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Por dentro dos coletivos: como funcionam os grupos que reúnem pessoas por motivos artísticos, políticos e profissionais

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O sound designer Pedro Noizyman (Foto: Gabriel Rinaldi)

O chefe de Fernando Sato o chamou para uma conversa, com cara de quem precisava discutir a relação. O designer já imaginava o que estava por vir quando o gerente começou a falar sobre seu rendimento pouco satisfatório na agência de publicidade em que trabalhava. Ao contrário do que era de se esperar, uma onda de satisfação invadiu o funcionário prestes a receber o cartão vermelho. “Fiz aquele ar espantado de quem sentia muito, mas saí da agência com um sorriso que ultrapassava as orelhas”, lembra Sato, 45 anos. Depois de anos trabalhando em várias áreas da propaganda, vinha buscando alternativas para se livrar do esgotamento que o mundo corporativo lhe causava – incluindo um abscesso no estômago. Em suas idas e vindas dos empregos formais, já havia gerenciado um bar de música ao vivo e atuado como sushiman. A rotina de autônomo começou tranquila, em um home office instalado em seu quarto. Mas logo a confusão entre vida doméstica, pessoal e profissional também passou a perturbá-lo. Procurar um novo emprego estava fora de cogitação – a liberdade agora valia muito mais do que o décimo terceiro salário, as férias asseguradas pela CLT e o fundo de garantia. Um grupo de amigos vinha conversando sobre alugar uma casa e dividi-la em escritórios por gente igualmente desencantada com o cotidiano das empresas. O desenhista de som Pedro Noizyman, 41 anos, já havia morado no local, espaçoso o suficiente para comportar confortavelmente 14 pessoas. O negócio foi fechado.

A proposta inicial, lançada há oito anos, era a de que cada um tivesse seu espaço de trabalho dentro da casa (o que vigora até hoje). Mas, convivência, interesses profissionais e artísticos, vontade de trabalhar em conjunto, ter ideias e tocar projetos mirabolantes contaminou o ambiente. Nascia, sem pretensões ou discursos, uma força coletiva, hoje reconhecida no mercado como “grife” prestadora de serviços. A casadalapa reúne montadores de cinema, desenhista de som, cenógrafo, artistas plásticos, diretores de arte, designers gráficos, entre outras especialidades. Músicos, DJs, grafiteiros, fotógrafos, agitadores culturais e ativistas políticos vêm se organizando dessa forma nos últimos 20 anos, na contramão das estruturas hierárquicas de empresas, partidos e instituições. “Os coletivos são organizações autogeridas, descentralizadas, flexíveis e situacionais. Essa é a sua grande novidade”, explica a crítica literária e coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Heloisa Buarque de Hollanda, em um artigo sobre o tema. Nomadismo é outro aspecto que a autora pontua na atuação desses grupos: “A composição de um coletivo não é fixa. É móvel. Um artista pode pertencer a um coletivo em função de um projeto e no projeto seguinte juntar-se a outro coletivo.”

Um grupo de frequentadores da Casa Madalena 80. À direita, a diretora de arte Joy, que divide o tempo entre o filho e o coletivo. (Foto: Gabriel Rinaldi)

AR DOS TEMPOS
A visibilidade desses grupos a partir das manifestações de junho trouxe às conversas de bar conceitos como “horizontalidade”, presente na carta de intenções do Movimento Passe Livre, central nacional de coletivos na luta pela tarifa zero, que detonou as primeiras grandes passeatas de 2013. Assimilar a ideia (“afinal, quem dá as ordens aqui?”) talvez seja a grande dificuldade de quem está acostumado a patrões, autoridades e gestores.

“É preciso ter sempre alguém mandando em alguém?”, pergunta Sato. A indagação intrigava a maioria dos integrantes da casa. Pedro Noizyman resolveu a questão no desabrochar de sua vida profissional. “Estudei cinema, estagiei numa agência e logo percebi que aquilo não era para mim. Era terrível ter horário e alguém determinando a minha vida”, diz ele, que se especializou em desenho de som para cinema (cuida da montagem dos detalhes sonoros de um filme), nunca mais teve patrão e tem mais de 30 longas-metragens no currículo.

