“Eu estava casada havia oito anos quando meu marido, Marcelo, que é motociclista há 30, me chamou para uma conversa. “Será DR?”, pensei. Não era. ‘Meu sonho é viajar de moto por cinco continentes, durante uns dois anos’, ele me disse. Continuou falando por uns 40 minutos. Eu só escutava. E concluiu: ‘Quero que você venha comigo’. Fiz uma única pergunta: ‘Quando a gente sai?’. Foram dois anos de estrada, entre 2011 e 2013, precedidos por outros dois anos de planejamento. Pedi demissão do emprego para me dedicar à expedição. Sabia que era uma mudança de vida e estávamos preparados para ela. Nós dois estamos no segundo casamento.
Ele tem quatro filhos de uma relação anterior; na época a caçula tinha 13 anos e o mais velho, 30. Eu era diretora de marketing em um banco, ele, engenheiro especializado em tecnologia. Somos apegados à família, ele temos filhos, eu tenho uma mãe viúva, irmãs, sobrinhos. Partilhamos comeles os preparativos e a torcida foi geral. Conseguimos o patrocínio de duas empresas, Marcelo fez curso de mecânica, eu, de fotografia e mergulho, e ambos aprendemos primeiros socorros. Fizemos um check-up completo antes de partir, na Páscoa de 2011. Eu tinha cortado o cabelo curtinho e reduzido a bagagem ao essencial. Seguimos pela América Latina e América Central. No canal do Panamá, conhecemos três motociclistas num barco e pegamos a estrada rumo à Nicarágua. Assim que passamos a fronteira, começou a chover muito e fomos atacados por um bando de bandidos armados. Eles surgiram do nada! Quando começarama atirar, voamos como loucos até a cidade mais próxima e, por sorte, ninguém foi atingido. Foi uma lição – nos demos conta da própria arrogância. Nunca mais entramos num país desavisados. Não é só pesquisa e mapa que definem a rota: você tem de ouvir as pessoas.
IMPREVISTOS
Mas, por mais que a gente tenha se preparado, imprevistos não faltaram. Quem poderia prever a Primavera Árabe? A onda de protestos contra os ditadores pegou o mundo de surpresa e furou nossos planos de entrar na África pela rota França-Tunísia. Tentamos um navio italiano para o Egito, mas o país também entrou em convulsão e o serviço foi cancelado. Depois fecharam as fronteiras da Turquia. Mudamos os planos e pegamos um cargueiro italiano que aportava em Israel.Chegamos às 4 da manhã e fomos detidos; nos colocaram em salas separadas e nos interrogaram por 24 horas. Queriam saber quem nos financiava. Acabaram nos liberando, mas sem a moto. No dia seguinte, chamaram um oficial de patente superior, um argentino que também era motociclista, e tudo fluiu, mas eu estava angustiada. Como seria morar num país onde a qualquer momento alguém pode estourar uma bomba e todo estrangeiro é um inimigo em potencial?
Teoricamente, sabemos a história de Israel. Sentir na pele muda tudo. Você consegue se colocar no lugar do outro. E a estrada é mágica: para cada momento de tensão, vem uma compensação muito maior. Como o deserto de Israel é lindo! E a história do país é arrebatadora. Não sou religiosa, mas percorrer a rota bíblica, ver os lugares por onde Jesus passou mexeu comigo. Há algo realmente diferente naquela região. Já o Turcomenistão foi o lugar mais surreal que conheci, uma ditadura fechada.O país fica entre o Uzbequistão e o Irã, é uma ex-república soviética, muito rico, graças às reservas de gás. Só conseguimos um visto de trânsito por cinco dias. A capital está em construção, é inteira de mármore branco! Linda, brilha sob o sol, mas não tem ninguém na cidade. As poucas pessoas que vimos eram idênticas: mulheres de vestido longo e tranças; homens de calça preta e camisa branca, impecáveis. As passagens subterrâneas são de granito, eles limpam com enceradeira. Perguntei para uma recepcionista no hotel: ‘Cadê as pessoas?’. Ela me respondeu: ‘Quando a cidade de Asgabate ficar pronta, elas virão’. Ninguém fala nada, apenas reproduzem o discurso do presidente. É um país fake. Foi impossível o contato. Ao contrário das minhas expectativas, o Irã foi o lugar onde fui mais bem tratada. Entramos por Bajihan, na fronteira norte como Turcomenistão. Fiquei ao lado da moto, enquanto Marcelo ia trocar dinheiro. Sabendo do austero código de vestimenta do islamismo, permaneci de capacete e jaqueta, suando sob um sol de quase 40 graus, perto do comércio local. Um senhor se aproximou falando inglês: ‘Senhora, coloquei uma cadeira na sombra, venha sentar--se’. E ainda me trouxe sorvete! Em Teerã, dei de cara com uma cidade supermoderna e mulheres lindíssimas, maquiadas, cobertas de joias, com lenços Hermès e Chanel na cabeça. Por baixo das camisas de seda fechada, usam jeans ou legging justinhos.Nos pés, sapatilhas femininas ou sandálias superaltas. E as lojas de lingerie? Peças com plumas, pompons, estampas de onça, tudo muito sexy. Se quiser informações em inglês, fale com as jovens. Estão todas na universidade. As pessoas são curiosas, perguntavam do Brasil e também o que sabíamos do país deles. Saí de lá surpresa... Não dá para compreender o mundo árabe apenas pelo que sai na TV e nos jornais – cria-se uma imagem radical, e a partir dela você começa a enxergar todo um país. Isso, claro, gera preconceito e percebi que eu não estava imune a eles. Uma das maiores transformações que a expedição me proporcionou foi diminuir meus julgamentos.
