Foram décadas de luta para termos o direito de retardar a maternidade, investir na carreira e escolher com quem, como (e se) queremos casar. Demorou, mas a sociedade parece ter entendido – só que a natureza não. Nada menos que 6 milhões de brasileiras têm endometriose, a chamada “doença da mulher moderna”, pois acomete principalmente mulheres por volta dos 30 anos, que ainda não têm filhos, trabalham muito e vivem em grandes centros urbanos. O mais assustador é que ela é, hoje, a principal causa da infertilidade feminina.
Todos os meses, por influência dos hormônios do ciclo menstrual, o endométrio (a camada interna do útero) fica mais vascularizado e aumenta de tamanho para esperar uma possível gravidez. Se ela não acontece, o endométrio descama e é eliminado em forma de menstruação. A enfermidade acontece quando algumas células do endométrio, em vez de ser eliminadas, sobem pelas trompas e se alojam em órgãos da cavidade abdominal.
Com o tempo, os locais onde as células “grudaram” se inflamam e viram nódulos, que causam dor. Em geral, eles aderem aos ovários, mas podem atingir também o útero por fora, as trompas, o intestino, a bexiga e, em casos graves, os rins e até o pulmão.
Os principais sintomas são cólicas fortes e incapacitantes, desconforto intestinal e dor durante o sexo. A doença interfere na fertilidade porque pode impedir a mobilidade das trompas, responsáveis pelo transporte do óvulo ao útero. Se não for tratada, a mulher pode perder os ovários, as trompas, o útero e partes da bexiga e do intestino. Se chegar ao pulmão e aos rins, o risco de morte é enorme.
Uma das principais causas da endometriose é que, hoje, as mulheres engravidam mais tarde e têm menos filhos, portanto, menstruam mais – cerca de 400 vezes contra 40 no início do século 20. Assim, há mais endométrio preenchendo a cavidade abdominal. Estudos recentes apontam para alterações no sistema imunológico, o que também explica a maior incidência em relação a duas gerações atrás.
O estresse também é um elemento importante no desenvolvimento da doença, já que promove picos de adrenalina, substância associada à liberação de estrógeno, hormônio feminino que alimenta as células do endométrio fazendo com que cresçam mais rapidamente. Por tudo isso, é uma doença bem mais comum em cidades grandes.
DE MÉDICO EM MÉDICO
Apesar de atingir mais de 170 milhões de mulheres no mundo, a endometriose é desconhecida por mais de metade das brasileiras. Uma pesquisa feita no ano passado pela SBE (Sociedade Brasileira de Endometriose) mostrou que 53% delas nunca ouviram falar na doença. A falta de informação sobre o problema e seus sintomas turbina a curva ascendente do número de casos, mas a culpa pela demora do diagnóstico não é só das mulheres. O desconhecimento do quadro se dá também entre os médicos.
“Uma paciente com endometriose passa, em média, por cinco ginecologistas e demora entre sete e dez anos para conseguir diagnóstico e tratamento corretos”, afirma o ginecologista Sérgio Podgaec, presidente da Comissão Especializada em Endometriose da Febrasgo (Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia). Isso porque a ideia de que “ter cólica é normal” ainda predomina. Mas não, não é.
Para a especialista em TI Fabiana Cayres Rodrigues, de 33 anos, o diagnóstico demorou mais de dez anos. Desde os 20 ela sofria com cólicas tão fortes que a faziam desmaiar e ir parar no pronto-socorro, mas só aos 31 soube o motivo. “Meu marido dizia para os médicos: não é normal uma mulher sentir tanta dor todo mês”, lembra.
Quando descobriu a endometriose, Fabiana foi do céu ao inferno em instantes. Até ali, vivia uma história digna de conto de fadas. Depois de se apaixonar pelo futuro marido em 2011, foi pedida em casamento no topo do Terraço Itália, um dos prédios mais altos de São Paulo, com direito a noivo de joelhos. Disseram o “sim” diante de 120 convidados na tradicional Igreja Nossa Senhora do Brasil e passaram uma lua de mel de um mês em Paris.
O capítulo seguinte do romance já estava planejado: teriam logo o primeiro filho. Aí veio a bomba: as dores incapacitantes eram resultado de uma endometriose profunda, instalada no intestino, na bexiga, no apêndice, nos ureteres (quase chegando aos rins), nos dois ovários e atrás do útero. “Meu caso já estava tão grave que nem se considerou um tratamento, tive que ir direto para a cirurgia”, afirma.
Na maioria dos casos, a endometriose pode ser operada por laparoscopia, uma cirurgia pouco invasiva que permite o acesso ao interior da pelve por meio de uma microcâmera, de bisturis estreitos e uma cânula de sucção, todos inseridos por pequenos “furinhos”. Em casos mais graves como o de Fabiana, no entanto, é necessária uma cirurgia de grande porte. “Além dos furos da laparoscopia, tenho uma cicatriz enorme, como a de cesárea”, diz. “Minha recuperação foi muito delicada, fiquei 13 dias internada, com dores fortíssimas.” Ela precisou retirar parte do intestino e da bexiga.
