Da estreia na novela “A Deusa Vencida” (1965), na extinta TV Excelsior, a Ester, personagem homossexual que interpretará na próxima novela das 18h, “Sete Vidas”, Regina Duarte praticamente viveu as últimas cinco décadas na tela da TV, além de trabalhos no teatro e cinema.
Boa parte dessa trajetória está na exposição “Espelho da Arte – A Atriz e Seu Tempo”, que celebra os 50 anos de carreira da atriz em mais de 4 mil fotos, 18 horas de vídeos, cenários e figurinos de personagens icônicos da atriz, como a Viúva Porcina, de “Roque Santeiro” e Maria do Carmo, de “Rainha da Sucata” –em cartaz no shopping JK Iguatemi, em São Paulo, até 8 de fevereiro.
Em uma visita à mostra com as leitoras de Marie Claire, conversamos com a atriz sobre a carreira, por meio de alguns de seus personagens históricos, e as transformações vividas nestes 50 anos.
Marie Claire - A questão feminina avançou desde a época de “Malu Mulher” (1979) ou ainda há muito o que percorrer?
Regina Duarte - Muitas coisas avançaram, mas criaram-se novos impasses. A história da dupla jornada é uma coisa tão intrínseca da mulher que ela não consegue partilhar, delegar muita coisa. O homem hoje participa muito mais da criação dos filhos e tarefas domésticas do que antes da queima dos sutiãs, vamos dizer assim, mas a mulher ficou muito mais sobrecarregada. Comprou para si mesma uma briga grande de responsabilidades profissionais e não consegue delegar. Continua com 80% das obrigações da casa, dos filhos, mas agora tem 100% das responsabilidades profissionais, num mercado cada vez mais competitivo.
MC - Em que circunstâncias você põe a casa abaixo como a Viúva Porcina?
RD - É muito raro, mas interpretar a Viúva Porcina [personagem de “Roque Santeiro”, 1985] foi bom porque abriu em mim essa possibilidade, que até então era impensável, de tomar atitudes, defender meus argumentos, desejos, as coisas nas quais acreditava. Se alguém dissesse não, eu ia procurar outro caminho. A partir da Porcina, passei a me colocar melhor. Isso aprendi com a personagem.
MC - É difícil ser honesto até hoje no Brasil como na época da Raquel Accioly de “Vale Tudo” (1980)?
RD - Para mim, não, porque fui criada com padrões éticos bastante rígidos. O que é difícil é conviver com a falta de ética cada vez maior no mundo. É realmente chocante o quanto as pessoas não estão preocupadas em respeitar o outro, em respeitar até onde vai a sua liberdade e direitos e onde começam os do outro, essas coisas estão cada vez menos claras. Existe uma ignorância absoluta de civilidade hoje, e as pessoas não estão sendo preparadas para viver em sociedade. É um retorno a um modus vivendi que caminha para a barbárie. O país mudou para pior, cada vez mais. É “cada um por si’, ‘salve-se quem puder”... É grave.
MC - Tem alguma das Helenas que você se identifica mais?
RD - Gostei de todas. Em termos de narrativa, eu gosto muito de “História de Amor” (1995). É uma novela que tem uma pureza, uma delicadeza, uma humanidade muito bonitas, que se preocupava muito mais com os sentimentos e as ações internas dos personagens do que com as externas. [Uma história] que vivia de conversas, de troca de afetos ou desafetos, mas de qualquer maneira estava menos preocupada com ações mirabolantes.
MC - Como Clô Hayalla (de “O Astro”, 2011), a Regina Duarte ainda tem mistérios a serem revelados?
RD - Eu espero que ainda tenha muita coisa dentro de mim que não pode ganhar expressão porque tenho muita vontade de continuar exercendo minha profissão, buscando dar vida a mulheres que eu ainda não tenha interpretado. A humanidade é tão vasta que, embora eu já tenha feito muita coisa, tenho muito para fazer na dramaturgia e na interpretação.
MC - O papel no longa “Gata Velha Ainda Mia” (2014) é um exemplo disso? De uma faceta sua ainda inexplorada?
RD - Eu fiquei muito entusiasmada com a proposta porque não é toda hora que aparece uma Gloria Polk na vida de uma atriz. Me deu a chance de poder mostrar facetas humanas que eu ainda não tinha tido a oportunidade de penetrar, de investigar uma área da qual eu nunca tinha me aproximado. Ensaiamos durante quatro semanas e filmamos em uma semana extenuante. Houve realmente uma imersão. Eu só não dormi no set porque não tinha espaço... (risos).
MC - Três das maiores atrizes do Brasil, você, Fernanda Montenegro e Nathalia Thimberg vão interpretar personagens lésbicas em duas novas novelas. O tema deixou de ser tabu na TV?
RD - Eu não consigo nem entender porque as pessoas ficam interessadas nessa história. Para mim, estou fazendo um personagem que podia ser uma bombeira, ou alguém que cria vinte animais em casa, que tem peculiaridades. No caso da opção sexual, sempre se soube que era um direito humano. Houve uma época de muita repressão, faz tempo que isso acabou, mas as pessoas ainda tinham certos problemas de falar disso. Acho que o que está acontecendo agora é uma necessidade, após tantos anos de repressão, de falar muito desse assunto, o que me cansa um pouco porque não vejo razão para tanto falatório em torno do fato de uma mulher ter optado, no passado, viver uma relação homossexual, ter decidido ter filhos com sua companheira. Não sei se isso a transforma numa lésbica para todo sempre. Ela fez aquela opção naquele momento da vida, mas as opções sexuais podem se modificar. Acho que o desejo por outro ser humano não vê sexo, desde que a pessoa tenha uma cabeça livre, aberta.
MC - Mas por que se demorou tanto a falar sobre o tema de forma aberta na televisão?
RD - Puro preconceito por parte da dramaturgia e por um segmento do público atuante, que escrevia cartas, não queria assistir àquilo.