Na psicologia, a capacidade de superar traumas e sair fortalecido deles chama-se resiliência. A palavra, também usada para definir o potencial de um objeto de retomar sua forma depois de uma deformação, encaixa-se bem à chilena Michelle Bachelet. Ela já foi diretora-executiva da ONU Mulheres — braço das Nações Unidas criado para combater a violência e a desigualdade de gênero — e expandiu os limites da resiliência. Tranformou os próprios traumas em algo melhor para si e para os outros. Depois de ser presa e ter o pai, o brigadeiro Alberto Bachelet, assassinado durante a ditadura, formou-se em medicina e pós-graduou-se nas Forças Armadas e na Academia de Políticas Estratégicas do Chile. “Precisava disso para entender a ditadura que levou à morte 40 mil chilenos”, diz. Mãe de três filhos (Sebástian, 33, Francisca, 28, e Sofia, 19) e separada duas vezes (uma do arquiteto Jorge Dávalos e outra do epidemiologista Aníbal Henriquez), Michelle foi a primeira mulher a ocupar o Ministério da Defesa e, depois, a Presidência da República em um país onde até pouco tempo atrás nem o divórcio era permitido.
Quando passou pelo Brasil para a Terceira Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, ela conversou com Marie Claire em diferentes momentos: no Palácio do Planalto, em Brasília, no morro do Cantagalo, no Rio, e no hotel em que esteve hospedada. Em todos eles — abraçando uma líder comunitária ou cumprimentando com beijinhos a presidenta Dilma — sorriu com gentileza. Prova de que é perfeitamente possível ser firme “sin perder la ternura”.
MARIE CLAIRE - A senhora e a presidenta Dilma têm histórias parecidas: foram militantes políticas, presas, torturadas e ministras. No que são diferentes?
Michelle Bachelet - Identifico mais semelhanças do que diferenças. Como eu, Dilma é uma mulher de resultados. Une a capacidade de sonhar alto ao pragmatismo que, para os gregos nada mais era do que a capacidade de realizar sonhos. Temos ideais, mas queremos ações que melhorem a vida das pessoas. Por mais parecidas que sejam, as pessoas têm sempre algo que as diferencia. Eu não sei dançar samba, por exemplo, já ela (risos)...
MC- Quais são os maiores problemas femininos no mundo e como ter uma mulher na presidência favorece enfrentá-los?
MB - Os maiores problemas são os abusos sexuais, a violência doméstica, a baixa participação política e a falta de autonomia financeira. Há apenas 20 chefas de Estado entre os 194 países da ONU. Mas isso está mudando. Na América Latina já temos três presidentas e duas primeiras-ministras. O Brasil criou a lei Maria da Penha — uma das maiores conquistas femininas do último século — e hoje tem nove ministras, ou seja, 27% dos cargos. No mundo, isso não passa de 19%. Aqui ocupamos pastas importantes como Planejamento (Miriam Belchior), a Articulação Política (Ideli Salvatti) e a Casa Civil (Gleisi Hoffmann).
"TENHO SENTIMENTOS DE CULPA COMO TODA MÃE QUE SE MATA PARA SER BOA NO TRABALHO"
MC - Uma menina de 14 anos foi abusada por um soldado brasileiro da tropa de paz da ONU no Haiti. O que a ONU Mulheres faz contra isso?
MB - O (secretário geral das Nações Unidas) Ban ki-Moon já disse ter tolerância zero com esse comportamento. E tem que ter mesmo. Agora, acho uma pena que a imprensa dê mais destaque a esse tipo de assunto do que às coisas boas que as missões de paz têm feito.
MC - Temos de cobrar respostas...
MB - Até por causa disso (dos abusos) acho que é tão importante a presença feminina nas tropas de paz. Quanto mais mulheres nas missões, menos abusos. Mas o problema da violência de gênero é muito maior: 80% das vítimas de tráfico são mulheres. E, ainda hoje, morre uma mulher por minuto, no mundo, em decorrência de complicações na hora do parto ou de abortos clandestinos.
