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Eu, Leitora: “Vivi a tragédia que uma vidente leu na mão do meu marido”

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"Consegui arrastar meu filho até o carro. Comecei a dirigir e ouvi o estrondo", relata empresária (Foto: Think Stock)

Eu e Carlos morávamos a duas quadras de distância, numa pequena cidade do Paraná. Ele era bonito, namorador e conquistava várias meninas da região. Eu quase não podia sair de casa e era a única adolescente do bairro a não frequentar os bailes da época – meu pai não deixava. Quando me viu pela primeira vez na rua, Carlos disse que pensou: ‘Vou casar com essa mulher’. Eu tinha 17 anos e, com autorização do meu pai, começamos a namorar.

Ele era divertido e gostava de contar histórias. Uma delas era sobre uma cigana que encontrara na praia, em Santa Catarina, alguns anos antes. A mulher o havia abordado para ler sua mão. Carlos agradeceu e recusou, pois não acreditava nessas coisas. Ela insistiu, disse que não cobraria nada. Ele topou, e a vidente enxergou o seguinte: Carlos teria cinco filhos, se casaria até os 24 anos e morreria mais jovem do que seu pai – que faleceu aos 58 anos. Antes, porém, se tornaria um homem muito rico. A moça deu absoluta certeza dos fatos, mas ele não deu bola.

Depois de dois anos e pouco de namoro, Carlos fez 24 anos e esperava os 25 para desmentir a primeira premonição da vidente. Fazia piada com o que acreditava serem os erros dela. Afinal, eu era muito nova e não tínhamos nenhuma previsão de subir ao altar. Mal podíamos imaginar que, em dois meses, eu estaria grávida e vestida de noiva, entrando na igreja para me tornar sua mulher. Juntos, tivemos quatro filhos: Marcela, Pedro e as gêmeas Cláudia e Cecília (hoje com, respectivamente, 28, 22 e 20 anos).

“A vidente enxergou o seguinte: Carlos teria cinco filhos, se casaria até os 24 anos e morreria mais jovem do que seu pai – que faleceu aos 58 anos. Antes, porém, se tornaria um homem muito rico"
 

Estávamos tão satisfeitos com a família formada que, quando as duas últimas eram pequenas, decidi me submeter a uma laqueadura. Eu tinha 30 anos. ‘A cigana errou’, divertia-se Carlos. Afinal, como ele poderia ter os cinco filhos previstos se a mãe de seus quatro herdeiros estava fazendo uma esterilização definitiva? Anos depois, eu atendi o telefonema mais estranho da minha vida. Do outro lado da linha, uma voz feminina disse apenas: ‘Um fantasma está voltando’. Arrepiada com aquele cumprimento nada usual, passei o aparelho para Carlos.

Quem falava era uma velha conhecida, com quem meu marido tivera um romance enquanto namorávamos. Ela dizia ser mãe de um filho dele, na época com 19 anos, a mesma idade da nossa filha mais velha. Esse rapaz sofria por ser viciado em drogas (detalhe que descobrimos mais tarde) e estava decidido a conhecer o pai. Fiquei em choque, mas sugeri trazer João (hoje com 28 anos) para nossa casa. Morávamos em um apartamento apertadinho, com quatro adolescentes, e agora a vida nos apresentava mais um. A vidente tinha acertado novamente.

A essa altura, eu começava a me questionar se o resto da premonição se tornaria realidade. Meu sogro, que era um agricultor modesto, ganhou uma grande indenização da Usina Hidrelétrica de Itaipu, por danos que a empresa causara ao seu terreno. Ele dividiu o dinheiro entre os três filhos e se mudou para Mato Grosso para comprar terras.

Nós o seguimos e, assim, Carlos deixou de ser um pequeno produtor rural para virar um bem-sucedido fazendeiro.
A empresa que ele criou com o pai emprega hoje 180 pessoas e detém três fazendas de soja e algodão. O patrimônio cresceu tanto que é, atualmente, quatro vezes maior do que o deixado por meu sogro.

