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Eu, Leitora: "Sou gay e fui aceita por uma igreja evangélica", diz pedagoga

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SIMONE CONHECEU ALINE EM UM CULTO EVANGÉLICO (Foto: Arquivo Pessoal)

Só agora consigo ver como fui criada para seguir os padrões da sociedade. Nasci em uma família evangélica e, aos 18 anos, me casei com um homem um ano mais velho. Tivemos uma filha, Ana Carolina, hoje com 24 anos. A experiência de ser mãe foi maravilhosa, mas comecei a perceber que faltava química, a essência de tudo. O pai da minha filha foi meu primeiro homem e, conforme o tempo passou, cheguei à conclusão de que não era aquilo que eu queria – embora não soubesse bem o que era. Estar com ele nunca era legal ou gostoso. Ele era um cara bacana, mas eu fugia dos nossos momentos íntimos. Inventava dor de cabeça. Evitava-o ao máximo. Até que, com três anos de casados, nos separamos. Fui tentar a vida com outro rapaz, com quem tive meu filho Rodrigo, hoje com 19 anos. A experiência foi ainda mais traumática. A culpa não era dele. Eu não sabia exatamente o que se passava, mas já questionava minha orientação sexual. Ficar com aquele homem era tão insuportável que eu, ao sair da maternidade na qual tive o Rodrigo, já não voltei mais para a casa em que morávamos. Nos separamos e, aos 26 anos, me reaproximei da Igreja Assembleia de Deus, aonde também iam meus pais e avós, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Ali me sentia bem e vivi em comunhão com os irmãos de fé por três anos. Até que, durante um culto, conheci a Aline, hoje com 35 anos. Foi amor à primeira vista: nos conhecemos e, dias depois, ela foi à minha casa assistir a dois filmes evangélicos e comer pipoca. Ficamos conversando até tarde, rindo. Ali sentimos algo diferente e nos beijamos. Em 15 dias, assumimos o relacionamento. Com ela, eu me sentia aliviada, completa. Era como se tivesse encontrado a peça do quebra-cabeça que é a vida.

Fomos morar juntas no dia 3 de abril de 1995, e aquilo foi como a explosão de uma bomba atômica. Nossas mães queriam nos separar, temiam que a gente sofresse represálias e até agressões físicas, principalmente dentro da igreja. Sei que não faziam por maldade, mas por zelo. Ninguém podia imaginar que eu, Simone, criada com vestidos cor-de-rosa, pele de oncinha e esmalte, fosse homossexual. Por ignorância, ela temia que eu virasse uma pessoa promíscua, que mudasse de personalidade.

Contamos a duas amigas sobre nossa relação e elas procuraram a mulher do pastor para tentar fazê-la interceder por nós. A intenção foi boa, mas o resultado, horrível. No mesmo dia, no culto noturno, o pastor anunciou para todos os fiéis da igreja que havíamos “caído em pecado”. Ao final da cerimônia, na qual estavam todos os membros, pastores, presbíteros, diáconos, obreiros, ele disse ao microfone que eu (então dirigente de congregação) e a Aline (dirigente do grupo da mocidade) estávamos destituídas de todas as funções dentro da igreja e iríamos para o banco (plateia de fiéis), como um castigo por sermos homossexuais. A partir dali, só poderíamos assistir aos cultos, sem abrir a boca.

Imaginávamos que iríamos sofrer preconceito, mas nunca nesse grau, como pastor falando no púlpito para a igreja lotada. Senti-me humilhada, diminuída, exposta como se fosse uma leprosa. Ouvir aquelas palavras – “de hoje em diante, você não poderá mais adorar, louvar ou pronunciar o nome de Deus” – foi uma dor muito grande, mas não tive reação. Lembro que a Aline estava de um lado e eu de outro, e nossas mães vieram sentar conosco no banco. Nós quatro saímos da igreja e fomos para casa. Do lado de fora, havia neblina e fazia frio, então pensei: “Jesus, acabou tudo para mim. Agora posso morrer”.

