
Você já sofreu violência sexual?A cada 11 minutos uma mulher é estuprada no Brasil. Acontece com celebridades e anônimas, em todas as classes sociais, em casa, na rua, numa festa e até no trabalho. Há casos em que a vítima está consciente, outros em que não. Para chamar a atenção para essa dolorosa – e tão frequente realidade – publicaremos um relato de estupro por dia.
"Aos 24 anos, viajei com amigas para Jurerê, em Florianópolis, para aproveitar o Carnaval. Lá conheci um médico de outra cidade, com quem fiquei na última noite da viagem - trocamos só uns beijinhos na balada mesmo e nada mais. Cada um voltou para sua casa, mas nos mantivémos em contato - era a época do MSN - e trocávamos mensagens de vez em quando. Ele era um fofo, inteligente, educado e respeitoso.
Você já sofreu violência sexual? Envie seu relato
Um mês depois de termos nos conhecido ele me disse que estaria na minha cidade para um congresso, e eu, que morava sozinha, lhe ofereci o meu sofá. Aprendi em uma temporada na Europa o quanto o sofá de um amigo é providencial para viabilizar uma viagem. Quando ele chegou, encontrou roupa de cama e toalha limpos e dobrados em cima do sofá em que dormiria - além de uma gentileza, um sinal muito claro de que ali era o lugar dele.
Saímos para jantar e voltamos logo para que ele não perdesse a hora do congresso no dia seguinte. Não rolou nada nesse dia, sequer nos beijamos. Eu tinha interesse em ficar com ele, mas não nesse dia, teríamos tempo depois. Dei boa noite e entrei no meu quarto para dormir.
Não sei bem há quanto estava dormindo quando ele abriu a porta do meu quarto falando que o sofá estava desconfortável e que queria dormir na cama. Eu já dormia quase todas as noites vendo TV mesmo, para mim estava tudo bem em trocarmos de lugar. Mas ele disse que eu não precisava sair, que a cama era grande e ele podia dormir no outro lado. Ok, eu só queria voltar pro meu sono. Pensei "deita onde você quiser e me deixa dormir de boa".
Ele me deu um beijo de boa noite. Eu retribuí e virei pro outro lado. Ele começou vir pra cima de mim e insistir. Eu reforcei que estava com muito sono. Ele não acreditou muito. Eu continuei tranquila um tempo, negociando: 'Deixa pra amanhã, eu to com sono, amanhã a gente saí, a gente curte'. Ele já não estava ouvindo. Durou um tempo até eu finalmente tentar empurrá-lo com força e perceber que eu não conseguia mover muito um sujeito bem maior do que eu.
- "Mentalidade distorcida", diz psicanalista sobre discurso de ódio contra vítimas de estupro
Ele achou graça dos meus empurrões, parece que foi algo que o animou. Eu já era puro desespero. Pedi por favor. Pedi: Pelo amor de deus, para'. Chorei. Ele achou graça de tudo. Eu falei que era sério. Ele respondeu, rindo: 'Sei'. Me desafiei, então, a ficar imóvel feito um cadáver, para ver se ele perdia a empolgação ou se indignasse com a minha falta de reação. Nada. A partir daí só torci para que acabasse logo. Me arrependo até hoje por não ter tido coragem de gritar e pedir socorro.
Me levantei da cama e saí do quarto imediatamente quando ele acabou. Fui deitar no sofá, mas só consegui fechar os olhos pela manhã, quando ele saiu do quarto e eu fiz que estava dormindo para não precisar olhá-lo na cara. Ele foi para o congresso. Eu coloquei suas coisas na mala e deixei na portaria, onde avisei que ele não estava mais autorizado a entrar.
Fiquei em negação, não conseguia nem pensar em estupro. Saí de casa para almoçar com um dos meus melhores amigos e contei para ele o que tinha acontecido. Ele verbalizou o que eu já sabia, mas não queria aceitar: 'Você foi estuprada'. Fiquei quase a tarde toda enrolando para voltar para casa com medo de cruzar com o meu agressor na portaria.
No fim daquele mesmo dia, ele me ligou várias vezes. Não atendi. Dois dias depois ele me mandou um e-mail dizendo estar muito confuso com a minha atitude e perguntando qual motivo eu teria para trancá-lo pra fora de casa em uma cidade estranha. Segundo ele, 'tava tudo tão legal!'. Parecia que ele não entendia a gravidade do que tinha feito. Ou estava sendo muito dissimulado, afinal eu tinha empurrado ele, pedido pra ele parar, chorado, saído do quarto depois. Não existiu nenhum consentimento. Era claro que não estava tudo bem.
Nunca respondi o e-mail. Não quis falar disso nem na terapia. Falei superficialmente o que aconteceu para outras amigas, para quem já tinha contato que iria hospedá-lo. Não entrei em detalhes, disse que ele tinha sido 'desagradável'. Ouvi que era ingenuidade confiar em um cara estranho, receber ele em casa. Eu sei que posso ter sido ingênua, mas isso não descaracteriza o ato dele.
Me encarreguei de tratar logo a cistite que ganhei com essa história e enterrar o episódio num buraco escondido da minha memória. Em nenhuma hora considerei fazer uma denúncia ou confrontá-lo sobre o que ele tinha feito comigo. Para mim, ele sair ileso não era uma questão: eu é que queria ficar ilesa, fazer o assunto morrer. Só queria esquecer, sumir do mapa.
A cada vez que alguém fala que a culpa era da vítima, eu lembro da vergonha e culpa que senti. Agora, 6 anos depois, tudo isso volta com detalhes. Toda vez que falam que a cultura do estupro não existe e que isso é coisa de psicopata, eu lembro do médico lindo e educado que me estuprou dizendo não ter ideia do que tinha feito de errado.
Pode acontecer com qualquer uma. E aconteceu comigo."