“Anos depois, eu atendi o telefonema mais estranho da minha vida. Do outro lado da linha, uma voz feminina disse apenas: ‘Um fantasma está voltando"
 

No início de 2014, Carlos estava com 54 anos e começou a se preocupar com a última previsão da cigana, a mais dramática de todas. Será que ele faleceria mesmo antes dos 58, idade em que seu pai se fora? Sabia que ele tinha medo de morrer. Queria os filhos morando e trabalhando juntos.

Mas esse sonho parecia muito distante naquele período cheio de acidentes estranhos. Em fevereiro, Cláudia, uma das gêmeas, foi atropelada por um ônibus. Fiquei a seu lado no hospital por longos 50 dias. Ela mal se mexia e quase perdeu a perna. Três meses depois, Cecília, sua irmã gêmea, quebrou o vidro de um armário e lesionou o tendão do pé de forma grave. De novo, fiquei ‘internada’ com a outra caçula.

No começo de setembro, Carlos e nosso filho Pedro embarcaram para uma viagem organizada pela farmacêutica Bayer, na Alemanha. O objetivo era visitar indústrias alemãs com um grupo de fazendeiros brasileiros. Uma semana depois, eles voltaram para Cuiabá. O voo pousou às 11h30. Nosso avião particular os esperava para trazê-los de volta à fazenda, que fica a 300 quilômetros da capital. Eles pousariam em Tangará da Serra, perto de onde moramos, às 12h30.

Apesar do pé engessado, Cecília foi comigo até o pequeno aeroporto esperar nosso monomotor Cessna de quatro lugares. Era um dia quente e eu havia deixado o motor da caminhonete ligado para manter o ar condicionado a toda potência. Víamos dali os jatinhos de nossos amigos chegarem. Todo mundo desceu e eu fiquei só com ela e o único funcionário do aeroporto. Foi aí que avistamos nossa aeronave no horizonte, aproximando-se da pista, mas numa altura fora do comum.

O avião já estava quase no perímetro de aterrissagem mas se mantinha alto, a uns 300 metros do chão. Como voo bastante, sabia que aquilo não era normal. Na hora, concluí que o piloto arremeteria. Enquanto esperava a manobra, vi o avião dar um solavanco. De repente, mais um. E então o vi tremer, tremer e apontar para cima. Subiu, virou o bico e começou a cair na diagonal. Em alguns segundos, estava no chão a uns 2 quilômetros de mim.

Um jato Cessna, semelhante ao do acidente com o marido da empresária: morte foi prevista por uma cigana (Foto: Think Stock)



Cecília e eu nos olhamos. ‘Caiu?’, perguntamos uma para a outra. Não parecia verdade. Então, ela gritou: ‘Caiu, mãe!’. Coloquei as mãos no volante e comecei a dirigir em direção a ele a mil por hora. Quando vi a fumaça, me desesperei. Saí da caminhonete correndo e Cecília pulou do carro e foi se arrastando.

O piloto, Josias, de 31 anos, havia conseguido sair pela janela e estava ao lado da aeronave. Meu filho Pedro, que havia viajado no banco de trás, também estava fora, muito machucado. Ele precisou chutar o banco do piloto até quebrá-lo para escapar da lataria. Carlos viajara na frente. Como o avião caiu de lado, o motor desabou exatamente nas pernas dele.

“Quando vi a fumaça, me desesperei. Saí da caminhonete correndo e Cecília pulou do carro e foi se arrastando"
 

Pedro tentava desvencilhar o corpo do pai daquele pedaço fumegante de ferro. Tentava puxar Carlos com uma mão e segurava o próprio peito com a outra. Sua pele sangrava muito e ele tinha a clavícula e o pé quebrados, de tanto chutar o banco. Meu marido não reagia. De repente, Pedro gritou: ‘Saia daqui, mãe. Vai explodir!’. Eu olhei pro Carlos, com desespero, e disse: ‘Mas e o pai?’. ‘O pai não sai mais’, ele respondeu. Aquilo doeu como uma facada no coração. Tentei puxá-lo, mas ele já estava morto.

