O inferno chega quase sempre do mesmo jeito, pelas mãos de um oficial de Justiça. A carta convoca o destinatário a uma Delegacia da Mulher e dá dez dias de prazo para se apresentar. Não há detalhes, apenas o endereço do local. “Você lê e pensa: o que é isso?”, diz o empresário paulistano Fernando Dantas da Silva, 35 anos, que recebeu a intimação em 2008, quando estava na casa da mãe, e seguiu rumo ao endereço indicado na mesma hora.
Aos 27 anos, ele estava separado havia três meses quando o documento chegou. As coisas não iam bem com a ex-mulher, mãe de sua filhinha de 4 anos. Ela o proibia de ver a menina e as brigas sobre o tema aumentavam. Desde o nascimento, Fernando filmava e fotografava os passos da garota todos os dias, e com frequência voltava para casa no meio do dia para almoçar com ela. Agora, não aceitava a distância imposta pela mãe.
Na delegacia, descobriu o teor da acusação: estupro, e contra a própria filha. O boletim de ocorrência trazia o relato da ex, que o teria flagrado assistindo a um filme pornô com a menina no colo, enquanto lhe fazia “cócegas” na vagina. “Quando ouvi isso, não senti minhas pernas. Comecei a chorar e só conseguia soluçar na frente da delegada, que me garantiu que investigaria o caso até o final.”
A essa altura, a menina já havia sido levada ao hospital Pérola Byington, referência em casos de estupro em São Paulo, onde passara por exame físico. Também havia falado com a psicóloga da delegacia, a quem contara que o pai lhe fazia cócegas, sim – mas no braço.
Fernando foi absolvido na primeira e na segunda instância do processo criminal que se seguiu. Mas não viu a filha uma única vez antes da primeira sentença, nove meses após o rompimento. Nos quatro anos seguintes, teve apenas quatro encontros com a pequena. Para piorar, logo após a separação, a ex descobriu que esperava um segundo filho dele e deu à luz outra menina. O pai só teve autorização para conhecer a própria filha numa audiência, quando já tinha mais de 1 ano.
Nesse tempo, enquanto as duas meninas cresciam longe de seus olhos, viveu momentos dramáticos, como a perseguição de uma equipe de TV e a convocação da ex para que os vizinhos fizessem “justiça com as próprias mãos”.
Em setembro passado, foi absolvido por um desembargador e pôde pedir a regulamentação das visitas. Mas aí já era tarde. O vínculo com a filha mais velha já havia sido arrasado e o que teria com a mais nova, impedido. Hoje, ele ainda aguarda que a Justiça restabeleça os encontros. Procurada pela reportagem, a ex-mulher de Fernando não quis comentar o caso.
ATAQUE INVENTADO
Casos como o de Fernando não são isolados. Marie Claire teve acesso a esse e outros processos de pais separados que, acusados falsamente de estuprar as próprias filhas, foram inocentados depois das investigações. “Infelizmente, vejo aqui um triste crescimento de falsas acusações”, diz a juíza Tarcisa de Melo Silva Fernandes, responsável pelo Centro de Visitas Assistidas do Tribunal de Justiça de São Paulo (Cevat), um espaço onde pais e filhos envolvidos em processos desse tipo se encontram com supervisão legal.
O presidente da Associação de Pais e Mães Separados (Apase), Analdino Rodrigues Neto, corrobora. Segundo ele, que dirige a ONG com mais de 50 mil associados e acompanha divórcios há 15 anos, o número de falsas acusações cresceu muito nos últimos cinco anos. “Essas declarações aparecem em brigas do ex-casal, pela guarda, por dinheiro ou em casos de ciúme de um novo parceiro”, afirma.
Essa onda de calúnias surge em um momento em que as leis brasileiras garantem os direitos dos homens de exercer a paternidade. A guarda compartilhada, que entrou em vigor em junho de 2008, é reflexo disso. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a tendência se comprovou em 2012, com 6% dos divórcios definidos com guarda compartilhada.