Para a montadora Guta Pacheco, 32 anos e integrante do mesmo grupo, os cochichos ao pé da máquina de café nas emissoras pelas quais passou foi um dos determinantes para o estilo de vida freelancer. “Estava cansada das crises pessoais dos outros com o chefe, as fofocas, as questões burocráticas. Isso às vezes consome mais tempo e energia dentro de uma empresa do que o trabalho em si”, justifica ela, que é especializada em edição de documentários para cinema e televisão. Assim que se sentiu confiante para alçar voo como autônoma, pulou fora. Como Pedro e Guta, a diretora de arte Joy Passarelli, 28 anos, prefere ter controle sobre seu tempo, embora nunca tenha enfrentado crises no mercado formal. Atuou em vários setores da publicidade e hoje ocupa uma sala próxima à cozinha, o local mais barulhento do pedaço, o “coração de mãe”, como define. Lá cria ilustrações, vinhetas e outras artes visuais. Depois de um tempo trabalhando no esquema de home office, período em que amamentava seu bebê, hoje com dois anos e meio, fincou pé no coletivo para se livrar da “solidão criativa” que dizia sofrer, a falta de alguém para conversar sobre sua criação, de ouvir opiniões e colaborar com os projetos dos colegas. Joy tem um cotidiano invejável: passa as manhãs com o filhote, leva-o para a escolinha, trabalha no período da tarde, apanha o bebê, volta para casa e, quando a quantidade de tarefas a obriga, às vezes encara um “terceiro turno” doméstico assim que ele vai dormir.

Joy defende como necessário, porém difícil, o caminho da democracia num ambiente compartilhado. Algumas regras práticas foram feitas, como a máxima “quem está resolve, quem não está não reclama”. E há um sistema de rodízio trimestral, em que cada grupo cuida das contas (sobram nove meses para quem está de fora esquecer do assunto). O grupo se reúne em assembleia para resolver os problemas macro, como a renovação do contrato de aluguel ou a mudança de operadora do serviço de internet, que andava um horror nos dias em que visitamos a casa.

Opiniões divergentes sempre surgem nas questões corriqueiras sobre onde comprar o pó de café de melhor qualidade por um preço menor até as discussões estéticas travadas durante a produção das obras artísticas coletivas da casadalapa, financiadas por meio de editais e leis de incentivo à cultura. A série Enquadro envolve todos os profissionais da casa e artistas agregados. O trabalho se desdobra nas mais variadas plataformas: livro, vídeo, intervenção urbana, teatro, grafite, exposição, internet.

O arquiteto português José e a documentarista Bibi (Foto: Gabriel Rinaldi)

CANSAÇO
Participar de projetos assim não é pressuposto para atuar na casadalapa e não há regras para o ingresso de novos membros, mas ter afinidade pessoal e criativa é fundamental. “Criamos este espaço justamente porque não queríamos a opressão do mercado tradicional. Então, não vamos tolher o outro. Nossa garantia é a liberdade, saber conviver com as personalidades, respeitar o espaço do outro e não ser impositivo”, diz Pedro.

O desencanto com o esquemão tradicional também levou o economista Oswaldo Oliveira, 48, a buscar alternativas para uma vida mais tranquila, divertida e saudável. Depois de 15 anos atuando no mercado financeiro, mudou-se para São Carlos, interior de São Paulo, e foi um dos precursores de modernas startups no final dos anos 90, criando soluções para portais e empresas na internet. Trabalhava rodeado de estudantes, calçando sandálias e vestindo bermuda. “Fui para lá com aquela visão romântica de criar meus filhos em um ambiente arejado, perto da natureza”, diz.

Sem que se desse conta, instituiu um sistema de trabalho coletivo com seus colaboradores, jovens nerds que estudavam tecnologia na região. Não havia horários, mas prazos. Ninguém era funcionário.Todos ganhavam por projetos realizados. “Eu estava de saco cheio das preocupações pobres do ambiente corporativo, de apenas ter mais do que se tinha antes, de contabilizar o valor do seu dia pelo resultado financeiro.” Ele ganhou dinheiro, sim, mas de um jeito mais leve, frequentando as festas de estudantes e vendo o trabalho como oportunidade de “conhecer uma molecada criativa e ter uma boa desculpa para tomar uma cerveja e curtir um som”.

