Ser sapatão vai muito além de gostar de ir para cama com outras mulheres. Ser sapatão ultrapassa sentir prazer ao tocar um corpo feminino. Ser sapatão escapa da capacidade de gozar na boca de outra mulher, ou de ter ainda mais prazer levando uma mulher ao prazer. E escapa também de enxergar o erótico apenas no que é feminino.
Ser sapatão é amar mulheres a ponto de perceber que só seremos verdadeiramente livres quando não existir mais nenhuma mulher em situação de opressão. É estar atenta a mulheres que brigam por moradia nas cidades e por aquelas que lutam pelo direito à terra em zonas rurais. É ser capaz de se aliar a mulheres indígenas que hoje choram por suas reservas queimadas, entender que as crianças brasileiras são responsabilidade de todas e de todos nós, e que cabe à mulher o direito sobre o próprio corpo.
Ser sapatão é ir assistir qualquer filme com Juliette Binoche, mesmo os piores deles, e aplaudir quando ela entra em cena. É sentir um arrepio correr o corpo todo quando uma mulher brilhante fala, tendo ela 18 ou 80 anos. E perceber que, na escala do erotismo, o grau máximo é a inteligência.
Ser sapatão é já ter visto Personal Best pelo menos uma vez na vida e ter sonhado em um dia ir para cama com Linn da Quebrada. É saber que só estaremos livres do patriarcado quando conseguirmos desenvolver uma linguagem que possa ser apropriada por travestis e professoras; por operárias e donas de casa, por feministas e domésticas, por indígenas e empresárias. Ser sapatão é lutar para que o gozo amplo e irrestrito seja um direito de toda a mulher.
Ser sapatão é manter as unhas curtas. Ou longas. Pintadas. Ou sem nada. Ser sapatão é ter a capacidade de manter sua ex por perto, sabendo aquele é um porto seguro onde você poderá deixar seu barco quando as tempestades chegarem. É se deitar com outra mulher tendo consciência de que talvez não haja no mundo força mais poderosa do que dar prazer a ela.
É saber que podemos falar alto, que podemos rir como quisermos, que podemos ser desagradáveis e sentar com as pernas abertas. Que podemos tatuar o corpo inteiro, raspar a cabeça, engordar ou emagrecer. Ser sapatão é ver uma mulher bonita na rua e olhar dentro dos olhos dela com um tipo de curiosidade que tenta entender quais batalhas ela está lutando, o que a faz rir, o que a faz chorar, o que a faz vibrar, o que a faz gozar.
Ser sapatão é perceber que somos nossas florestas, e os espíritos que nela vivem. É não mais se deixar interromper, não mais se deixar calar, não mais se deixar abusar. É gritar vendo outra mulher ser vítima de uma violência, verbal, física ou sexual.
Ser sapatão é arregaçar as mangas e mergulhar na luta antiracista liderada por feministas negras. É olhar Djamila Ribeiro e pensar "que grande lástima que um mulherão desses não seja lésbica", é saber que ética é o exercício da responsabilidade e que a luta política é a luta por formas diferentes de vida - a nossa, por exemplo.
É não medir esforços para destruir uma sociedade que puna criminalmente a mãe que deixou o filho sozinho por cinco minutos e ignore que o pai dessa criança a tenha abandonado há anos. É ler Rosa Luxemburgo, Audre Lorde, bell hooks, Angela Davis, Paul Preciado, Amara Moira, Ursula Le Guin, Adrienne Rich, Virginia Woolf, Clarice Lispector, Silvia Federici, Judith Butler.
Ser sapatão é se deixar penetrar. Por uma história, por uma emoção, pelas mãos e bocas de outra mulher. É entender que a liberdade é uma tarefa e que uma sociedade que proíbe as condições para que uma mulher se prostitua e que ao mesmo tempo consome ferozmente o produto da prostituição é uma sociedade doente.
É saber que se um país lidera o consumo de pronografia LGBT e lidera também o assassinato de pessoas LGBT então esse país precisa ir para o divã tratar de sua sexualidade sublimada.
É entender que o que mantém o mundo do homem branco heteronormativo em movimento é a colossal quantidade de trabalho doméstico remunerado e não remunerado executado por mulheres dentro de casa.
É saber que ser mulher é uma ideia, uma construção, e que há mulheres sem útero, sem vagina; há mulheres com bolas e mulheres com pau. É se opor a mulheres que reproduzam sistemas de opressão como o racismo, o machismo, a lgbtfobia. É perceber que circulam hoje por nossa sociedade corpos que antes eram invisibilizados e que eles trazem novas formas de afetos, representam novos sujeitos e, com isso, carregam a incrível capacidade de nos transformar porque é ao enxergar o outro e outras formas de vida que eu posso verdadeiramente me transformar.
Ser sapatão é reconhecer que o machismo, o racismo e a LGBTfobia sustentam o mundo adoecido que foi criado pelo homem branco heteronormativo, e que ser homem, branco e heteronormativo é um estado de espírito que pode morar em qualquer uma de nós e contra o qual devemos arduamente lutar, todos os dias e para sempre, até que sejamos capazes de destruir qualquer forma de dominação de uns sobre outros.
Até que toda a mulher possa ser respeitada. Até que toda mulher possa gozar amplamente. Que toda a mulher seja capaz de decidir livremente se quer ou não ser mãe. Se quer ou não casar. Se quer ou não ser sapatão, bi, hétero, hétero-confusa, travesti, trans, puta, comportada, transgressora.
Até que o corpo de todas as mulheres deixe de ser objetificado, mercantilizado, abusado.
É lutar pelo fim da brutalidade policial. Pelo fim do encarceramento em massa. Pelo fim das deportações. Pelo fim de abusos e assédios. Por serviços públicos. Por moradia para todos. Por igualdade salarial. Por parques nas cidades. Por centros culturais nas periferias e comunidades. Por investimento pesado em educação e saúde gratuitas. Por justiça social.
É saber que o feminismo não é uma batalha de mulheres contra homens, mas de todos contra um sistema que oprime, reprime e explora; e que nossa arma é a solidariedade.
E, finalmente, é ser capaz de, no meio de uma quinta-feira qualquer, sair cantando: "As puta, as bi, as trans, as trava e as sapatão tá tudo organizada pra fazer a revolução".
Viva as lésbicas do Brasil e do mundo.