Apesar de ser um número ainda pequeno, já é mais que o dobro do que há dez anos. Em 2010, entrou em vigor a lei da alienação parental, que pune (às vezes com a inversão da guarda) quem impede o pai ou a mãe de ver a criança e os proíbe de denegrir a figura do ex.
Ainda assim, a primeira ação dos juízes quando recebem uma denúncia como essa é a de impedir que os acusados tenham contato com a criança. O principal motivo? A maior parte dos abusos sexuais contra crianças, infelizmente, é realmente cometida por conhecidos e familiares delas. Uma pesquisa realizada pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais e divulgada exclusivamente por Marie Claire em julho mostra que, em 34% dos casos que envolvem meninas entre 1 e 4 anos, pais e padrastos são os responsáveis.
No entanto, a dinâmica de acusar o ex para ganhar tempo na separação tem sido tão utilizada em divórcios litigiosos que, hoje, alguns magistrados veem com cautela pedidos de distanciamento entre pais e filhos.
“Se você afasta o homem e ele é inocente, está corroborando com uma injustiça. Na minha opinião, enquanto há apenas suspeita, é obrigação do magistrado manter as visitas”, diz a juíza Andréa Pachá, vice-presidente da Comissão de Magistrados do Instituto Brasileiro de Direito das Famílias. Ela defende que os colegas exijam laudos psicológicos para embasar suas decisões e que, enquanto não houver provas, o acusado mantenha o contato com os filhos por meio de visitas monitoradas.
Não foi o que ocorreu com o corretor André*, 36 anos. Depois da separação, ele manteve uma comunicação razoável com a ex e conseguia driblar as dificuldades que ela impunha para que visse a criança, então com 4 anos e meio. Mas a situação fugiu do controle quando ele apareceu com uma nova namorada, um ano após a separação.
A partir daí, passou a ser barrado na casa da ex e impedido de ver a menina. Ela descumpria os combinados de visitas e se negava a passar suas ligações à filha. Indignado, André ameaçou “tirar” a guarda dela numa das brigas.
Poucas semanas depois, recebeu em casa a convocação para comparecer a uma Delegacia da Mulher. “Pensei: deve ser papo de ameaça”, lembra ele, que entrou em choque ao descobrir o teor da queixa: teria abusado da filha dois anos antes, no único momento em que a mãe deixou a criança sozinha com ele, enquanto tomava banho. “Minha ex expôs minha filha para me ferrar. Isso é horrível.”
Quando o processo foi arquivado, em agosto de 2010, André estava 20 quilos mais magro, seus 47 quilos mal seguravam o corpo de 1,77 metro. “É algo que mexe com a moral, então mexe com você. Não estão dizendo que você roubou algo quando na verdade não roubou. É abuso infantil, um negócio gravíssimo.”
Durante o processo, parou de trabalhar e tinha dificuldade de sair de casa, apesar do apoio que recebeu de amigos e até do ex-cunhado, que testemunhou contra a própria irmã. Ele ficou sem ver a filha por determinação judicial entre 2008 e 2010. “Eu me sentia péssimo, não queria chegar perto de crianças, fiquei com trauma. Não sentia prazer em nada e ainda morria de saudade da filha. A mente não fica em paz enquanto o caso não se resolve. Não desejo o que passei nem para um bicho.”
Mas, no final, André não era o único machucado. Aos 5 anos, a menina já havia passado por testes de memória e interrogatórios, em que repetia a mesma história: o pai beijara sua boca quando ela tinha 2 anos e colocara a mão dentro da sua fralda, tudo enquanto a mãe tomava banho.
O laudo psicológico, no entanto, identificou palavreado adulto na fala dela e uma forma de contar a história que não condizia com memórias reais. A interferência da mãe e da avó no relato foi destacada pelos peritos. Quando tudo acabou e o pai ganhou o direito de ver a filha, a pequena não queria mais encontrá-lo.
