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Fãs de games, mulheres relatam ameaças de morte e estupro em universo dominado por homens

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Daniela, 25, sofre assédio pesado enquanto joga. Na indústria de videogames, tramas com poucas personagens femininas, como a de God of War (na projeção), são comuns (Foto: Gabriel Rinaldi)

Todos os sábados, a brasiliense Jhulia Sallviano, de 19 anos, estudante de serviço social, aproveita a tarde livre para fazer hidratação nos cachos. Passa um condicionador, veste a touca térmica, liga seu aparelho de videogame e se distrai com Skyrim, um jogo de fantasia medieval em que guerreiros de armaduras lutam com dragões e outras criaturas mitológicas.

Cada participante escolhe um personagem e encontra, no ambiente virtual, milhares de usuários. Os jogos são online e neles é possível conversar com estranhos pelo microfone, fazer amigos e combinar estratégias – tudo a sós no sofá de casa.

Jhulia começou a gostar de games aos 4 anos. Mas, ultimamente, toma dois cuidados antes de iniciar a maioria das sessões. Com o controle em mãos, elege um apelido que poderia ser de um homem – bem diferente do “princess” que costumava usar dois anos atrás – e se certifica de que o microfone está desligado. Não quer que outros jogadores saibam que há uma mulher entre eles, e tem motivos para isso.

“Era xingada o tempo inteiro. Diziam para eu ir lavar louça ou buscar uma cerveja pra eles. Mas fiquei com medo mesmo quando me ameaçaram de estupro”, diz.

O assédio começou no fim de 2013, assim que Jhulia passou a jogar online e usar o
headset, acessório que combina fones de ouvido e microfone. Em uma de suas primeiras lutas, derrotou um jogador americano que, assim que foi vencido, disse que queria vê-la nua.

“Ele escrevia: ‘Dizem que as brasileiras têm uma bunda incrível, é verdade? Mostra!’. Fiquei muito constrangida.” Num chat que aparece na tela da TV, o jogador também pediu para ver os seios de Jhulia e não parou de insistir até que foi bloqueado por ela.

Atitudes como essa apareceram em todos as partidas seguintes. “Não sei jogar calada. Então comemorava meus golpes e reclamava das manobras sujas. Aí, assim que ouviam minha voz, diziam: ‘É mulher? Sai daqui!’.” A coisa ficou pior quando Jhulia ganhou o selo de “mestre” (para consegui-lo, é preciso conquistar 15 outros selos anteriores em disputas contra adversários de nível mais avançado) e passou a participar de campeonatos e galgar boas posições.

"Eu venci a primeira luta, ele a segunda e, quando venci a terceira, ele não aceitou. Voltou uns minutos depois e disse que sabia que eu morava em Brasília, que ia me achar e me estuprar."
Jhulia Sallviano, estudante

No início de 2014, enfrentou um rapaz numa luta importante, que daria muitos pontos ao vencedor. Por disputar com uma “mestre”, o oponente teria mais pontos que o normal caso derrotasse Jhulia.

“Eu venci a primeira luta, ele a segunda e, quando venci a terceira, ele não aceitou. Voltou uns minutos depois e disse que sabia que eu morava em Brasília, que ia me achar e me estuprar. Desliguei o aparelho na hora e fiquei deitada na cama, em choque, pensando no que faria caso ele conseguisse minhas informações pessoais. Senti muito medo.”

Depois de conversar com uma amiga, Jhulia denunciou a ameaça à empresa que opera o game, mas recebeu uma resposta padrão, em inglês, dizendo que o caso seria avaliado. “Fiquei muito nervosa e, pela primeira vez, pensei em desistir.” Para quem jogava todos os dias, as duas semanas de quarentena que ela se impôs foram longas. Mal voltou e o assédio recomeçou.

Jhulia ficou abalada. Só conseguiu restabelecer a rotina online com outra identidade e sem o microfone. Mas os competidores viam o silêncio e provocavam: “‘É mulher? Por que não responde? Se não é mulher, é viado ou traveco!’, diziam.” Foi a gota d’água para que ela, muito triste, desistisse das partidas online e dos campeonatos de que tanto gostava. Seria difícil competir sem aperfeiçoar os golpes com estranhos.

