O vício da escritora e crítica Salma Ferraz em dicionários a levou para um tema pouco explorado em sua vasta bibliografia: o feminismo. Especialista em pesquisas sobre religião, Salma começou a reparar nos absurdos proclamados contra as mulheres eternizados na Bíblia, no Alcorão e que a assustavam muito: "Esse foi o ponto de partida. Depois comecei a colecionar as sandices que encontrava em livros, filmes e resolvi criar um tipo de enciclopédia", contou ela em conversa com Marie Claire.
Durante a entrevista, a autora do recém-lançado "Dicionário Machista – Três mil anos de frases cretinas contra as mulheres" falou sobre a construção do novo livro, machismo brasileiro e a busca da mulher pelo equilíbrio entre o lado feminista e o ladylike:
Marie Claire - Você optou por fazer uma abordagem bem-humorada de célebres citações machistas. Essa não é uma forma de concordar com o que está escrito?
Salma Ferraz - É que quando a tragédia é demais, não tem outro caminho, é preciso levar para o cômico. Há situações em que é preciso lidar com o riso e essa questão absurda do machismo é uma delas.
MC - Qual é o perigo dessas frases perpetuarem por aí, sem que as mulheres percebam o machismo que há entravado nelas?
SF - Acho que mínimo, porque já estamos vivendo um outro momento, bem diferente de cinquenta, cem anos atrás. Lembro que quando estava rascunhando o dicionário, uma conhecida o levou para o México, numa aula de antropologia. Um dos alunos ficou tão assustado com as frases, que levantou e pediu perdão pela estupidez do homem durante esses dois mil anos. Foi muito bonito esse momento. É claro que sempre existirão ignorantes, mas acredito que hoje a maioria consegue perceber os absurdos.
MC - No livro, você comenta que no Brasil o machismo é cordial, não declarado. Por que acha que isso acontece?
SF - Porque aqui a mulher é linda, pode andar nua, tem liberdade, pode fazer o que quiser com o próprio corpo. No entanto, existe aí o perigo de escorregar para o extremo dessa ideia e se transformar em descartável, que dá espaço para o machismo cordial, aquele que reduz a mulher a um objeto de luxo, que dá a ideia de que ela pode ser comprada. Vemos muito isso acontecendo por aqui.
MC - Há também o outro contraponto, o extremo feminismo. Como analisa?
SF - Não sou da área de estudos feministas, embora ache que toda mulher tem a sua porção, a medida em que defende seus direitos para ter uma vida melhor. Atualmente há uma discussão intensa, principalmente entre as feministas norte-americanas, de que o cavalheirismo é também uma espécie de machismo disfarçado, pois oferecer a cadeira para a mulher sentar ou querer pagar a conta fazem dela uma incompetente. Esse é o outro extremo. Não devíamos nos sentir diminuídas por permitir que um homem nos ajude a carregar sacolas pesadas, por exemplo. Hoje, para conquistar o mundo, não é preciso ter músculos. O que está faltando é bom senso.
MC - Há uma tendência aqui e lá fora de mulheres que estão tentando encontrar o equilíbrio entre o feminismo e o feminino. Algumas estão fazendo o caminho contrário, voltando para casa, se dedicando exclusivamente ao papel de mãe. Como você avalia isso? Estamos perdendo a linha?
SF - O grande problema do feminismo atual é que cada mulher é uma ilha e tem desejos diferentes: há aquelas que largam a carreira para cuidar dos filhos e se sentem felizes assim. Outras assumem grandes cargos, voltam antes do tempo da licença-maternidade e também se sentem realizadas. Viva a liberdade! Não dá para encaixar todo mundo em um lugar só. A gente tem que reconhecer que todos os movimentos são importantes, se hoje podemos trabalhar, é porque um grupo de mulheres lutou muito por isso. Mas também temos o direito de ser femininas, se quisermos. E as feministas têm o direito de ser feministas.
MC - De todas as frases publicadas no livro, há alguma que represente o quanto a mulher ainda é tratada de maneira machista?
SF- É difícil escolher, mas há uma, dita pelo autor e teatrólogo Paschoal Carlos Magno, que diz: “Para que você precisa de mulher, meu filho, se você já nasceu”. É terrível porque reduz a mulher a uma fábrica, o valor da mulher só enquanto reprodutora. E outra péssima também, que eu li no para choque de umcaminhão: “Mulher é um bicho tão ruim, que sangra todo mês e mesmo assim não morre”.