MUDANÇA DE VALORES
Se eu ainda tinha alguma pretensão de achar que sabia das coisas, ela acabou de vez na Etiópia. Assim que cruzamos a fronteira, um senhor apareceu num burrico, desesperado, com o filho agonizante. Pedia ajuda aos passantes, ninguém fazia nada. Voltamos com ele até o posto da imigração. O oficial me disse que eu não tinha nada a ver com aquilo e que a criança doente era uma em 1 milhão. Bati o pé e ele nos indicou uma ONG a alguns quilômetros. Eles não tinham recursos, o garoto morreu na nossa frente. Passei dois dias chorando, quieta. A sensação é de impotência. A miséria é estrutural, não existe Estado organizado, a guerra civil desmantelou tudo. Fomos parados por muitas crianças na rua. Nenhuma me pediu dinheiro e sim canetas e cadernos. Querem estudar e aprender inglês – o país é lindíssimo, o turismo traz oportunidades. A Etiópia é um impacto, você não se refaz.
Em Lalibela (cidade histórica, patrimônio da Unesco), fui conhecer as igrejas esculpidas na terra e fiquei curiosa ao ver múmias sem os dedos dos pés. A ficha só caiu depois, quando percebi as pessoas sem sapatos nas ruas – elas perdem as pontas dos dedos. Meus valores viraram de cabeça para baixo, deixei de ser consumista ali. Não faz mais sentido.
SOLIDARIEDADE
Na estrada, gente que nunca te viu te ampara em momentos difíceis. É um alento comprovar a solidariedade humana. Fizemos muitos amigos no caminho. Meu diário continha expressões-chave: ‘olhar o próximo’, ‘ter cuidado com o outro’. É básico, mas a gente esquece. Entendi o valor do contato humano – e não só na dor. No México, em Cuba, as pessoas nos abraçavam, riam, contavam suas vidas, queriam saber da nossa família, das novelas, do Brasil... E na África me senti em casa. Somos muito mais africanos do que imaginamos! Eles são um povo quente, alegre, afetivo. O mais marcante para mim não foramas paisagens deslumbrantes – como o mar de Moçambique, as areias dos desertos ou as noites de lua em Cuba, inesquecíveis. O que me tocou mais profundamente foram as pessoas: elas me fizeram sentir que sou parte do mundo. A Mongólia é Darwin aplicado: só os fortes vencem! No inverno, a temperatura chega a 50 graus negativos, a maioria da população é nômade, vive nos gers, tendas especiais com calefação. No verão, bandos de cavalos selvagens nos acompanhavam pelas estepes. Não há estradas nem pontes, só trilhas de areia. Caímos mil vezes, numa delas, a perna do Marcelo ficou embaixo da moto – ela pesa 300 quilos, não consegui movê-la. Estávamos longe de tudo, o jeito foi esperar alguém passar, o que levou cinco horas. Nunca rezei tanto na vida. Fomos resgatados por militares que passaram ali por acaso, de Kombi, depois partimos em busca de médico. A perna do Marcelo não quebrou, mas a suspensão da moto sim e, até consertar, levamos dez dias para retomar a rota. Dizem que tivemos sorte, pois só enfrentamos riscos mais sérios na Nicarágua e nesse acidente. Mas não foi sorte, a gente se livrou de confusões porque pesquisou incansavelmente. Faz pouco tempo que, na Sibéria, um turista japonês morreu atacado por ciganos. A gente se preveniu o tempo todo: mapeávamos todo o local, só acampávamos perto de escolas, delegacias.
AMOR FORTALECIDO
Tínhamos um pacto: ‘Se brigarmos, não viajamos!’. Aconteceu só uma vez, no início da viagem. Marcelo mecobrou o xerox de um documento e retruquei: ‘O quê? Estamos há quatro dias no mato!’. Acabamos rindo, mas vimos a necessidade de esclarecer os mal-entendidos para estar 100% presentes na estrada, er auma questão de segurança.
Nossa relação só se fortaleceu. Namorei meu marido em 52 países! E olha que às vezes a gente ficava uma semana sem banho... Uma mulher não pode viajar sem lenços higiênicos, protetor solar e algumas latas de atum. Tem hora que não dá para encarar o menu! Num vilarejo do Vietnã, quando descobri que a sopa que tinha comido tinha carne de cachorro, vomitei. Nós, brasileiros, não comemos porque construímos laços com eles.O afeto muda a perspectiva. E nisso a mulher é mestre. Se a polícia nos parava, eu tomava a dianteira, sorrindo: ‘Bom dia!’. A presença feminina numa moto desarma qualquer um. A intolerância sempre existirá, mas ela é sinal de ignorância e ficará, cada vez mais, restrita a grupos menores. O que a gente teme é o desconhecido. Conhecer o outro traz coragem e esperança. Ainda tivemos, claro, o desafio financeiro. Realizamos um sonho desse porte gastando uma média de 65 dólares diários. Não é muito! Tantos dizem que não realizam sonhos por falta de grana, tem gente que não vai nem atrás do seu amor por medo, insegurança. Fazer a expedição me trouxe calma e confiança, não só em mim, mas no mundo.Conheci jovens incríveis e vi países apostando em educação. Por exemplo, o Cazaquistão temum plano para ensinar todas as crianças a falar três línguas até 2030: cazaque, inglês e russo. No Brasil, educação ainda é um ponto fraco, temos de ir atrás. Mas percebi que o mundo todo gosta de nós. Não só porque o Michel Teló faz sucesso na Ásia e todos admiramo Neymar. Nós não temos problemas diplomáticos, não provocamos o ódio, e isso é fundamental.”