MC - No Chile, um de seus grandes feitos foi a lei 20.348, que estimulava empresas a pagarem salários iguais para homens e mulheres com a mesma função. No Brasil, a diferença ainda é de 35%. Como podemos mudar isso?
MB - Para implantar leis como essa, é preciso olhar a constituição do país. Não se pode chegar e dizer “agora todo mundo é obrigado a pagar salários iguais para homens e mulheres”. Quando assumi o governo, queria uma lei que obrigasse as empresas a fazerem isso, mas seria inconstitucional. Então, criei uma lei que bonificava quem o fizesse. O hiato diminuiu bem (de 40% para 15%, segundo os analistas).
MC - Hillary Clinton disse que, por ser mulher, prestam mais atenção na sua roupa e no seu penteado do que nos discursos que faz. A senhora já sentiu isso?
MB - Claro! E de todas maneiras imagináveis, desde que era candidata. Nas prévias, a oposição dizia que era a disputa da morena elegante (a senadora Soledad Alvear)com a loira gordinha. Queriam me diminuir afirmando que eu tinha o apoio do povo porque era simpática, não competente. Se me emocionasse fazendo um discurso e ficasse com olhos cheios d’água, era porque eu era histérica, não sabia controlar as emoções. Já meu antecessor, era um “homem muito sensível”. Eu sempre a era a gorda malvestida. E os homens mais cheinhos, eram os fortes, poderosos. Quando entrei para o governo, uma das coisas que mais me impressionou foi um artigo de uma revista feminina dizendo: “Inacreditável: a presidenta do Chile usou o mesmo vestido duas vezes na mesma semana”. Me chocou profundamente. Como jornalistas mulheres não são solidárias? Você acha que eu tinha tempo para pensar se tinha ou não usado aquela roupa na semana? Estava tentando mudar um país!
"ENCONTRÁVAMOS UM DOS TORTURADORES NO ELEVADOR DO NOSSO PRÉDIO. ERA HORRÍVEL"
MC - Houve momentos em que a senhora sentiu a clássica culpa feminina por estar longe da família?
MB - A clássica culpa feminina? (irônica) Nunca a conheci (gargalhando). É claro que sim! No entanto, uma vez, quando era presidenta, disse isso em uma entrevista e o título virou. “A presidenta sente culpa”. Tomo cuidado para isso não acontecer de novo... mas, para sua revista posso dizer que tenho os mesmos sentimentos de culpa de qualquer mãe que se mata para encontrar equilíbrio entre a vida pessoal e o trabalho. Fui ministra por seis anos, candidata por um e presidenta por quatro. Dou aos meus filhos todo direito de reclamar. Mas eles me apoiam muito. Quando o presidente Ricardo Lagos me convidou para ser ministra, pediu que eu fosse até o seu apartamento para conversarmos. Eu estava com um problema no braço e pedi ao meu filho que me levasse. No caminho, disse: “Olha, é possível que me ofereçam um cargo importante, mas fique tranquilo porque os ministros da Saúde nunca duram mais que dois ou três anos no poder” (risos). Mal sabíamos nós que depois viriam o Ministério da Defesa e a Presidência. Mas ele e as meninas sempre me deram força. Até nessa vinda para Nova York (onde fica a sede da ONU Mulheres) disseram “Adiante, mamãe, adiante”. Ainda que com o peito apertado, sei que sentem orgulho de mim. Orgulho e saudade, essa palavra maravilhosa que a língua portuguesa criou para designar o vazio que é “sentir falta”.
MC - O que, na sua história de vida, a senhora diria que mais contribuiu para a formação de sua personalidade?
MB - Uma família extraordinária, com um pai militar muito carinhoso, que acreditava na força das mulheres e sabia que o casamento não era o único futuro possível para elas. Isso, com muito amor e uma educação de princípios e disciplina, forma uma pessoa bem estruturada. Na minha mamadeira, junto do leite, vinha a palavra responsabilidade (risos). Sempre fui muito responsável e isso tem a ver com o ambiente em que cresci.