Com a pancada e o motor fervendo, não tinha mesmo como resistir. Hoje penso que foi melhor assim. Não queria que ele assistisse àquele horror sabendo que não sairia de lá vivo. Quando os bombeiros chegaram, foram necessários mais de 30 minutos para cortar o avião e retirar seu corpo de dentro.

Atônita, vi que algumas pessoas estacionavam na estrada, bem em frente ao aeroporto. Saíam dos carros e, com seus celulares, filmavam a nossa tragédia – no mesmo dia, vários vídeos foram parar na internet. As chamas começavam a tomar conta do avião, até cobrir a aeronave inteira. Apoiado no meu ombro, tentando caminhar, Pedro falou: ‘Vamos embora, esse avião vai explodir com a gente aqui’. Consegui arrastá-lo até o carro, comecei a guiar e, depois de 10 metros percorridos, ouvi a explosão. Nessa hora, travei.

Desesperada, pisei no freio e fiquei ali, vendo as chamas subirem. ‘Mãe, você vai matar todos nós. Vamos!’, Cecília ordenou. Acelerei. Enquanto conduzia o carro, eu gritava, gritava e cravava as unhas no volante. Foi o pior momento da minha vida. Pedro foi internado na UTI e saiu no dia seguinte para ir ao velório do Carlos. Meu marido tinha, dentro do caixão fechado, apenas 60 centímetros. Estava completamente queimado. O piloto, atendido pelo resgate, ficou 15 dias no hospital, mas morreu devido a uma rotura no baço.

“Pedro gritou: ‘Saia daqui, mãe. Vai explodir!’. Eu olhei pro Carlos, com desespero, e disse: ‘Mas e o pai?’. ‘O pai não sai mais’, ele respondeu"
 

Até hoje, tenho muitos pesadelos. Tudo aconteceu muito rápido, nem tive tempo de ficar em casa chorando. No dia seguinte ao enterro, fui com meus filhos ao escritório da empresa para determinar como as coisas seriam a partir dali. Nessa hora, ninguém tem dó. Muitas pessoas quiseram tomar a fazenda, alegando negócios que tinham com Carlos. Foi preciso muita força para não deixar a casa cair, conseguir autorização judicial para acessar as contas e não atrasar pagamentos. Evitar o colapso, enfim.

No nosso caso, cada um assumiu uma responsabilidade. Eu sou a presidente da empresa, o Pedro faz compras e vendas, Marcela toma conta da parte jurídica e do RH, meu genro, Luiz, faz as planilhas de controle, Cláudia e Cecília são responsáveis pelo financeiro. Só o João não trabalha porque está internado, ainda lutando contra seu vício. Não é fácil. Cuido das fazendas, tenho três academias de dança e estou montando a quarta. Vivi um casamento feliz de 30 anos e muita cumplicidade, que acabou em um instante.

Se algo de bom saiu dessa tragédia foi o fato de meus filhos estarem comigo novamente. Pedro morava nos Estados Unidos até pouco antes do acidente, e voltou. As meninas viviam em Curitiba e agora estão aqui em Mato Grosso de novo. Moramos todos na mesma casa, estamos sempre perto um do outro. Falta o Carlos, claro, e a cena do acidente passa na minha mente umas dez vezes por dia.

Mas uma das coisas que me ajudaram a virar o jogo foi a dança, que pratico desde jovem. Aos 50 anos, o lado artístico me alimenta, mostra que ainda posso fazer algo pelo mundo. Estou montando um corpo de baile beneficente, crio espetáculos, tenho um projeto para adolescentes bolsistas. E danço. Passo pelo menos uma hora e meia por dia fazendo isso.

A empresa não sofreu nenhum baque. Plantamos 15 mil hectares, está tudo redondo. Tem horas em que não consigo ver sentido em nada. Mas aí lembro dos meus filhos e das crianças carentes que precisam de mim. Então, ergo a cabeça e levanto para mais um dia.”

*Os nomes foram trocados a pedido da entrevistada


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