“Meu pai saiu de Portugal aos 18 anos, logo que se alistou no Exército, para prestar serviço em Moçambique, então colônia portuguesa. Como sempre foi ambicioso e perspicaz, logo conquistou um cargo no governo e ascendeu financeiramente, comprando fazendas que, mais tarde, exportariam batata para a Europa. Ele conheceu minha mãe durante uma das viagens que fez para Portugal e se casou com ela. Eu e minha irmã, Ana Cristina, um ano mais nova, nascemos em Moçambique. Até os meus 7 anos, não conhecíamos ninguém da família portuguesa. Até que um dia meu tio, irmão da minha mãe, foi com a mulher passar uma semana com a gente na fazenda, que ficava na capital, Maputo, para nos apresentar meu priminho de 2 anos.
Lembro direitinho daquela noite. Estávamos todos jantando, comemorando a chegada deles, quando estourou a guerra civil no país. Era 1975 e a população nativa se revoltou contra o governo português, clamando pelo fim da colonização. Meu pai foi chamado com urgência para uma reunião e levou minha mãe com ele. Eu e minha irmã ficamos na fazenda com meus tios. Duas ou três horas depois, os funcionários começaram a se rebelar. A revolução havia sido decretada pelas rádios e vários trabalhadores foram fazendo levantes contra seus patrões em outras fazendas, quebrando tudo com muita violência.
Na minha casa, mais do que uma rebelião, aconteceu uma barbárie. Começou com os empregados de dentro da sede, incluindo a nossa babá, jogando as coisas no chão, cuspindo e gritando que não iriam mais nos servir. Eles não eram escravos, pois podiam ir e vir quando quisessem, mas eram negros servindo brancos muitas vezes em troca de casa e comida, sem salário. Logo em seguida, entraram os funcionários de fora, que arrombaram a porta com chutes e começaram a brutalidade. Estrangularam o pescoço de minha tia no meio da sala, na frente de todos nós, inclusive do bebê dela. Meu tio foi amarrado a um jipe e arrastado pelas terras em volta da casa até desmaiar. Depois, passaram com o trator por cima das pernas dele. Nem o bebê foi poupado. Em mais uma cena horrível, agarraram meu primo por uma perna e por um braço, como que para fazer um balanço e pegar impulso, e o atiraram pela janela. Eu e minha irmã ficamos paralisadas de pânico, sem entender aquele horror todo. Acho que só não fizeram nada com a gente porque nascemos em Moçambique e eles nos conheciam desde bebês. Atacavam só os portugueses, mas faziam questão de que a gente visse. Foi uma coisa animal, selvagem.
Não me lembro exatamente como, mas em algum momento eu e a Ana conseguimos ir para um dos quartos e nos escondemos debaixo da cama. Pegamos no sono e acordamos com minha mãe gritando e nos puxando. Ela e meu pai estavam em pânico, porque não nos encontravam e acharam que tivessem nos sequestrado. A primeira cena que os dois viram ao chegar da reunião foi meu tio ainda amarrado ao trator, ensanguentado e desacordado, bem em frente da casa. Era um cenário de filme de terror.
Naquela mesma madrugada, meu pai decidiu nos tirar do país. Chamou seu único funcionário de confiança, braço direito dele, que não estava na fazenda quando tudo aconteceu. Ele nos buscou em casa de caminhão e nos levou para a fronteira inglesa, com a Zâmbia, onde não tinha guerra. Ficamos dois dias num hotel até ele conseguir contactar os parentes do meu pai e nos despachar para Portugal. Minha mãe ficou para cuidar do meu tio, que acabou ficando paraplégico, e do meu primo, que ficou semanas hospitalizado e até hoje tem cicatrizes no rosto.
Foi um milagre eles terem sobrevivido. Ela também tinha que cuidar do enterro da minha tia, não queria abandonar a família daquele jeito, foi um choque muito grande.
Logo em seguida, meu pai foi preso por ter feito parte do governo colonizador. Eu e minha irmã ficamos quatro anos em Portugal, dos meus 7 aos 11 anos, revezando a hospedagem entre tios paternos e maternos e sem ver nossos pais. Nos falávamos apenas por carta.
