Em 1965, David Pettit, um jovem segundo-tenente da Força Aérea norte-americana, foi apresentado à Jonni, filha de seu comandante, que o encorajou a chamá-la para sair. Os dois viviam em Novo México, nos Estados Unidos. Horas antes do primeiro encontro, o rapaz decidiu abrir um biscoito da sorte que dizia: “Você e sua esposa serão muito felizes.”
A previsão se concretizou, mas não sem que o casal passasse por uma enorme transformação da qual saíram fortalecidos. David se assumiu transgênero - e salvou o relacionamento que já dura quase 50 anos.
“David, ele ainda era David na época, era perfeito. Ele ficava lindo no uniforme, era divertido e inteligente – e ainda beijava muito bem”, contou Jonni, 68, em entrevista ao site Good Housekeeping.
A paixão foi tão imediata que, seis meses após o primeiro encontro, eles se casaram. Cinco anos depois, nasceu a primeira filha do casal, Audra.
Cansada de passar meses distante do marido, que viajava muito a trabalho, Jonni tomou uma decisão radical: ela e a filha se juntariam a ele nas próximas missões oficiais.
“Durante uma delas, o avião dele não voltou”, relembra. “Eu fiquei na pista esperando, mas ele não apareceu por três dias. Para mim, foi o momento no qual tive a certeza de que eu não poderia viver sem ele. Nossa história não podia acabar tão rápido. Se ele voltasse pra casa, nada mais nos separaria.”
David só voltou quando a Guerra do Vietnã terminou, em 1975. A partir de então, Jonni começou a notar algumas mudanças no comportamento dele. “Ele se transformou em uma pessoa fechada, pouco comunicativa e muito compulsivo com relação à nossa casa. Nós costumávamos sair, nos divertir e rir juntos. Tudo isso desapareceu. Eu amei o meu marido e nós tivemos uma ótima vida sexual. Mas eu simplesmente não conseguia mais arrastá-lo para fora de casa. Foi difícil, eu não sabia o que estava acontecendo.”
Foi só em 1984, depois da aposentadoria dele, que todo o mistério foi desfeito. “Uma noite, depois do jantar, em lágrimas, ele finalmente deixou escapar um segredo que carregava há anos. Desde os três anos, David se sentia diferente dos meninos da sua idade.”
“Isso foi no final dos anos 1940, início dos 1950. Transgênero nem fazia parte da nossa linguagem”, explicou Angela, 72, nome adotado legalmente por David. “Então, me peguei pensando, ‘Bom, eu gosto de mulher’. Sempre gostei de meninas. Entretanto, não me sinto como o típico homem conquistador. Eu realmente me sentia bem quando vestia roupas de femininas.”
Na mesma noite, Angela confessou à esposa que precisava, a partir daquele momento, se vestir como mulher. A princípio, Jonni se viu atordoada. Mas foi o seu amor pelo marido que lhe estimulou a descobrir uma maneira de fazer o casamento funcionar.
UMA NOVA COMPREENSÃO
Em 1997, o casal decidiu dar início a uma terapia. Uma das questões que tinham par trabalhar com a terapeuta era a raiva sentida por Jonni. Mas não era algo sobre a transição de seu companheiro e, sim, sobre o fato de Angela insistir para que a esposa se vestisse de uma maneira cada vez mais feminina.
“Quando David estava em seu estágio mais compulsivo, nós nunca brigamos sobre dinheiro ou sobre a criação da nossa filha, mas sempre discutíamos sobre a minha aparência. Ele queria que eu me vestisse com babados e com um estilo mais girly. Eu encarava isso como uma crítica. Durante a terapia, nós finalmente descobrimos que ele estava projetando em mim tudo o que gostaria de ser.”
Para Angela, o acompanhamento profissional lhe permitiu descobrir o seu verdadeiro eu. “Eu acordava cedo, vestia minhas roupas femininas, lia o jornal, tomava café e escovava os dentes”, conta. “Depois, eu me trocava novamente, colocava minhas roupas masculinas e saia para dar aula. Assim que chegava em casa, trocava as minhas roupas pelas de mulher. Viver como um homem pela manhã era como atuar, não era algo natural para mim.”
