumas sessões, abandonei. Não queria ouvir que era doente porque isso poderia bloquear o meu prazer. Por indicação dessa psicóloga, aos 20 anos cheguei a visitar um grupo de mulheres viciadas em sexo e me identifiquei com os depoimentos.

Vi que tinha algum problema, mas como eu não achava que sofria tanto como elas, desisti de novo. Naquela época, tinha me formado no Ensino Médio e queria ganhar meu dinheiro. Inventei para a minha mãe que tinha arrumado um emprego com eventos e ia toda noite para a boate, onde tirava até R$2,5 mil por mês como garota de programa. Achava que seria fácil pra mim, mas não durou cinco meses, porque não podia escolher os clientes, tinha que transar com velhos e fedidos. E olha que não tenho pudores. Já transei com mulheres, com três caras ao mesmo tempo, participei de swings. Sou viciada, não consigo ficar dois dias sem sexo.

Adoro ser encoxada no ônibus. Nas baladas, acabo fazendo sexo no banheiro ou na rua – gosto de ser vista. Já transei várias vezes sem camisinha com estranhos. Peguei doenças, mas nunca engravidei. Nada me impede de continuar. Há um ano trabalho como vendedora numa sex shop e, apesar do risco de ser demitida, cheguei a fechar a loja para fazer sexo com um cliente. Além dos desconhecidos, tenho uns dez P.A.s (‘pintos-amigos’), só ligo quando quero transar e vice-versa. É assim, sem jantar nem cinema. Não tenho paciência quando o cara fica meloso. Nunca tive namorado, só me apaixonei uma vez. O sexo era ótimo, mas acho impossível ser monogâmica. Além disso, não confio em homem. Sei que nenhum vai ficar só comigo. Desde criança, eu sabia que meu pai traía minha mãe e odiava isso. Eles se separaram há três anos. Por que deveria abrir mão da vida que levo e parar de transar? Eu só deprimo na TPM: fico chorando no quarto, não quero transar. Tomo muitos banhos, me sinto suja e culpada. Mas logo passa.Não penso em me tratar, mas tenho vontade de fazer uma faculdade de psicologia e me especializar em sexologia”.


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