PRESENÇA FEMININA

 

O assédio e as agressões são uma realidade cotidiana para as mulheres que escolhem o videogame como passatempo, mesmo que elas sejam cada vez mais numerosas. Entre 2013 e 2014, a presença feminina nos jogos cresceu 6% no Brasil, chegando a 47,1% do total, de acordo com a pesquisa Game Brasil 2015, da Sioux (companhia desenvolvedora de jogos). A principal faixa etária é de 25 a 34 anos.

Segundo o Ibope, são quase 30 milhões de mulheres com ao menos um videogame em casa. O número faz parte de um crescimento geral do setor, que é muito mais rentável que Hollywood. Em 2013, as bilheterias da indústria do cinema lucraram US$ 35,9 bilhões, enquanto as vendas de videogames foram praticamente o dobro disso: US$ 70,4 bilhões.

Nesse cenário, a imagem típica do jogador (adolescente, menino, antissocial) ficou para trás. A idade média dos compradores de games nos Estados Unidos é de 35 anos e, assim como aqui, metade deles são mulheres. Esse novo posicionamento, mais adulto, é reflexo de sequências cada vez mais elaboradas.

São escritas, inclusive, por roteiristas vencedores de Oscar, como é o caso do canadense Paul Haggis, dos premiados "Menina de Ouro" (2004) e "Crash: no Limite" (2004), que se tornaria corroteirista do jogo "Call of Duty: Modern Warfare 3", e contam com gráficos impressionantes que deixam Hollywood (e jogos clássicos como Pac Man e Mario Bros) no chinelo.

"Um jogador falou que ia me achar e me estuprar", diz a estudante Jhuliana Sallviano (Foto: Gabriel Rinaldi)
AGRESSÕES VIRTUAIS

 

Ainda que em franco crescimento, o mundo dos games insiste em rechaçar as mulheres. Nas histórias, o posto de herói é sempre reservado aos homens, com exceção de figuras jovens e hipersexualizadas como Lara Croft, de "Tomb Raider" (que, na adaptação para os cinemas, ganhou o corpo de Angelina Jolie).

Do outro lado da tela, o mesmo preconceito toma forma. É o que confirma a tradutora paulistana Daniela Rigon, 25 anos e fã de videogame desde a infância. Comentarista do tema em sites especializados, ela passou a narrar campeonatos ao vivo há um ano. Desde o início, era assediada pelos ouvintes do canal. “Às vezes, fico bravíssima.”

"Ele disse que se masturbava com a minha foto"
Daniela Rigon, tradutora

A coisa passou dos limites quando um deles escreveu publicamente que havia se masturbado com uma foto dela. Daniela engoliu em seco mas não parou a narração, pois não queria interromper a transmissão do jogo, que tinha 500 espectadores. “O pior efeito desses ataques é que eles mexem com a minha concentração”, diz.

E não só a dela. No início do ano, enquanto narrava um embate entre um time masculino e outro feminino (que os rapazes venciam), um dos espectadores comentou: “Elas estão sendo estupradas!”. O jargão, por incrível que pareça, é comum no meio e serve para dizer que uma equipe está levando a pior.

Indignada, Daniela não deixou barato e falou que aquele termo não deveria ser usado. O rapaz insistiu: “Ok, elas estão sendo violadas”. “Rebati: ‘É a mesma coisa’, mas ele ficou furioso e começou a me xingar. Até que me mandou calar a boca e ficar quieta. No meu canal!”

O canal a que ela se refere é um espaço dentro do site Twitch, voltado exclusivamente a transmissões ao vivo de partidas de videogame. Em agosto passado, depois de atingir a marca de 55 milhões de visitantes num único mês, o Twitch foi vendido por US$ 970 milhões à Amazon, gigante que disputava com o Google a compra da página.

Daniela “baniu” a participação do agressor, que voltou logo em seguida com outro nickname para dizer que ele estava certo e ela, errada – foi banido novamente. “Chorei de raiva.”

A tradutora diz que as agressões constantes causam um “cansaço mental” desafiador. Desde 2012 usando games online com nickname feminino, ela não começava o jogo sem ouvir coisas do tipo: “Tem menina no time? Já perdeu”, ou então: “Volta para a cozinha, volta”.

