Corria o ano de 1958 quando um menino de 8 anos atravessou as cortinas pretas de um pavilhão tosco erguido no centro de Campinas, em São Paulo. No lado de fora, numa das paredes de duratex, uma faixa anunciava: “A jovem faquiresa Verinha desafia a morte em sua prova de jejum e suplício”.
Lá dentro, a visão de uma jovem loura e bela, em trajes azuis, deitada numa cama de centenas de pregos dentro de uma urna de vidro nunca mais saiu da memória do cenógrafo e figurinista Alberto Camarero, 65. “Uma mistura de santa com odalisca de carnaval”, relembraria ele.
A cena é o mote de “Cravo na Carne: fama e fome – o faquirismo feminino no Brasil”, que será lançado no próximo dia 19 pela editora Veneta. Nos muitos anos seguintes após a partida de Verinha da cidade, Camarero pesquisou arquivos de bibliotecas e jornais, estações de rádio e entrevistou profissionais da época. Ninguém lembrava da exibição que marcou a infância do menino –nem o mesmo o irmão que o levou pela mão.
Foi só em 2012, após ter montado até exposições de artes plásticas inspiradas na faquiresa, que o artista encontrou a primeira pista de sua musa. Camarero conheceu Alberto Oliveira, pesquisador fascinado pela história cultural brasileira dos anos 30 a 50 e coautor do livro. Com a ajuda da internet, chegaram a Verinha, hoje uma senhora de 80 anos que preferiu não falar sobre o passado de performances escandalosas.
Do encontro, no entanto, restou uma amizade e um rico material bibliográfico. “No meio da pesquisa, percebemos que tínhamos material para um livro”, diz Oliveira. A edição repassa a trajetória de 11 mulheres que chocaram a opinião pública e deleitaram os jornais na primeira metade do século XX, em uma época em que ser atriz ou cantora já era motivo suficiente para ser mal vista.
ELIXIR DOS SELVAGENS
Mais conhecida hoje pela figura de indianos em pele e osso capazes de feitos como jejuar dias a fio ou caminhar descalços sobre fogo, a arte do faquirismo como performance pública tem seus primeiros registros em 1880, segundo Oliveira. Na Paris de 1892, uma inglesa conhecida como Miss Nelson ficou famosa por não comer alimentos sólidos por 40 dias. “Ela dizia tomar um elixir que era o segredo dos selvagens para não se alimentar por tantos dias.”
Por aqui, um italiano chamado Succi já fazia suas exibições em 1899. Mas foi a francesa Rose Rogé a pioneira da atividade entre as mulheres. Mesmo sem urna de vidro, cama de pregos ou as cobras sempre presentes nas apresentações mais tarde, suas provas de jejum faziam a alegria dos jornais, anunciadas até como uma conquista feminina. “Esta é a maior e mais interessante novidade da época. Com a sua primeira jejuadora, o feminismo marcará mais um tento aos seus ideais de liberdade”, registrou o jornal A Noite em 1922.
O fascínio só aumentaria ao longo dos anos. Das provas de jejum das pioneiras, o faquirismo passou a incluir as urnas de vidro e caixões de madeira a dois metros do solo –de onde se assistia às performances por um tampo de vidro. Nos anos 50, consideradas pelos autores a “época de ouro” do faquirismo nacional, os desafios incluíam camas de prego ou cacos de vidro e as serpentes –que, dizia-se, serviam para purificar o ar dentro das urnas, mas segundo Oliveira, era mais um truque para atrair os curiosos.
Não bastassem as exibições cada vez mais elaboradas, muitas delas também fizeram fama nas páginas policiais: uma teria se suicidado, outra foi assassinada, uma terceira presa, acusada de sequestro de crianças. Suzy King abandonou o país e com identidade falsa.
BIQUÍNIS E MARGINALIDADE
No fim dos anos 50, começaram a desaparecer os antigos trajes de odalisca e as mulheres passaram a se exibir de biquíni. “Esse apelo do corpo também era algo que não se via na época, que estava restrito ao teatro de revista, mas só homens podiam assistir. No caso das faquiresas, era a chance para muita gente ver pela primeira vez uma mulher seminua. As exibições foram ficando mais escandalosas, transgressoras mesmo.”
Mesmo celebradas pela imprensa, as performances, cada dia mais controversas, foram sendo aos poucos marginalizadas. “Mesmo o povo de circo tinha preconceito com o faquirismo. As apresentações não aconteciam embaixo da lona, muitas vezes eram instaladas nos arredores de circos e parques de diversão.”
O livro segue os passos das vedetes-mártires até meados dos anos 60, quando Suzy King, “que parece ter sido a última faquiresa a se exibir em território nacional” anunciou seus cento e dez dias sem comida –noticiado pelo jornal Última Hora como mais alguém “que pretendia explorar o povo com um espetáculo de jejum, desses bem manjados”. Para os autores, a instalação da ditadura e o espírito de modernidade que invadia o país na virada dos 50 para os 60 também foram definitivos para o fim da atividade no país.