MC - Pais militares tendem a ser mais duros, mas a senhora se refere ao seu como carinhoso. Como ele reagia às suas artes de criança?
MB - Meu pais nunca me bateram. Nunca levantaram a mão para mim ou para o meu irmão. Agora, apesar ser boa filha e boa aluna, desde menina, eu tinha personalidade. Era contestadora. Perguntava o tempo todo o porquê das coisas. E não aceitava ouvir “porque sim” e “porque não”. Queria que me explicassem as leis e as lógicas de tudo, até a exaustão. Para mim força não é sinônimo de autoritarismo. É sinônimo de saber convencer, explicar, se fazer entender.
MC Quantos anos a senhora tinha quando seu pai morreu?
MB - Tinha 22 ou 23. Estava no quarto ano de medicina, no estágio de cirurgia no hospital José Joaquim Agurré, que pertence à Universidade do Chile. Vi o chefe da cirurgia vindo até mim. Achei estranho, porque chefes nunca dão bola para alunos. Mas, depois dele, veio a minha mãe, com uma cara terrível. Os dois me levaram para o canto e deram a notícia de que meu pai, que estava preso a mando de Pinochet, morreu na prisão. Foi impressionante (emociona-se), uma dor muito grande. Não tinha ido à última visita na cadeia, porque tive uma coisa importante para fazer do outro lado da cidade. Ou seja, mesmo indo a todas as visitas — geralmente às quartas e sábados — não pude me despedir. Ele foi preso no dia do golpe, em 11 de setembro 1973 e morreu 12 de março de 1974. Era brigadeiro das Forças Aéreas e não se conformava em estar preso como se fosse inimigo da nação. Justo ele, que a vida toda se dedicou ao Exército, foi acusado de traição à patria por tentar respeitar a Constituição, quando Pinochet fazia exatamente o contrário, desrespeitava.
MC - Onde a senhora estava no dia 11 de setembro de 1973?
MB - Eu era militante estudantil e tinha decidido dormir na Faculdade de Medicina por causa dos rumores de que iam invadí-la. Era um momento complicado no Chile. Liguei para os meus pais, expliquei o que acontecia e disse que no dia seguinte iria para casa e conversaríamos. Minha mãe, arqueóloga aposentada, conta que às quatro da manhã, tocou o telefone lá em casa. Era um colega seu dizendo: “Há rumores de um golpe de Estado. O que o seu marido sabe sobre isso?”. Ela acordou meu pai assustada. Mas a resposta dele foi: “Mande esse idiota voltar para cama. Um golpe de Estado, no Chile? Impossível”. Para ele, que acreditava piamente no Exército e na Constituição, isso não existia. Golpe de Estado era coisa dos bolívares, de outros países da América Latina, não do Chile. Nós chilenos, sempre nos achamos a Suíça da América do Sul, né? Então, para os suíços, um golpe era algo totalmente fora de cogitação. Foi um misto de ingenuidade com traição. Sabendo que meu pai não participaria do golpe, seus colegas de farda o deixaram de fora e o apunhalaram (por causa dos maus-tratos sofridos na prisão, Alberto Bachelet sofreu um infarto).
MC - A senhora e sua mãe foram presas por serem consideradas “ameaças socialistas” ao governo de Pinochet. Depois, passaram quatro anos exiladas na Alemanha. Como foi esse período? Diria que foi o pior momento da sua vida?
MB - Sem dúvida, foi um dos momentos mais difíceis da minha vida. Não só por mim, mas por tudo: o golpe, a morte do meu pai e de amigos queridos, a perseguição, o exílio, a quebra dos ideais de toda uma geração. Ainda assim fiquei no Partido Socialista. Até que, ao meio-dia do dia 10 de janeiro de 1975, os homens da DINA (Direção da Inteligência Nacional) apareceram na minha casa, vendaram a mim e a minha mãe e nos levaram à Villa Grimaldi, principal centro de tortura do Chile (Bachelet mostra-se desconfortável em falar sobre o tema, mas, segundo sua biografia, ela e a mãe teriam sido separadas e submetidas a interrogatórios e agressões físicas). Um mês depois, conseguimos sair do país. Primeiro, fomos para a Austrália e, em seguida, para a Alemanha.
