“Não use maquiagem. Deixe as coisas de menina para mais tarde.” “Não tenha medo de ser diferente, de não seguir os padrões.” “Não precisa competir com outras meninas. A gente está todo mundo na mesma.” Criadoras de alguns dos principais canais femininos do YouTube brasileiro encararam as câmeras esta semana não para mostrar um novo game, ensinar uma receita ou uma nova maquiagem, mas para falar consigo mesmas, 10 ou 15 anos mais novas.
A campanha #DearMe, ou #QueridaEuMesma, no ar neste fim de semana, busca estimular a colaboração entre mulheres e inspirar novas gerações a expressarem suas ideias na internet, onde ainda predominam os vídeos feitos por homens – eles comandam nove dos dez canais mais populares. Marie Claire acompanhou as gravações no novo estúdio do site de compartilhamento de vídeos, no bairro paulistano do Bom Retiro.
“Não desista de andar de skate, você vai se arrepender”, diz Dani Noce, 31, que comanda o I Could Kill for Dessert, terceiro maior canal de gastronomia, a Dani Noce, 16. Atrás das câmeras, Danielle Menezes, 22, e Yasmin Santos, 20, sorriem e concordam com a cabeça. São elas que comandam a câmera e a iluminação no estúdio, hospedado dentro do Instituto Criar, ONG fundada pelo apresentador Luciano Huck, após concluírem os cursos técnicos em 2013.
“Como plataforma, há uma predominância ainda do sexo masculino, mas existe um incentivo, muitas meninas começam a despontar em várias áreas ao ver outras fazendo vídeos”, diz o gerente de conteúdo do YouTube Space, Otávio Albuquerque, ele mesmo um dos criadores de um dos maiores canais de culinária brasileiro, o Rolê Gourmet, junto com PC Siqueira.
Estranhas num ninho ainda dominado pelos meninos, Malena Nunes, 20, e as meninas que comandam o Garotas Geeks, lembram que, há alguns anos, usavam apelidos masculinos para jogar games on-line. “Até hoje, muitas vezes em que você vai jogar on-line usando seu nome feminino, aparecem ofensas: ‘Está aqui porque quer aparecer, quer dar’”, diz Tamirys Seno, 26, do canal.
Um post publicado pelo grupo sobre misoginia on-line e o caso da gamer Anita Sarkeesian, que sofreu ameaças de morte e estupro por suas posições contra o sexismo no universo dos games, foi um dos mais comentados.
“Passamos a fazer publicações sobre questões de gênero e vimos como alcançamos as pessoas. Muitas meninas vieram dizer que se identificaram, que perceberam que não estavam fazendo nada de errado. Mas também homens dizendo que estávamos tirando a liberdade de expressão deles”, conta Barbara Jacinto, 25, outra das Garotas Geeks. O canal de vídeos, um dos primeiros do país sobre games e cultura pop feito totalmente por mulheres, tem uma frequência 70% feminina.
Viciada em vídeo games desde criança, Malena Nunes, 20, criadora e apresentadora do malena0202, que reúne 976 mil fãs, confirma que o número de meninas vem crescendo. “Hoje, tenho 44% de meninas. No início, não chegava a 20%”, conta sobre o início do site em que comenta games, em 2012.
A estudante de rádio e TV, que paga a faculdade com os ganhos obtidos pelo canal, lembra a época em que a mãe era sua única companhia para jogar. “As mulheres estão percebendo que vídeo game é bom. Está deixando de ser coisa de menino. Não sou mais a única entre as meninas.”
Apesar de admitir ter relutado a mostrar a cara nos vídeos, Malena acredita que sua paixão por games e seu jeito debochado de apresentar os vídeos a protejam de ataques machistas. “Antes diziam que eu só estava crescendo no YouTube porque era menina, mas nunca tive muitos haters [os detratores nas redes sociais].”
Para a confeiteira Dani Noce, cujo canal I Could Kill for Dessert já se transformou em programa de TV e livro, mesmo a gastronomia é uma área ainda dominada por homens. “Lá fora, já tem mulheres 'gigantes', como a Zoella [britânica que comanda o canal homônimo sobre moda, beleza e lifestyle], mas aqui ainda há a mentalidade de que a internet é algo feito de homens para homens. Na culinária, os dois maiores canais são masculinos.”
DEBATE VIRTUAL
Além de meninas cujos vídeos se destacam nas áreas de tecnologia, humor, livros, viagens e culinária, foram escaladas mulheres de destaque no debate virtual de ideias sobre o mundo feminino, como a escritora e roteirista Clara Averbuck, convidada para comandar um debate sobre feminismo aos alunos do Instituto Criar.
Veterana na rede, a escritora, que começou escrevendo blogs que conquistaram milhares de seguidores e está prestes a lançar o sétimo livro, relaciona os ataques sexistas a uma conquista cada vez maior de expressividade das mulheres no mundo virtual. “Naquela época era diferente, existiam os xingamentos, mas nada muito sério. Hoje há ameaças reais de estupro e agressão, publicam o endereço das pessoas.”
Para Clara, enquanto muitos meninos ainda reproduzem o discurso de uma sociedade misógina, a nova geração de garotas na rede estão cada vez mais feministas, falando abertamente sobre suas experiências e se defendendo. Se pudesse voltar no tempo para falar com seu eu adolescente, a escritora diz que a livraria da pressão de querer agradar os homens.
“Existem vários níveis de se importar com a opinião dos outros, não só o de exibir o corpo malhado e a roupa bonitinha. O meu era querer que eles me achassem uma escritora foda. E fazia isso desprezando outras meninas. Morro de vergonha desse comportamento hoje em dia.”