Muitos perguntavam se o namorado havia jogado na conta dela – a “única explicação plausível para eles” para uma pontuação tão alta. “Não é só no meu canal que esse machismo aparece. É em todos os lugares. Só continuo porque gosto muito de games.”

Como jogadora, ela sente falta de mais personagens femininas e diversidade. Fez uma contagem no seu jogo preferido, o Dota2, e encontrou apenas dez mulheres em uma lista de quase cem. Todas têm seios grandes e cintura marcada, enquanto os homens têm formas variadas – de meninos bonitos até monstros.

“As personagens femininas são como as princesas da Disney, só mudam o cabelo e o vestido. E, além de serem sexy, só servem para dar suporte aos protagonistas, não para lutar. É muito machismo.”

A blogueira Anita Sarkeesian comenta cena do game GTA: campeões de vendas traz mulheres como objetos de consumo ou donzelas que precisam ser salvas, e só (Foto: Divulgação / Feminist Frequency)
HOMEM É QUEM MANDA

 

Apesar de terem sido criados nos anos 50, os videogames só se tornaram populares mesmo depois do “crash de 1983”. Na época, computadores mais baratos começaram a roubar clientes de empresas como a Atari, que tinha 80% do mercado. Isso obrigou a indústria a se reinventar (dois anos depois, o negócio foi dominado pela Nintendo), e nessa renovação houve uma guinada em direção ao público masculino.

“Algumas empresas se aproximaram do negócio de gadgets para homens, que era forte e seguro”, explica o diretor editorial do portal de games Overloadr, Henrique Sampaio.

Grande parte dos campeões de vendas traz mulheres como objetos de consumo ou donzelas que precisam ser salvas, e só. Uma das pioneiras a travar uma luta contra o problema é a blogueira e crítica de mídia americana Anita Sarkeesian, 32 anos.

“Os cenários colocam os homens no comando, enquanto as mulheres são objetos sexuais”, diz em um dos vídeos que postou em seu canal do YouTube, o Feminist Frequency, cujos episódios mais populares passam de 2 milhões de acessos e são famosos por dissecar as histórias de cada game. Para ela, todos os grandes jogos da indústria falham nesse mesmo ponto.

“Não estou desistindo. Esse assédio às mulheres na tecnologia tem que parar!"
Anita Sarkeesian, blogueira

As críticas fizeram de Anita o nome mais falado do chamado “#gamergate”, um escândalo que aconteceu em 2014 e que envolveu jogadores, feministas e jornalistas. O caso rendeu linchamentos virtuais de mulheres que ousavam denunciar o machismo na área. Anita passou a receber ameaças constantes de morte e estupro, tanto nas redes sociais quanto na própria casa.

Em um dos episódios mais radicais, precisou cancelar uma palestra na Universidade do Estado de Utah (USU), em outubro de 2014, depois que a instituição recebeu uma ameaça de ataque. “Vai ser o mais sangrento da história americana”, dizia a mensagem. A notícia correu os jornais e, quando desceu do avião, Anita viu e-mails de amigos perguntando se ela estava bem.

Como a faculdade não tinha meios de controlar a entrada de armas, ela não teve coragem de sair do aeroporto. A pesquisadora já vinha sofrendo ameaças diretas antes disso. Em agosto, passou a receber tweets de agressores que tinham seu endereço e diziam estar na porta de sua casa com armas apontadas para matá-la assim que colocasse os pés para fora.

Anita se abrigou na casa de amigos, mas avisou via Twitter: “Não estou desistindo. Esse assédio às mulheres na tecnologia tem que parar!”. Depois do episódio, Anita voltou para casa e continuou trabalhando. No fim de março, lançou o primeiro vídeo de uma nova série, desta vez para destacar os jogos que, excepcionalmente, representam mulheres de maneira construtiva. Procurada por Marie Claire, Anita não quis comentar o assunto.

“A polêmica do #gamergate confirmou as práticas absurdamente machistas desse mercado”, diz a doutora em semiótica Renata Gomes, especializada em narrativas de jogos. Para a brasileira, uma das pesquisadoras que são referência no estudo dos games, no entanto, o escândalo também marcou um avanço feminista.

“O que aconteceu foi uma disputa por mais democracia e diversidade”, diz. “Só assim, com mais debate, pessoas que amam jogos terão espaço para usá-los com segurança.”


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