Foi só em 1999, que David finalmente escolheu o nome Angela e passou a tomar hormônios femininos. “A medida que entendi que David realmente precisava ser uma mulher, senti que poderíamos seguir em frente, porque eu queria ter a pessoa que eu amo de volta”, declarou Jonni. “Com os hormônios, ele voltou a ser quem era, risonho e pronto para fazer parte do mundo de novo.”
No ano que se seguiu, o casal precisou passar por diversas adaptações e deu a notícia aos parentes. “Entre as mudanças estava até a mudança do gosto do beijo dela e do cheiro da sua pele”, disse Jonni sobre Angela.
“Certa noite, eu acordei de um sono profundo achando que tinha alguém novo na minha cama. Essas pequenas coisas com as quais você se acostuma sobre as pessoas próximas não estavam mais lá. Mas nós rimos muito sobre tudo isso depois.”
A família, incluindo a filha do casal, aceitou toda a transformação com muito amor. No início, tiveram algumas dúvidas, mas diante da certeza do sentimento que sentiam uma pela outra, entenderam que seguiam no caminho certo. “Fomos muito abençoadas, porque muitos transexuais perdem a família toda”, disse Jonni.
A VIDA COMO DUAS MULHERES
Pouco tempo depois, em janeiro de 2001, Angela se submeteu a uma cirurgia completa de mudança de sexo. E tem sido uma adaptação constante, admite Jonni. “Eu tive mais problemas com os seios dela do que com a mudança genital”, revela. “Eu estava acostumada a colocar a cabeça nos ombros dela antes de dormir. Esse era o meu lugar, mas agora existem peitos lá. Mas nós também temos nos divertido muito sobre as descobertas sexuais. Temos mais rido do que chorado.”
E sobre o fato de as pessoas as considerarem lésbicas, Angela é categórica: “Nós começamos um relacionamento como marido e mulher. Embora agora eu seja uma mulher muito feliz, não me sinto bem dizendo que sou lésbica.”
“Eu digo às pessoas que sou uma lésbica heterossexual”, brinca Jonni. “Me casei hetero, mas agora estou casada com uma mulher. Então, claro que sou lésbica. Mas continuo amando a mesma pessoa.”
A trajetória das duas tem implicado em alguns impedimentos legais, como a dificuldade de manter a pensão militar, já que as Forças Aéreas não oferecem benefícios aos cônjuges de transexuais. “Troquei meu nome, mas deixei meu sexo como masculino”, explica Angela. “Caso contrário, Jonni perderia o convênio médico. Eu realmente não me importo, desde que ela esteja bem.”
Elas se apoiaram ainda mais quando Jonni foi diagnosticada com câncer de mama, em outubro de 2009, e teve que passar por cirurgia seguida de quimioterapia e radioterapia. Angela permaneceu ao lado dela durante todo o tratamento. “Teria sido muito mais difícil sem ela”, admite Jonni.
“Por ter sido um homem careca, tive que usar perucas desde a minha transição – então, quando o cabelo de Jonni comelou a cair, nós nos divertimos comprando perucas juntas”, conta Angela. “Aprendi que a Jonni é muito mais forte psicologicamente do que muitas pessoas. Ela é uma guerreira.”
Elas completam 49 anos de casado em julho e reconhecem o quão rara é a relação que têm. A maioria dos casais acabam se separando. “Muitas mulheres se sentem enganadas ou ressentidas, acham que perderam seus maridos”, diz Jonni. “Eu ganhei. Sou grata por ser a esposa da Angela, porque tive de volta a pessoa que sempre amei. Somos abençoadas.”
E Angela acrescenta: “Nós ainda estamos juntas, cuidando bem uma da outra e nos amando. Há um sentimento de contentamento, conforto e alegria.”