Na volta a São Paulo, depois de vender sua empresa, Oswaldo ficou um ano matutando o que faria da vida. Não voltaria a se engravatar. Estudou a teoria das redes do engenheiro polonês Paul Baran (1926-2011), que analisa o fluxo da comunicação em sistemas centralizados e horizontais. Nas redes em que há vários pontos interligados, há também inúmeras possibilidades de conexão, é mais difícil interromper o fluxo. Baran imaginou um sistema de comunicação que pudesse continuar funcionando mesmo que um ou mais de seus pontos fossem danificados por ataques nucleares. Um exemplo bem bobo de como isso funciona: pergunte a seus contatos no Facebook onde comprar aquele livro esgotado que procura. Surgirão muito mais pistas do que se você dependesse de uma ou poucas fontes de informação (no ambiente de trabalho, um chefe mandão; num regime ditatorial, uma única agência de notícias). A rede gera abundância, palavra muito usada pelos teóricos dos movimentos coletivos. Para o bem e para o mal: lembra do post infeliz que você colocou no Twitter num dia de ódio? Muito mais de três gatos pingados saborearam o vexame.

O pensamento em rede tem transformado nossa maneira de produzir e receber informação (experiências como a Mídia Ninja, com repórteres armados de celulares em vários pontos nas manifestações, são prova disso, resguardadas as polêmicas em torno do grupo que a lidera, a rede de coletivos Fora do Eixo). E também de consumir. A teia mundial do site airbnb, repleta de ofertas de hospedagem em casas de família em mais de 34 mil cidades, desafia o mercado hoteleiro. Abundância de novo: não faltará cama em Nova York ou Sydney, você terá chance de interagir com os locais e receber gente interessante em sua casa também. Para quem desconfia dessas iniciativas, basta lembrar que a rede é autorregulável, como explica Oswaldo. Experimente ser má hóspede ou péssima anfitriã: sua fama na comunidade estará manchada na velocidade deum“enter”.

Madalena 80, casa idealizada por Oswaldo em São Paulo, funciona assim: os amigos são convidados a copiar a chave, quem estiver interessado em usar o espaço pode colaborar com o aluguel, uma agenda coletiva na internet determina os horários das atividades. Se há vaga para o seu curso de cookies orgânicos, é só salvar a data e convidar as pessoas. No mais, o espaço é compartilhado diariamente por artistas, ativistas, jardineiros, cozinheiros e empreendedores, ou por quem está simplesmente procurando sua turma.

A montadora Guta Pacheco no coletivo onde trabalha hoje. Antes, as fofocas ao pé da máquina de café a cansavam (Foto: Gabriel Rinaldi)

INSPIRAÇÃO
A artista plástica carioca Daniela Serruya Kohn, 30 anos, a encontrou. Vinda do Rio por questões românticas – casou-se com um engenheiro paulistano –, sofria da mesma “solidão criativa” descrita por Joy Passarelli. “Cuidava da casa, arrumava minhas coisas e a tela continuava em branco.” Conheceu a Madalena 80 e levou seu material para a casa coletiva, onde viu seu trabalho fluir.

Assim que completou 30 anos, teve a ideia de vender sua arte em pequenas telas “usáveis”, que podem ser aplicadas em roupas ou acessórios. Na casa, teve ajuda de pessoas que criaram um protótipo de moldura para as minipinturas, bem como sua impermeabilização. Filipe Vaz, engenheiro ambiental que trabalhou em grandes obras como o rodoanel e o metrô de São Paulo e abraçou a marcenaria sustentável como causa e ofício, é um dos parceiros de Daniela. “É um espaço de inspiração”, diz ela.

CHAMA O SÍNDICO
A divisão do espaço às vezes gera conflitos, especialmente quando acontecem muitas atividades simultâneas. Mas a própria natureza da casa funciona como método de organização. “Quem estiver atrapalhando o outro logo percebe que está sendo notado pelo grupo e muda de atitude”, diz Bibi Xausa-Bosak, 26 anos, documentarista e também fundadora da Madalena 80. Ela conta que um dos maiores perrengues enfrentados pelos usuários foi a discussão em torno de uma bandeja quebrada de forma “anônima”.

Uma “madalênica” (como eles se apelidaram) postou um puxão de orelha no Facebook, o que gerou “uma discussão muito bonita” sobre o uso de bens comuns e a limpeza (“deixaram o banheiro zoado que nem de boteco”, apontou outra). Entrou em ação a força da autorregulação e do que Oswaldo define como “ética do cuidado”, baseada em diálogo, confiança e transparência para compartilhar o lugar sem precisar de um gerente. A bandeja foi consertada.

“Não interessa quem quebrou, mas que chegamos a um acordo de como compartilhar o que não é de ninguém e, ao mesmo tempo, é de todo mundo”, diz Bibi, que prefere a solidão do lar para realizar seu trabalho. Ela gosta de estar na casa para trocar informações e contatos ou apenas socializar. “Às vezes é difícil voltar para a aula, porque o recreio está muito legal”, brinca. Mas analisa com seriedade a função dos coletivos: “Na ética do guerreiro corporativo, que segue a lógica da hierarquia, quem vem pela frente são meus inimigos, estão lá para me impedir de chegar ao topo. Isso sempre me doeu. Não quero ganhar de ninguém”.

