Marcia de Souza não gosta da sua letra. Acha ela feia, desajeitada, e se nega a escrever qualquer coisa no caderno que segura nos braços, em branco. Quer esperar a aula começar na escola na zona sul de São Paulo onde, na quarta-feira passada (4), ela voltou a ser estudante. É tudo bem diferente da última vez que esteve numa sala de aula, quase 30 anos atrás, quando cursava a quarta série e era um menino. Para ter dinheiro, largou tudo e foi ser auxiliar de pedreiro. “Agora quero melhorar minha letra. Deixar ela bonita, ter mais conhecimento e aprender a falar melhor”, diz numa dicção já perfeita, mas tímida. Marcia, 39 anos, é um dos 100 travestis e transexuais do Transcidadania, programa da prefeitura de São Paulo que vai bancar seus estudos, oferecer cursos e ajudar a entrar no mercado de trabalho.
Mudar de profissão, aliás, é algo que Marcia quer ainda mais que a boa caligrafia. Prostituta desde os 19 anos, decidiu dar um basta no ano passado, quando apanhou de cinco policiais. Estava no carro de um cliente, no Centro, quando os oficiais abordaram. “Dispensaram o cliente e ficaram comigo. Me chutaram e socaram muito e, quando acabaram, fiquei lá, no chão”, conta. Depois disso, ela tentou trabalhar em bares e em casas, como faxineira, mas sem sucesso. “Durei 15 dias na casa de uma senhora que tinha três filhos homens. Quando me viram lá, fui mandada embora.” Agora, quer aprender uma atividade no ramo da estética.
COMO FUNCIONA
Cursos de maquiagem, cabeleireiro e massagem estão previstos a partir do segundo semestre do projeto que, ao longo de dois anos, vai pagar uma bolsa de R$ 840 e oferecer um bilhete de passe-livre para o transporte público. Na grade regular, as aula de ensinos fundamental serão de segunda a sexta-feira, com currículo condensado. As turmas não terão apenas participantes do projeto, mas mistas. “Teremos no máximo 5 do programa por sala, pois a ideia é justamente fazer a integração”, explica o coordenador de políticas LGBT da prefeitura, Alessandro Melchior.
Além do conteúdo de ensinos fundamental e médio, o grupo terá um curso de cidadania e direitos humanos no primeiro semestre. No segundo, começam as capacitações em estética e, no terceiro, o órgão estuda oferecer cursos administrativos. A contrapartida é uma taxa de presença exigente. “Só se pode faltar três vezes em todo o programa”, diz Melchior. Até agora, o órgão não informou se houve alguma falta ou desistência no primeiro dia.
UNIVERSIDADE
As cabeleireiras Leca Fasion e Valeryah Rodriguez sabem que as aulas vão mudar bastante a rotina. “Mas estou emocionadíssima e sei que isso vai transformar minha vida”, diz Valeriah, 35 anos. As amigas, que moram juntas, chegaram uma hora antes do horário da aula, e têm sonhos altos para o futuro. “Quero fazer faculdade de serviço social e me dedicar a cuidar de idosos”, conta Leca, 53 anos. “Eu quero cursar psicologia”, completa Valeryah. Tudo a distância, dizem, por medo dos colegas.
No primeiro dia de aula, elas repreenderam outra amiga que vestia um microvestido em animal print com decote profundo. “Que vergonha, algumas colegas acham que estão na balada”, chochicha Valeriah. Ela teme pela imagem do grupo e sabe que ainda enfrentará muito preconceito. “Quando chegamos à nossa classe, um rapaz falou para o outro: ‘vou mudar de sala’. É assim.” Mas no geral o primeiro dia correu bem, com um pequeno discurso da professora sobre aceitação e diferenças, e as primeiras noções de matemática e ciências. A euforia inflamou os planos universitários da dupla, que segue eufórica e, ao mesmo tempo, apreensiva.