SIMONE E ALINE SUPERARAM AS BARREIRAS DA RELIGIÃO PARA FICAREM JUNTAS. NA FOTO, ELAS REALIZARAM UM CASAMENTO PÚBLICO EM REDE NACIONAL NO PROGRAMA DE PEDRO BIAL (Foto: Arquivo Pessoal)

Decidimos nos separar. A Aline mandou seus irmãos buscarem as coisas na minha casa e, então, estava tudo acabado.Mas bastaram alguns dias para vermos que não dava para ficar longe. Voltamos a nos encontrar menos de uma semana depois, apesar de nossas mães tentarem impedir. Na mesma semana em que fomos expulsas, nos encontramos às escondidas e assim continuamos até o fim daquele mês de abril. Ou nos víamos em um bairro mais distante ou na minha casa, às escuras. Eu dizia que não ia sair, apagava as luzes e meu filho ia dormir (nessa época, minha filha morava com a avó paterna dela e o Rodrigo, comigo). A Aline falava para a mãe que ia à casa de alguma tia e fugia para a minha. Ali no escuro, dormíamos juntas na sala.

Resolvemos, então, ficar juntas novamente. Pensamos: “Já fomos expulsas da igreja e ‘vamos para o inferno’ mesmo... não temos por que deixar de nos amar. E encaramos tudo e todos novamente. Só que a saudade de Deus batia forte. E, de vez em quando, íamos visitar alguma igreja mais distante, não aquela da qual fomos expulsas. Diziam que estávamos com demônios e, por isso, deveríamos passar por um processo de libertação. Tentamos. Mas a homossexualidade não é demônio nem doença, e por isso não fomos “libertadas”. Íamos às sessões de libertação, que servem para ajudar quem tem vícios ou se prostitui, e o pastor dizia ter expulsado o demônio da gente. Voltávamos para casa, cada uma para um lado, sem se tocar, já que “o demônio havia saído”, mas antes mesmo de dormir a gente se beijava, se abraçava, chorava e orava junto. Esse processo de lutar contra o que sentíamos durou 14 anos. Foi um tempo de muita agonia, questionamento e dúvida até vermos que não estávamos nos libertando de nada. Estávamos, na verdade, vivendo um desespero que nos fazia mal. Decidimos viver o nosso amor e continuar a criar o Rodrigo, que passou a ser filho dela também. Ana Carolina seguiu morando coma avó, mas sempre soube da minha relação e manteve proximidade comigo e com a Aline. Foi quando, há três anos e meio, minha cunhada nos contou sobre a Igreja Cristã Contemporânea, conhecida por ser mais aberta ao público gay. Quando cheguei, um fiel me deu um abraço tão especial, que me emociono até hoje ao lembrar. “Aqui podemos ficar assim, de mãos dadas, estamos na casa de Deus”, pensei. “Agora estou completa: posso adorar a Deus, trabalhar em sua obra e ser quem sou ao lado de quem amo”, disse a mim mesma.

Todas as igrejas deveriam aceitar os homossexuais como são e ler a Bíblia em sua essência. Temos de entender a palavra de Deus. Levar em conta a época em que foi escrita, e não destacar um versículo para esfregar na cara dos outros. Há muitos homossexuais vivendo uma falsa identidade, fingindo ser o que não são. Para se mostrar curado, basta não praticar a homossexualidade, ignorar seu desejo. Basta, então, viver de aparências? Vivi isso na pele: casei com pessoas do sexo oposto e me senti enojada, violentada. Isso é covardia. Por outro lado, da mesma maneira que evangélicos não aceitam gays, vejo como muitos homossexuais não se permitem ser evangélicos. Não foram poucas as vezes que ouvi: “Você acha que sua igreja vai me aceitar do jeito que sou? A Bíblia me condena”. E sempre digo: “Não, Jesus te ama do jeito que você é”. Hoje eu sou feliz porque posso continuar servindo e amando esse Deus e ser quem sou ao lado da Aline. Era o meu grande sonho.


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