Até conseguir engravidar, Fabiana fez quatro fertilizações, uma inseminação, e enfrentou dois abortos. “Da primeira vez que deu certo, ficamos tão felizes que contamos para todo mundo, até no trabalho. Para a família, fizemos o anúncio no Natal”, lembra. Mas, duas semanas depois, perdeu o bebê. Da segunda vez, o aborto aconteceu bem no Dia das Mães. “Foi um dos dias mais tristes da minha vida”, conta.
Mas a alegria estava próxima: na fertilização seguinte, em julho, dois embriões se desenvolveram. “Ao contrário de muitas mulheres na mesma situação que eu, me mantive otimista: nunca considerei que não pudesse ter meu filho”, diz. “Claro que enfrentei períodos muito difíceis, chorei e passei noites em claro, mas sempre pensei: vou dar um jeito e conseguir ter meu bebê. E agora são dois, a Mariana e o Gabriel. Ouvir o coraçãozinho deles no ultrassom foi, sem dúvida, o dia mais feliz de toda a minha vida.”
O medo de não conseguir ser mãe também assombra a atriz Fernanda Machado, que no ano passado tornou pública sua luta contra a endometriose. Ela detectou a doença em 2012, depois que as cólicas ficaram tão fortes que acordava no meio da noite, sem conseguir respirar. “A primeira coisa que me veio à cabeça quando recebi o diagnóstico foi: ‘Será que vou poder ser mãe?’.Essa doença é muito assustadora para a mulher”, diz.
Como estava gravando a novela "Amor à Vida", Fernanda tentou um tratamento alternativo. “Coloquei um implante de progesterona, o hormônio da gravidez, assim enganava meu corpo e não menstruava.” É que, como ainda não existe cura definitiva para a endometriose – a cirurgia elimina os nódulos, mas não previne que novos cresçam –, o maior recurso para impedir seu crescimento é a interrupção do fluxo menstrual”, explica o ginecologista Marco Antonio Lenci, do Hospital Albert Einstein.
O implante foi muito eficaz para as cólicas, que, segundo Fernanda, melhoraram 90%. Mas os nódulos continuaram a crescer, fazendo com que ela perdesse o medo e encarasse a cirurgia, mesmo com a novela ainda no ar. Logo depois da laparoscopia, colocou outro implante de progesterona. “Há um mês o retirei e vou tentar engravidar, estou confiante”, diz ela, que se casou com o empresário americano Robert Riskin em fevereiro deste ano.
COMO FICA O CASAMENTO
Mesmo com a doença controlada, o fantasma da infertilidade não deixa de assombrar a maioria das mulheres. A pedagoga Ana Maria Navajas, de 31 anos, descobriu a doença aos 26, depois de quase três anos de peregrinação por diversos consultórios ouvindo que ter cólicas era normal. “Foi graças a uma amiga que tinha passado por isso e me indicou o médico”, lembra.
Como em seu caso os focos eram pequenos e estavam apenas no útero, não precisou passar por cirurgia. Mas a alternativa que enfrentou não foi fácil: um tratamento durante seis meses com injeções de hormônios a cada 20 dias. “Foi um período complicado, enfrentei os sintomas de quem está na menopausa: ressecamento vaginal, ganho de peso, ondas de calor. Às vezes, acordava à noite sentindo um calorão absurdo que vinha de dentro, uma coisa de outro mundo”, lembra ela, que engordou 12 quilos durante o processo todo.
Passar por tudo isso com 26 anos e apenas três de casada é um desafio à parte. Uma pesquisa feita pela Endometriosis Foundation of America mostrou que a endometriose prejudicou o casamento de 56% das entrevistadas. E 20% delas acabaram se divorciando.
“Tenho sorte porque meu marido me apoiou e esteve ao meu lado em todos os momentos, desde as consultas com o ginecologista até a hora do sexo, quando me ajudava a relaxar com brincadeiras e lubrificantes”, diz Ana. “Eu me sentia péssima com aquele corpo inchado, gordo, que não era o meu, mas ele nunca reclamou. Pelo contrário, quando eu chorava ele dizia: ‘Vai ser melhor para nós, vai passar’.”
Com a endometriose controlada, Ana Maria ouviu dos médicos que teria dois caminhos a seguir: ou tomava pílula de uso contínuo ou engravidava. “Tive medo de a doença voltar e não conseguir mais tarde, então resolvemos engravidar. Quatro meses depois, aconteceu”, diz. A gestação, no entanto, não vingou. Com 11 semanas, sofreu um aborto espontâneo que nada teve a ver com a endometriose (não há nenhuma relação comprovada entre a doença e abortamentos).