Foi então que outra batalha começou. Por mais de um ano, pai e filha fizeram encontros no Centro de Visitas Assistidas do Tribunal de Justiça de São Paulo, onde, conta André, o ambiente é seco e o apoio psicológico dos profissionais, frágil. “É um lugar neutro onde o genitor que não detém a guarda pode visitar o filho, e onde se assegura à criança e ao adolescente o direito à convivência familiar”, explica a juíza Tarcisa de Melo Silva Fernandes, responsável pelo centro.
Em julho deste ano, 144 famílias eram atendidas pelo serviço, sendo 46 dos casos relacionados a acusações de abuso. Lá, o isolamento de André acabou. Mas o drama não. “Sentia minha filha nervosa e culpada por contrariar a mãe, que ficava do lado de fora falando com outras mães”, lembra. Segundo ele, foram as sessões com psicólogos de outra instituição, o Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual da USP (Cearas), que fizeram a diferença.
“Os encontros foram essenciais para restabelecer a nossa relação. Hoje, minha filha me escreve cartinhas e diz que quer me ver. Na minha mente e na dela, sei que ainda temos muitas lesões, mas o pior já passou”, diz. André se encontra com a garota, hoje com 11 anos, aos domingos.
NARRATIVAS FALSAS
Como reconhecer, afinal, uma falsa acusação? Não é uma tarefa simples nem para psicólogos especialistas na área infantil. A psicóloga paulistana Tamara Brockhausen costuma ser chamada por diversos juízes da cidade em casos como esse. Em seu consultório, atende crianças abusadas e outras que estão no meio do fogo cruzado dos pais.
“É um trabalho complexo. Existem, por exemplo, mais de 20 tipos de falsas acusações. Muitas são fruto de uma confusão em relação à sexualidade infantil, e não de má-fé”, afirma. E lembra de um caso recente, no qual a mãe induziu a filha a acusar o próprio pai. “Em casa, a filha estava vendo a genitália no espelho e, assustada, a mãe insistiu: ‘Alguém tocou em você?’, ‘Quem foi?’, ‘O papai tocou em você?’.”
Na mente da criança, explica Tamara, repetir uma narrativa induzida por um adulto é comum. E muito diferente de sofrer abusos reais. “Às vezes, a criança tem um conhecimento do sexo que não é normal para a idade dela. Sabe que sai esperma do ‘pipi’, que ele fica duro, ou que tem língua no beijo. Isso é mais preocupante”, completa.
Ainda assim, é preciso levar muitos outros fatores em conta antes de concluir pela realidade ou imaginação em um laudo. Em outro caso atendido pela profissional, a criança era abusada por um primo mais velho, mas o acusado era o pai. Somente o acompanhamento minucioso pode revelar a verdade e permitir o tratamento certo.
É por isso que, durante uma investigação, em que testemunhas são ouvidas e recursos pedidos, os casos mais “rápidos” demoram meses para ser concluídos. A essa altura, pais e filhos já estão separados de fato e outros traumas começam a se acumular. Se o pai era figura mais presente que a mãe antes da separação, a situação é ainda mais dramática.
E os danos que um drama como esse traz à criança são graves. “Quanto maior o conflito entre os pais, maiores são os quadros psicossomáticos dos pequenos”, diz ela. No consultório, ela recebe pacientes marcados por angústia, depressão, pânico e sintomas de estresse pós-traumático causados pela briga que se segue ao divórcio dos pais.
A ansiedade vem porque a criança se sente traindo um deles quando está com o outro. Se o litígio não tem um ponto-final, o desenvolvimento infantil também é comprometido. “É como se a mãe propusesse um pacto e, em troca de apoio, não cobrasse lição de casa. Isso é ensinar a própria perversão. Com isso, algumas crianças partem para a maldade, não respeitam regras e viram pequenos tiranos com os amiguinhos.”
