Qual é o espaço da mulher na cidade? Esse é o principal questionamento proposto por um vídeo recém-lançado, dirigido por Amanda Kamanchek com colaboração da Juliana de Faria, do projeto Think Olga, e que deve virar um documentário completo sobre assédio a ser lançado no próximo ano. Vestindo um par de óculos, mulheres caminham por espaços públicos da cidade de São Paulo e registram todo o tipo de cantada que ouvem com frequência dos homens.
A inspiração veio do documentário belga "Femme de la rue", que mostra uma moradora de Bruxelas relatando o assédio que sofria no bairro onde morava. “Ela influenciou toda a agenda pública do país e conseguiu que o governo passasse a aplicar uma multa [de 50 a 1000 euros] nos agressores, quando denunciados. Eu achei interessante, porque é uma atitude que vai tornando as pessoas mais cidadãs, assim como as punições de trânsito. A cidade depende da boa convivência dos cidadãos”, conta Amanda.
Por isso, ela espera que o projeto gere uma mobilização que resulte em políticas públicas e heranças reais para as mulheres brasileiras também. “Sempre sofri muito com assédio e foi muito doloroso. Quando chegava em casa para discutir sobre isso, a primeira reação sempre era: ‘Ah, mas que roupa você estava usando?’”, conta Amanda. “Eu já trabalho com o tema de direito na cidade e comecei a entender o quanto as mulheres não tinham liberdade para circular no espaço público. O quanto a nossa circulação é muito restrita. E a gente sofre muito sem saber que está sofrendo, encaramos como uma coisa natural. Mas ela não pode se perpetuar. São situações de violência, não são banais.”
Segundo Ju Faria, o documentário surge também para responder algumas questões – e trazer mais empatia ao debate. “As pessoas precisam entender que a raiz do assédio está sempre no assediador. É ele que quer brincar com esse poder dos gêneros, de se impor sobre uma mulher, sem consentimento. Então, se a gente entender essa máxima, a gente consegue entender que a culpa nunca é da mulher, independente da roupa que ela está usando, de quem ela é.”
O mapa colaborativo, lançado com a campanha “Chega de Fiu Fiu”, serviu então de referência para a circulação das voluntárias com a microcâmera escondida. “Quando o cara mexia, a gente parava e conversava. A ideia não era discutir, mas questionar. A câmera fica na direção dos olhos da pessoa, você sente realmente o cara te olhando”, explica Amanda, que notou reações das mais diversas. “Alguns continuavam xavecando, achando que estávamos dando bola. Foi possível perceber o quanto era natural o assédio para eles. Já outros respondiam: ‘Ah, você não quer que eu te chame de bonita, vou te chamar de feia’. Outros entendiam e se sentiam constrangidos, pediam até desculpas. Mas muitos reagiam feito criança – travavam e começavam a dar risada, porque esse tipo de reação é realmente estranha para eles.”
O vídeo é apenas uma parte de um documentário, que irá contemplar as diferenças regionais, depoimentos das mulheres chilenas da ONG “Calle libre de acoso”, entrevistas de grupos de homens com perfis econômicos diferentes, e análise comportamental e psicológica feita por especialistas.
Para isso, o projeto acaba de ser inscrito no Catarse, uma ferramenta colaborativa para arrecadação de fundos. “Vamos começar com R$ 20.000, para tentar dar andamento à edição final. Mas a ideia é usá-lo também como uma rede de diálogo e divulgação”, diz Amanda.
“Através dele, pretendemos reforçar esse debate com quem já sabe o que é assédio e gerar empatia em quem acha que isso não existe. Eu sempre vivenciei isso, sei o que é, e, mesmo assim, quando assisti ao documentário belga, fiquei muito chocada. O documento visual é mais impactante”, completa Ju. E a viralização recente de um vídeo que mostra o assédio sofrido por uma norte-americana durante uma caminhada de dez horas pelas ruas de Nova York deixa claro que elas estão no caminho certo.
DEPOIMENTO
“Lá estou eu descendo a rua Cardeal Arcoverde [em São Paulo] com meus super óculos quando um cara me chama de gostosa. Pergunto: “você falou comigo?”. Ele nega, disse que não fez nada. Meu tom era agressivo, logo percebi. Não queria ser evitada, precisava de imagens. Então um rapaz passa estalando os beiços em sinal de satisfação. Quando ele já está um pouco atrás de mim, eu questiono “oi? Você disse alguma coisa?”. Ele só faz um não com as mãos e segue a vida. Funciona assim: eu assedio você e nós dois fingimos que nada aconteceu para seguirmos nossas vidas, você se sentindo miserável e eu, empoderado. Bem, NOT ON MY WATCH. (...) A impressão que eu tive com minha pequena experiência foi que ou esses homens não tinham a menor ideia de que a maioria das mulheres odeia cantada de rua ou que eles eram arrogantes demais para cogitar que talvez, sei lá, as mulheres sentem medo de serem estupradas.”, relata Gabriela Loureiro depois da experiência.