“Você sabe como pessoas puramente negras parecem? Uma pessoa realmente negra? Não consegue ver a ligação?”, pergunta Tom Metzger, fundador do grupo extremista Resistência Ariana Branca, em uma das cenas do documentário “The Aryans” (Os arianos) da diretora alemã Mo Asumang. Diante do silêncio da entrevistadora negra, ele completa: “Eu vou lhe levar num zoológico e mostrar”.
Situações como essa já não intimidam Asumang, filha de pai ganês e mãe alemã. Foi após receber uma ameaça de morte de grupos neonazistas alemães que decidiu filmar o primeiro documentário, “Roots Germania” (2007), em que investiga suas origens. Em 2010, voltou ao tema com “Road to Rainbow”, em que questiona a ideia de que o fim do apartheid deu início a uma nova era de igualdade racial na África do Sul.
Enquanto filmava, Mo, que também é apresentadora de TV e atriz (interpretou Condoleezza Rice em “O Escritor Fantasma”, de Roman Polanski), percebeu que a palavra “ariano” era sempre evocada quando confrontava neonazistas. “Me dei conta que nunca tinha me questionado sobre o significado. O conceito que tinha de arianos era um povo loiro de olhos azuis”, contou à Marie Claire por telefone de seu escritório, em Berlim (veja abaixo trechos e entrevista da diretora à BBC abaixo).
As filmagens a levaram a uma jornada por Alemanha, Estados Unidos da Ku Klux Klan e Irã, uma das prováveis origens do povo ariano –o nome do país quer dizer “terra dos arianos” em persa antigo. Comparada ao polêmico Michael Moore, a alemã conduz as conversas sempre de maneira firme, mas não combativa, o que lhe rendeu até mesmo um abraço de Metzger, o mesmo que a prometeu levá-la a um zoológico, ao final da entrevista.
“Essa era uma das minhas preocupações ao longo do filme: queria mostrar que há uma solução, uma visão de futuro mais otimista. Então procurei falar com as pessoas sem ideologias, dar a elas a possibilidade de falar sobre suas histórias, conhecer um pouco a minha. Sem isso, o resultado poderia ser só medo”, conta. A seguir, os principais trechos da entrevista.
MC - Você começou a filmar seu documentário anterior “Roots Germania” depois de receber uma ameaça de morte de um grupo neonazista. O que a fez ter a ideia de filmar “The Aryans”?
MA - Quando estava filmando “Roots Germania”, falei com várias pessoas sobre racismo e elas sempre usavam essa palavra: arianos. Eu me dei conta que nunca tinha me questionado sobre o seu significado. Arianos, como eu pensava, não são exatamente meu grupo. Sou negra, minhas raízes estão em Gana e na Alemanha. O conceito que tinha de arianos era um povo loiro de olhos azuis. Um dia, comecei a pesquisar e descobri que os alemães não são arianos. Achei inacreditável. E tudo aquilo que aprendemos na escola? Na minha pesquisa, também descobri que havia muitos grupos que se denominavam arianos. Por exemplo, nos Estados Unidos, há um grupo chamado Irmandade Ariana. Então pensei que devia fazer outro filme sobre isso.
Marie Claire – Aqui no Brasil, mesmo sendo considerado um país que abriga todas as raças, temos testemunhado alguns episódios de racismo contra jogadores de futebol. Acha que existem novas formas de racismo?
Mo Asumang – A primeira coisa em que pensamos quando falamos sobre racismo é a cor da pele, mas há muito mais por trás disso. Quando vemos, por exemplo, a maneira como os neonazistas falam dos judeus, tem sempre coisas do tipo: “judeus têm dinheiro, são gananciosos”. Mas se você olhar um pouco mais para trás, vai ver como os próprios nazistas foram gananciosos. Eles tiraram as casas das pessoas, seus móveis, suas economias, suas roupas. Eles levaram as pessoas para campos de concentração e retiraram seus cabelos e até a pele e, quando não restava mais quase nada, os mataram e incendiaram. O que estas pessoas fazem, quase sempre, é projetar nos outros algo que não querem ver em si mesmos. É muito importante notar isso porque muitas vezes realmente não tem nada a ver com cor da pele ou religião, nada.
MC – Mas o que você diria para alguém que enfrenta discriminação no dia a dia?
MA - Quando eu encontro alguém racista, eu falo com essa pessoa. É claro que quando alguém te ofende, a última coisa que você quer é falar com essa pessoa. Mas quando eu tenho oportunidade, eu vou até ela e converso, mesmo que tenha dito algo racista. Na maioria das vezes em que esse tipo de situação acontece, eu pergunto sobre a vida da pessoa, sobre seu trabalho, família, religião. Isso pode facilitar as coisas. Então se percebo que há abertura, falo um pouco sobre minha vida também e isso pode mudar a situação.
MC – "The Aryans" mostra que a origem do povo ariano pode estar numa região que inclui partes do Afeganistão, Índia e Irã. Como se transformou nessa ideia difundida de um povo branco de olhos azuis?