Em longo prazo, podem se tornar adultos que vão repetir o comportamento com os filhos. Isso se forem capazes de formar uma família. “Algumas pessoas ficam impedidas de se doar, de tão arrasadas. Aí não conseguem nem formar um casal. Tudo porque tiveram uma mãe que preferiu focar no conflito com o pai a cuidar delas.”
GUARDA INVERTIDA
O geógrafo e ex-militar Diego*, 41, cuidou da filha de 8 anos desde que ela nasceu: dava comida, banho e levava para a escola. Enquanto trabalhava como chefe de segurança de um banco internacional na Av. Paulista, em São Paulo, uma empregada se encarregava da casa e da bebê. Era casado, mas a mulher passava temporadas fora e, segundo as testemunhas do processo que veio depois, tinha um comportamento instável. Saía para passear e se instalava na casa dos pais, ou viajava sem dar informações sobre seu paradeiro. Certo dia foi embora e não voltou mais. Diego ficou com a menina.
Em 2009, no entanto, ele conheceu Fernanda, uma enfermeira que logo se deu bem com a filha dele. Ela também tinha um filho e, em pouco tempo, os quatro formaram uma nova família. Dois meses depois de Fernanda ter se mudado com o filho para a casa de Diego, veio o golpe. A mãe da menina perguntou se poderia passar alguns dias ao lado da filha. “Topei. Ela raramente dava atenção a nossa filha, achei que aquilo poderia ser bom”, lembra.
Mas, quando chegou a hora de devolver a criança, a mãe não apareceu. “Ligamos e ela disse que minha filha estava doente. Corremos para levá-la a um hospital, mas não havia nenhum sintoma.” A mãe então pediu mais uma noite com a menina e, de novo, o pai assentiu. Mas, no dia seguinte, recebeu o telefonema: “Você não vai vê-la nem hoje nem nunca mais”. Ela havia o denunciado por estupro.
Foram quatro meses de separação entre pai e filha. Quando o processo criminal concluiu que não havia abuso, o laudo técnico foi além e afirmou: “É possível que a mãe se sinta incomodada pela constituição de novo relacionamento, bem como pelo carinho que a filha demonstra pela atual companheira do pai”. Parecia tudo resolvido, mas, na vara familiar, onde se discutiria a guarda, foi preciso começar tudo de novo.
O juiz pediu um novo laudo, que concluiu o mesmo: a mãe era desajustada e depressiva, enquanto pai e filha demonstravam ter um laço estável, sem qualquer indício de abuso. Mas, mais uma vez, não foi o fim do pesadelo. Pelo contrário: dois anos se passaram marcados por laudos, audiências e escândalos a cada visita que o juiz concedia a Diego. Ele perdeu o emprego e passou a ser rejeitado em cada nova seleção.
Com currículo invejável e dois diplomas universitários, era a primeira vez na vida que tinha dificuldade para conseguir trabalho. “Ninguém quer saber se você foi inocentado. Veem um processo, ainda mais um desse tipo, e te descartam.”
FIM DE CASO
O drama finalmente acabou em novembro de 2011, com a reversão total da guarda – o juiz ordenou que a filha morasse com o pai e que ele fosse o principal responsável por ela. Quando voltou para casa, a menina já tinha 6 anos, mas fazia xixi na cama, roía as unhas e sofria de terror noturno, um distúrbio de sono em que a pessoa desperta aos gritos no meio da noite.
Tinha completado o primeiro ano escolar, mas não sabia nem ler nem escrever. Foi preciso acompanhamento de psicólogos e uma atenção constante de Diego e Fernanda para que ela recuperasse o atraso nas aulas. Na última avaliação psicológica encomendada pelo juiz, três meses depois da mudança, o laudo descreveu uma menina mais calma, segura e estável. Hoje, quem precisa de supervisão para visitar a garota é a mãe.
*Alguns nomes e profissões foram alterados a pedido dos entrevistados