"Eu me assumi bem antes de Ellen, muito tempo antes de Katy Perry cantar sobre beijar uma garota (e gostar). Eu era uma caloura na universidade quando descobri, para minha surpresa, que estava loucamente apaixonada por minha melhor amiga. Era o meio dos anos 90 e, nesta época, certamente não era nada "da moda" ser gay.
Eu fui a primeira pessoa gay que a maioria de meus amigos conheceu. Mas eu gostava de ser gay. Tinha uma obsessão antes com a ideia que meu completo desinteresse pelos meninos significava que havia algo errado comigo. Então descobri que não tinha nada de errado -eu só era gay.
Meus pais, por outro lado, não gostaram muito. Eles passaram anos pregando que era só uma fase (spoiler: não era). Os dois queriam netos e um casamento heterossexual para mim. Encontrar um homem que me amasse e tomasse conta de mim era um de seus principais objetivos na vida.
Mas enquanto meus pais estavam preocupados com meu futuro, eu estava mergulhada na cena gay da faculdade. Encontrei minha turma. Nós nos divertíamos, éramos felizes, amávamos uns aos outros, éramos ótimos alunos. Sabíamos que tínhamos um futuro e não estávamos preocupados de jeito nenhum.
Viver o fim do meu primeiro amor foi devastador. Sofri muito. Mas a despeito dessa montanha-russa que sempre foi minha vida amorosa, eu era uma lésbica assumida e orgulhosa. Essa era minha identidade. Ir para as festas com outras amigas lésbicas ou à Parada Gay de Atlanta me fazia sentir cercada por pessoas que entendiam uma parte de mim que o mundo queria que eu escondesse.
Conheci Amy no fim dos meus 20 anos, num bar de lésbicas. Eu já a tinha visto antes, mas ela tinha namorada. Desta vez ela estava solteira e eu, de volta à pista. De cara, nosso encontro mostrou que tínhamos uma conexão perfeita. Amy e eu dávamos tão certo juntas que era algo difícil de negar.
Nós duas estávamos passando por momentos difíceis: ela havia perdido o irmão no ano anterior e eu lidava com a depressão -na época, ainda não identificava como uma doença. Nossas personalidades eram complementares. Ela me entendia melhor do que eu mesma em muitos assuntos.
Então fizemos o que qualquer casal lésbico faria... fomos morar juntas. Em seguida, casamos. Bem, não legalmente. Era 2006 e o casamento gay ainda levaria 9 anos para ser aprovado na Flórida. Mas fizemos uma cerimônia ao ar livre com todos nossos amigos, dissemos nossos votos, juramos amor uma à outra e festejamos.
Amy e eu amávamos estar casadas. Mas logo surgiram as primeiras turbulências. Nós duas continuamos saindo muito para festas. Flertávamos com a infidelidade, tínhamos muitas discussões bêbadas. Tinha sempre muita gente entrando e saindo de nossa casa. Mas, principalmente, éramos duas pessoas que se amavam muito e também se odiavam. Éramos autodestrutivas e o álcool potencializava tudo.
Então, em outubro de 2008, nós duas paramos de beber. Nos tornar sóbrias envolvia, primeiro, rever todas as coisas que nos faziam querer beber e enfrentá-las. Uma tarefa difícil e desgastante emocionalmente. O processo, em muitas partes, é solitário. Mas aprendemos a incentivar uma à outra. Ensaiávamos como seria a reunião no AA, ríamos do café fraco e lidávamos juntas com os efeitos físicos e psíquicos da falta do álcool. Começamos a crescer e a assumir responsabilidades.
No dia 28 de janeiro de 2011, nossa filha veio ao mundo com um punho em riste, como um símbolo de triunfo. Era a primeira expressão de sua grande personalidade. Foi o fim de uma batalha de dois anos lidando com tratamentos contra infertilidade e um aborto espontâneo.
Agora, tínhamos tudo que meus pais haviam sonhado para mim: uma casa, um casamento, uma filha. Eu estava completamente apaixonada pela minha vida e ser gay continuava sendo parte central da minha identidade. Falar que era gay era uma das primeiras coisas que dizia numa conversa. Sempre mencionava minha mulher ou falava sobre a "outra mãe" da minha filha. Queria mostrar ao mundo que gays estão prontos para casamento e filhos, que amamos e vivemos como qualquer um.
Então não é difícil imaginar o abalo sísmico em minha identidade quando Amy sentou uma noite comigo, depois de voltar da terapia, e disse que era transgênero. Para dizer a verdade, a revelação em si não foi um choque. Ela há anos se mostrava insatisfeita com o corpo. Era constantemente chamada de "senhor" em público e não demonstrava o menor incômodo. O que a incomodava, na verdade, era quando a pessoa se corrigia -com se tivesse perdido o encanto.
Eu sabia disso, mas torcia para que fosse alguma disforia de gênero. Afinal, eu sou lésbica, me sinto atraída por mulheres, não homens. Mas a verdade era uma só: Amy, no seu coração, na sua mente, era um homem. Fingir, evitar ou negar não ia mudar isso. O esforço que estava fazendo a estava mergulhando numa depressão. E eu estava vivendo com uma sombra da pessoa que havia amado.
Para Amy, viver essa verdade era uma questão de vida ou morte. E eu só poderia decidir entre ficar ou ir embora. Ela começou a transição e passou a se chamar Simon.
O que uma mulher em seus quase 40, orgulhosa de ser lésbica, poderia fazer diante do parceiro homem transexual? Eu não sei. O que posso dizer é que escolhi ficar. Se Simon é um homem, sempre foi assim, não importa se eu tinha consciência ou não. Resolvi ficar porque ele é corajoso, gentil, honesto e amoroso em maneiras que Amy nunca teria a mesma abertura e transparência para ser. Resolvi ficar em nome da família que criamos juntos e porque não posso imaginar minha vida sem ele.
Quando eu começo a analisar demais o que estar com Simon significa para minha identidade lésbica, eu entro um pouco em pânico. É como perder uma parte de mim. Mas quando olho para a pessoa com quem vivo há quase dez anos, para a filha que nos adora, sei que estou no lugar em que quero e preciso estar. Eu o amo. E ele ainda me ama como ninguém mais. Isso transcende qualquer rótulo.
Eu sou uma lésbica que um dia acordou casada com um homem -e não poderia estar mais feliz e orgulhosa dele ou de nós. Só não deduza que, por isso, sou hétero."
*A íntegra do artigo de Kendra Lee foi publicado no site XOJane. Clique aqui para ler (em inglês).