Dois meses depois daquela noite, meu pai foi solto. E foi então que ele decidiu deixar de vez Moçambique. Minha mãe não suportava mais aquele lugar. Mas eles também não queriam voltar para Portugal, porque a família da minha mãe se revoltou contra meu pai. Achavam que ele era culpado pelo que acontecera com meus tios e meu primo em Moçambique. Ficaram muitos anos sem falar com a gente e acho que foi por isso que minha mãe decidiu ficar ao lado do meu pai, mesmo que isso significasse estar mais tempo longe das filhas. Ela tinha uma devoção impressionante por ele. Eu sentia muita falta dos meus pais e a cada carta que chegava esperava ler a notícia de que iriam nos buscar em breve.
Durante esse tempo, eles planejaram reconstruir a vida do zero num lugar novo, onde tivesse paz. Escolheram o Brasil por causa da língua e porque era um país aberto para imigrantes naquela época [1978]. No Rio, as praias e o clima o lembravam do que tínhamos na África. Sem nenhum dinheiro, já que perdera todo o patrimônio na guerra, meu pai chegou aqui com minha mãe praticamente só com a roupa do corpo.
Logo no primeiro mês, ele conseguiu emprego em uma padaria. Minha mãe, que estava deprimida, quase não saía do pequeno apartamento que eles alugaram no Flamengo e passava os dias fazendo tricô para vender. Um dia, no caminho para o trabalho, meu pai viu um prédio lindo sendo construído na Rua Visconde de Albuquerque, no Leblon, e teve a ideia de pedir emprego como zelador. Era algo abaixo do que intelectualmente podia fazer, mas ele sabia que teria direito a moradia sem ter de pagar aluguel, luz, condomínio etc., e isso o ajudaria a juntar dinheiro.
Deu certo e, orgulhoso, meu pai fazia questão de trabalhar de terno e gravata, mesmo no calor do Rio. Era estudado e isso chamou a atenção dos moradores, que logo o promoveram a administrador do condomínio. Nas folgas, ele fazia bicos de motorista, segurança, tudo o que aparecia, para juntar dinheiro. E foi justamente num desses trabalhos que ele acabou contando toda a sua história para um dos moradores de quem se tornou próximo, um engenheiro chamado Bob Stewart. Ele era dono da construtora que ergueu o prédio. Ficou tocado e resolveu ajudar meu pai a nos trazer para perto dele. Inteirou nossa passagem de Lisboa para o Rio e conseguiu vagas para mim e para minha irmã na escola do Jóquei Clube, teoricamente restrita para filhos de funcionários. Lembro da cartinha que meu pai nos escreveu para nos dar a notícia: ‘Agora vocês vão encontrar com o papai e a mamãe num lugar muito bonito, com sol e uma praia linda’. Foi um dos dias mais felizes da minha vida.
Eu tinha 11 anos quando cheguei ao Rio. Quando fiz 15, nos mudamos para um apartamento em Ipanema, bem simples, que ficava em cima de um supermercado. Meu pai tinha conseguido juntar algum dinheiro – até a comida era contada em casa, dois bifes eram divididos para nós quatro – e comprado um bar destruído, que reformou todinho, sozinho, para revender. Depois fez isso com um restaurante. E começou a fazer dinheiro reconstruindo lugares decadentes. Até que comprou uma lavanderia e, em vez de revendê-la, pensou que ela poderia ser um negócio. Em pouco tempo, tornouse dono de uma rede com quatro unidades e nos transferiu para outra escola particular.
Em 1984, quando a gente achou que finalmente a família estava refeita do trauma, minha irmã sofreu um acidente de carro. Ela fazia parte da banda de uma igreja perto de casa e, durante uma viagem para uma apresentação em Araruama, região dos Lagos, um caminhão acertou em cheio o carro em que ela estava. Ana Cristina e os outros três passageiros morreram na hora. Tinha apenas 16 anos.