O COLETIVO PODE VIRAR SEITA?

A atuação dos coletivos ganhou força em discussões nas redes sociais e na imprensa a partir das manifestações de junho. A Mídia Ninja, que colocou repórteres transmitindo ao vivo (via celular) cenas de abuso da força pela polícia, aqueceu debates sobre os novos jeitos de se fazer jornalismo e trouxe holofotes à rede de coletivos a que é ligada, a Fora do Eixo. Com eles, veio também uma avalanche de denúncias. O longo depoimento da jornalista Laís Bellini publicado no Facebook, revirando as entranhas do FdE e da figura de seu maior líder, Pablo Capilé, detonou uma série de ataques em cartas abertas: mau uso do dinheiro público captado por meio de editais (e a ausência de uma prestação de contas clara), submissão de seus membros a jornadas de trabalho insanas e não remuneradas, apropriação da obra artística e do patrimônio de parceiros, calotes em bandas que participaram de festivais produzidos pela rede, sexismo, assédio e a tese de que tudo ali funcionava tal qual uma seita.

O Fora do Eixo se defendeu por meio de entrevistas (a mais extensa, com 70 questões, publicada no blog do jornalista André Forastieri, abrigado no portal R7), usou os veículos que pôde e sua força tarefa (pulverizada em 18 casas pelo país e mais de 90 coletivos aliados) para dissipar a discussão. “Esse assunto foi explorado à exaustão e dissemos tudo o que havia para ser dito”, declarou à Marie Claire um porta-voz do FdE. “Sofremos um linchamento covarde e injusto. Prejudicou o trabalho e a vida de muita gente.”

Ana (que prefere não ter seu nome verdadeiro revelado) esteve lá, participou da implantação da Mídia Ninja e deixou a casa com os mesmos questionamentos de muitos dissidentes do FdE. Primeiro, encantou-se com o mundo de possibilidades: “Era fascinante pensar na mídia alternativa, como criar conteúdo que viesse de outro meio que não os convencionais”, diz ela, que esteve na linha de frente de algumas coberturas da Ninja. Logo, percebeu que havia algo de errado no ar. E com ela própria.

“Tive um envolvimento com um garoto, que me levou para o Fora do Eixo. Fiquei algumas vezes com ele”, conta. “Uma amiga foi junto, mas logo foi rejeitada pelo grupo. Depois cheguei à conclusão de que, por ser contestadora, não era bom negócio tê-la ali dentro.”

Ana identificou no relato de Laís Bellini a trama em que diz ter sido envolvida. Foi “cooptada” (como se diz na gíria do Fora do Eixo), atraída para a casa por representar uma força de trabalho interessante para o movimento. “Comecei a achar estranho quando, depois de trabalhar até cinco e meia da manhã, me senti culpada por ir dormir. Lá as pessoas fazem isso. Trabalham sem parar e sem ganhar porque ficam maravilhadas. Eu não tinha a intenção de ganhar dinheiro algum com aquilo, fazia tudo por amor à causa mesmo. Mas eles sempre dizem que seu trabalho será remunerado de alguma forma, que será criado um fundo coletivo, só que o dinheiro não aparece. Meu celular foi usado nas manifestações e a conta não foi paga. Tive de brigar para eles acertarem tudo comigo.”

O que mais a chateou foi o carinho que descobriu ser interesseiro, tão logo a ficha caiu. “Não conseguia acreditar que havia sido enganada de maneira tão baixa. Entendi o que, no Fora do Eixo, eles chamam de ‘ganhar lastro’ atraindo pessoas para o grupo. É a tal cooptação de que a Laís fala em sua carta. Faz parte da grande lavagem cerebral. Eu me iludi com a ideia de que fosse um movimento horizontal, de que eu estava fazendo parte de uma revolução, de que eu poderia mudar o mundo. Mas eles repetem o que a gente já vive da sociedade, a mesma hierarquia da qual eu tentei me afastar”, diz Ana, que trabalhava numa grande corporação e desligou-se para ser autônoma. “Quando eu decidi sair do coletivo, chamei o menino para conversar, ainda gostava dele, apesar de tudo o que havia acontecido. Mas ele me disse que não podíamos mais ter contato, porque eu havia ‘saído do fluxo’ do sistema deles.”


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