Também não foi culpa da doença o fato de ela ter demorado cinco anos para conseguir novamente. “Refiz os exames muitas vezes e a endometriose não voltou. Acho que o trauma psicológico de que isso pudesse acontecer me impedia. É muito louco o que a cabeça da gente é capaz de fazer.”
De fato, é. E muitos médicos esquecem de lidar com isso. “A grande maioria das mulheres, depois de diagnosticadas, tem uma alteração emocional importante”, diz o ginecologista Eduardo Schor, coordenador do Setor de Endometriose do Departamento de Ginecologia da Unifesp. “Estudos mostram que metade das doentes desenvolve algum grau de depressão. E o fantasma da infertilidade é, sem dúvida, um dos principais motivos.”
Quando estava desistindo de gerar um filho e preparava a documentação para entrar na fila de adoção, Ana Maria ficou grávida. “Meu trauma com essa doença foi tanto que, além de quase me impedir de engravidar, me impossibilitou de ter um parto natural, como queria”, lembra. “Eu já estava havia 19 horas em trabalho de parto, mas, quando o bebê encaixou, senti uma dor tão grande que me lembrei das cólicas da endometriose. Aí travei”, conta, sobre o nascimento de Helena, hoje com 9 meses.
FÉ, ESPERANÇA E PACIÊNCIA
Segundo os médicos, é comum ouvir das pacientes que elas se sentem culpadas por não conseguirem engravidar. A jornalista Juliana Tourrucôo Alves, de 37 anos, sabe bem como é. Depois da primeira cirurgia para retirar nódulos no útero e nos ovários, aos 23 anos, priorizou a carreira, os estudos e a vida de casada. E só mais de dez anos depois, aos 35, decidiu abrir uma brecha em tudo e dar espaço à maternidade. Mas a doença havia voltado.
“Com a indicação de uma segunda operação, fiquei com medo de me tornar infértil. Mexer de novo no útero e nos ovários poderia deixar sequelas”, diz. “E me senti muito culpada por ter colocado a carreira na frente.”
Não fossem as duas consultas semanais com sua psicóloga, Juliana provavelmente teria sucumbido a uma depressão. “Ela me ajudou a conduzir essa questão, coibindo a culpa, que poderia travar a fecundação, natural ou em laboratório”, diz. No fim, assim como aconteceu com Ana Maria, quando resolveu dar um tempo no assunto e aproveitar a viagem ao Uruguai com o marido em comemoração aos dez anos de casamento, a gravidez aconteceu naturalmente.
“Já tínhamos nos programado financeira e emocionalmente para enfrentar uma fertilização”, diz. Mas um mau humor insistente a levou a fazer outro teste de gravidez. “Era o centésimo que fazia e esperava que, como nos outros, um ou dois dias depois a menstruação descesse. Era quase um jogo psicológico comigo mesma. Por isso não falei para ninguém, comprei o mais baratinho e fiz na hora do almoço, no banheiro do trabalho. Quando apareceu o segundo risquinho azul, explodi de emoção”, lembra ela, hoje com o pequeno Oscar, de 3 meses, no colo.
PLANO DE SAÚDE x SUS
Além de todo o sofrimento físico e psicológico, muitas mulheres têm de lidar com questões financeiras no combate à endometriose. Uma cirurgia custa entre R$ 15 mil e R$ 20 mil, sem contar as despesas hospitalares. Até o ano passado, muitos convênios médicos se recusavam a cobri-la, alegando que não constava no rol da ANS (Agência Nacional de Saúde).
Em janeiro, porém, a agência incluiu este e outros 87 procedimentos, obrigando os planos a pagá-la. Mas em muitos casos o médico indicado pelos convênios não é especialista em endometriose, o que deixa as mulheres inseguras. Foi o que houve com a atriz Fernanda Machado, que gastou R$ 18 mil na laparoscopia.
Fora da rede particular, são poucos os hospitais que realizam o procedimento com especialistas. Em São Paulo, os dois principais são o Ambulatório de Endometriose da Unifesp e o Hospital das Clínicas. Em ambos, o serviço é coberto pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
“O atendimento é feito por especialistas e totalmente gratuito. O grande problema é a fila para a cirurgia”, afirma o ginecologista Eduardo Schor, referência nacional em endometriose e coordenador do Ambulatório da Unifesp. “A paciente, depois de ter sua cirurgia indicada, aguarda de 8 a 10 meses para ser operada”, diz. Lá, são atendidas cerca de 30 mulheres por semana e realizadas quatro cirurgias por mês.
Já no HC, o departamento de endometriose é coordenado por outro grande especialista do país, o ginecologista Maurício Abrão. Por semana, o hospital atende em média 60 pacientes no ambulatório e realiza três cirurgias, em média. Como a espera pode chegar a dois anos, os casos mais graves são sempre priorizados. Atualmente, existem cerca de 80 pacientes com indicação para cirurgia. A pedagoga Ana Maria Navajas conseguiu fazer todo o seu tratamento pelo SUS.