MA - A palavra ariano foi usada por décadas se referindo a um povo branco, loiro e de olhos azuis. Os nazistas se apropriaram do termo para excluir outros povos, chamado-os de não-arianos. Hoje em dia, os grupos neonazistas usam a mesma palavra com forma de unir seus membros e excluir outros que não desejam, porque caso se denominassem brancos, um judeu poderia dizer: “Mas eu também sou branco e sou judeu”. Então, o termo acabou sendo usado porque era a combinação perfeita para unir esses grupos.
MC – Quando você saiu para confrontar grupos neonazistas era só você e um cinegrafista?
MA - Na Alemanha, a maior parte do tempo, éramos só eu e uma mulher com a câmera. Nos Estados Unidos, eu e duas mulheres filmando. Nos primeiros dois dias de filmagens, eu estava acompanhada de um homem, mas as coisas não deram muito certo. Nós fomos filmar uma manifestação de grupos neonazistas e ele foi agredido, chegaram a tirar a câmera das mãos dele e a jogar cerveja. Então, com a produção, decidimos substituí-lo por mulheres, por achar que eles ficariam mais calmos –e assim funcionou. Mas também acreditamos que como ela é loira e de olhos claros, a princípio eles não tinham muito com o que se preocupar (risos).
MC – Um dos entrevistados, Tom Metzger [fundador do grupo Resistência Branca Ariana], lhe dá um abraço ao fim da entrevista. Você acha que conseguiu mudar um pouco a cabeça dessas pessoas ou pelo menos deixá-las confusas sobre seus preconceitos?
MA - É importante saber que há tipos diferentes de racistas ou neonazistas. Tom Metzger é um propagador do ódio, para ele o racismo não existe. Então, na verdade, dar um abraço não é uma questão. Mas acho que ele não percebeu que meu microfone estava ligado quando nos despedimos. Nós nos afastamos da câmera e ele disse: “Me dê um abraço” e, depois, “Espero que ninguém veja, se não estou acabado” e riu. Por isso não sei se ele estava consciente que ainda estávamos filmando. Essa era uma das preocupações ao longo do filme: queria mostrar que há uma solução, uma visão de futuro mais otimista. Então procurei falar com as pessoas sem ideologias, dar a elas a possibilidade de falar sobre suas histórias, conhecer um pouco a minha. Sem isso, o resultado poderia ser só medo.
MC - Você sentiu medo?
MA - Não senti medo. Claro que antes de sair a campo imaginei vários cenários do que poderia acontecer. Mas, uma vez lá, tentei olhar nos olhos das pessoas –que muitas vezes desviavam a atenção para o chão ou o céu-, tentar deixá-las tranquilas. Tive cuidado com a maneira com que ia me portar. A linguagem corporal pode demonstrar medo ou falta de confiança. Então, por mais que tivesse outros sentimentos envolvidos no início, eles acabavam quando eu percebia que havia uma pessoa do outro lado. Isso me dava oportunidade para seguir com as perguntas, fazer com que essas pessoas percebessem também que não tinham que ter medo de mim. Foi o que aconteceu com outro rapaz. Depois do filme, nos aproximamos e ainda hoje nos encontramos para tomar um café. Acho que é totalmente possível mudar a maneira de pensar sobre tudo isso. Começa por uma pequena mudança, que cada um pode fazer. É tentar enxergar os bons sentimentos dessas pessoas, que têm famílias, amigos, e mostrar que não há por que odiar outras pessoas. É nessa direção que tento seguir.
MC – Sofreu alguma outra ameaça de morte enquanto filmava dessa vez? Qual foi a pior reação que encarou?
MA - Houve momentos tensos, como quando nos encontramos com dois integrantes da Ku Klux Klan e, quando eles chegaram, eu olhei para a parte de trás do carro em que estavam e vi que havia duas armas lá. Esse foi, claro, um momento ameaçador porque não sabíamos o que podia acontecer. Então, se por um lado isso me fez sentir medo, também pensei que alguém que carrega uma arma teme alguma coisa. Então, pensei: “Fique calma e seja educada”. É essa a forma que encontrei para abordar essas pessoas.
MC – Você já foi comparada a Michael Moore pelo tipo de documentário que faz. O que acha disso?
MA - Ser comparada a Michael Moore é uma honra, mas acho que temos estilos diferentes. No fim, acho que como ele o que eu procuro é uma solução para a história, mas minha maneira de abordar as pessoas não é provocá-las. Se fizesse isso, acho que algo de ruim já teria acontecido comigo. Então, tento fazer o oposto: não provocar, ter calma. Do contrário, acho que toda essa relação com o entrevistado não funcionaria.
MC - As pessoas a tratam diferente quando descobrem que você é alemã?
MA - Na Alemanha, as pessoas percebem que sou alemã porque falo perfeitamente a língua. Mas algumas, mesmo diante disso e sabendo que sou filha de alemã, me perguntam de onde eu vim. Eles têm a figura do alemão branco na cabeça. Talvez essa situação mude em uma geração ou duas, mas ainda perguntam de onde as pessoas são por causa da cor. Nos Estados Unidos, é diferente. Perguntam de onde sou e, quando digo da Alemanha, eles perguntam de novo: “Sim, mas onde você nasceu?”. Então, perguntam sobre meu pai e minha mãe porque na verdade querem saber de onde vem minha cor.