MC - Como foi a volta do exílio?
MB - Fomos morar no mesmo apartamento em que vivíamos antes, só que nesse mesmo edifício passou a viver um dos conhecidos torturadores da Villa Grimaldi. Era horrível encontrar com ele no elevador, na garagem. Minha mãe mais de uma vez disse: “Sei bem quem é o senhor, viu? Eu te conheci na Villa Grimaldi!”. Ele abaixava a cabeça, dava um jeito de desviar da gente, sentia-se tremendamente desconfortável. Mas ele foi preso e nesse momento está na cadeia.
MC - Mesmo tendo sido torturada pelos militares, a senhora estudou estratégia militar no Chile e fez uma pós-graduação em defesa continental no Forte Leslie McNair, em Washington. Por que isso?
MB - Me formei em medicina (na Faculdade de Humboldt, durante o exílio em Berlim, de 1975 a 1979) com especialização em pediatria e saúde pública. Depois, fiz um curso de seis meses na Academia Nacional de Políticas Estratégicas do Chile e ganhei uma bolsa para fazer essa pós nos EUA. Percebi que o golpe de 1973 tinha a ver com a falta de diálogo entre o mundo político e o militar. No início dos anos 90, quando nunca imaginava que pudesse ser ministra ou presidenta, passei a me perguntar o que eu, pessoalmente, poderia fazer para evitar que o país repetisse seus erros. Eu me cobrava isso, precisava ajudar os outros a não passarem pelo que eu passei. No caso do Chile, a melhor maneira de fazer isso era estudando o Exército (Como ministra da Defesa, ela aumentou o contingente de mulheres nas tropas e de militares nas missões de paz, conseguiu melhores salários e aproximou as Forças Armadas das vítimas da ditadura).
MC - Mesmo mulheres fortes têm seus momentos de fragilidade. Quais são os seus? O que a faz chorar? Qual foi a última vez?
MB - Não lembro exatamente qual foi a última vez. Mas o que mais me faz chorar é a injustiça. Ver uma mulher ou uma criança serem maltratadas me destrói. É indescritível minha sensação de impotência ao ver que mesmo a sociedade tendo evoluído tanto, ainda morrem de fome 12 crianças por minuto... isso é horrível. E não é o pior. Estatísticas não mostram a cara.Ver de perto a violência é muito mais doloroso. Me comovi profundamente com o que vi no Quênia: bebês desnutridos nos braços das mães, como se já não pertencessem a esse mundo (embarga a voz). Não podemos levantar da cama todos os dias pensando no que está acontecendo de pior. Mas admito que muitas vezes isso acontece comigo.
MC E o amor? Já a fez chorar?
MB - No passado, várias vezes (risos). Na verdade, algumas (recompondo-se). Faz tempo que estou sem companheiro. Mas tomei uma decisão: “Se o amor chegar, chegou. Não vou ficar procurando”.
MC - Como é a relação da senhora com seus ex-maridos?
MB - Somos muito amigos. Para mim, o mais importante era que os meninos estivessem bem. E filhos só ficam bem quando sabem que seus pais também estão.
MC - Diria que é uma boa avó?
MB - Sou uma avó ausente (risos). Fico em Nova York e os meninos no Chile. Mas leio e gravo histórias para eles sempre que posso. Depois, peço que meu filho coloque para que eles ouçam, assim não se esquecem da voz e do carinho da avó. Sou um dinassouro tecnológico, mas uma das minhas resoluções de ano novo é dominar o skype, assim, além de falar com eles, poderei vê-los.
*Esta entrevista entrevista foi publicada em março de 2012.