Mais um baque tremendo para minha família. Papai era a pessoa mais otimista que conheci. Nunca desistiu de tentar nem baixou a cabeça diante das provações da vida. Puxei isso dele, então seguimos em frente. Um ano depois da morte da Ana, quando fiz 18 anos, entrei na faculdade de arquitetura. Desde pequena eu sabia que queria construir, como meu pai.
Inquieta, ansiava começar a trabalhar no primeiro ano. Na maior cara de pau do mundo, bati na porta do escritório do Zanine [José Zanine Caldas, arquiteto, paisagista e moveleiro baiano radicado no Rio, que foi um dos grandes nomes do setor nos anos 80 e 90] e disse que queria estagiar com ele. Ele olhou para mim e disse: ‘Não estou precisando, minha filha, pode ir embora’. Dois meses depois, bati na porta dele de novo com a mesma pergunta. Ele me olhou de canto de olho e soltou: ‘Ah, fica aí, vai’. Durante uns 15 dias, fiz aquelas coisas pequenas de estagiário. Até que um dia Zanine precisava ir para não sei onde e não podia dirigir, porque estava com um problema no ombro. Me ofereci. Ele me olhou com uma cara de ‘quem é você?’. Sem titubear, me apresentei como estagiária dele.
Então o levei para um compromisso, como se fosse motorista particular. Fiz isso várias outras vezes, inclusive faltei na faculdade para atender a todos os pedidos do escritório. Um dia, tinha uma prova e o professor não queria me deixar fazer porque eu havia faltado muito. Pedi para o Zanine ir comigo, já que as faltas eram por causa dele. Ele foi! Entramos de braços dados, fiquei ‘me achando’. Sentou do meu lado e o professor, que não ia com a minha cara, começou a me chamar de Goretinha.
Desse dia em diante, Zanine passou a confiar em mim. Eu ainda nem tinha me formado e ele já me passava os acabamentos dos projetos dos clientes para tocar sozinha. Foi assim que comecei a montar meu escritório. Quatro anos depois, criei um estilo de atendimento que me diferenciou e me tornou conhecida no mercado, o Express. Transformo a casa do cliente em 24 horas – ou até menos. Já mudei toda a decoração de um restaurante entre 11 da noite e meio-dia do dia seguinte. Hoje, o Express é responsável por 70% do negócio. São 70 funcionários só voltados para isso, que entram comigo na casa para pintar, trocar piso, mobília, tecido de sofá, o que for preciso.
Há dois anos, estreei ainda um novo negócio, a minha própria linha de móveis. O primeiro que desenhei foi em homenagem a meu pai: chama-se aparador Rufi, de Rufino, seu nome. Tem também uma dupla de poltronas que batizei de Filhas da Idaline, o nome da minha mãe, em homenagem a ela e a minha irmã. O mais recente dos projetos é o blog (goretecolaco.com), com dicas de decoração e design.
Meu pai faleceu há dois anos de ataque cardíaco. Minha mãe está com 87 anos e sofre de Alzheimer. Há dias em que não me reconhece. Estou sozinha, é como se eu não tivesse mais família, já que não tenho contato com os tios de Portugal. Talvez por isso tenha me apegado tanto aos parentes do meu marido, Ricardo, com quem me casei aos 24 anos. Tive só um filho, o Bernardo, 11, por opção. O pesadelo de ser obrigada a fugir de uma hora para outra ainda me assombra e com um filho só isso seria mais fácil. Ninguém sabe desse medo, não falo sobre meu passado em Moçambique com os amigos. Amo a vida que tenho e a família que construí. Sou aquela pessoa bem-humorada 24 horas por dia, não deixo essa sombra me apagar.
Até criei uma campanha no meu escritório: ‘I Love Segunda-Feira’. Mandei fazer camisetas e distribuí. Não obriguei ninguém a vestir, mas os funcionários usam e sorriem mais com ela. Na rua, o padeiro, o dono da banca, o gari, os porteiros, todo mundo que cruza meu caminho pediu uma camiseta. Saber que não só superei uma tragédia, como também construo beleza e alegria, me enche de orgulho.”